sábado, 28 de fevereiro de 2009

PSICOCLAUSTROFONIA (VI)

[Richard Pousette-Dart, 1992]


dorsal versus ventral
[desconforto]
dúvida irascível na escolha do posicionamento
estrebuchar no solo frio da cerâmica
superfície vertical individualizada
irregularmente cilíndrica, ideal para abandonar bifurcações
e dar azo a vontades de pé
comprometendo caprichosamente directivas do pensamento

– um refúgio tridimensional: os pés no caminho frágil

ângulo negro:
de lambidela em lambidela
uma família de gatos subjugada pela ampulheta
testemunha o êxtase do tacto num abrir de telhas – o tecto
desabrocha na noite
as madeiras rangem recados
códigos sobressaltados do relâmpago

um único feixe vindo do berço perpetua-se
pelo contínuo estilhaçar de flashes
génese dum monólogo invariavelmente audível

os gatos agridem a radiação na explosão dos nós
rosnam enfraquecidos pela luz que lhes fere os olhos
exaustos adormecem no gás da almofada

no centro da espiral de fumo
dança a trança de pêlos negros
[oferenda dos bruxos]
hoje é sexta-feira treze
cumprem-se os votos da sacerdotisa virgem

a lua entregue ao bel-prazer dos gatos virtuais
garras a escavarem um écran
– procurar no berço a ponta do feixe
onde residem significados do arbítrio
camuflados pela cor electromagnética dos sons


a ampulheta tosse
[rio de pânico subindo a tristeza refractada na cor]
uma mão divina colhe miados no labirinto impaciente
una pulsação da família em coro desprotegida
e o tempo escorre ainda mais frenético

os gatos petrificam-se um a um
– despedem-se do rosto frio e branco da lua
que aperta, entre lágrimas, o seu xaile

sábado, 21 de fevereiro de 2009

PSICOCLAUSTROFONIA (V)

[Isabel Mendes Ferreira]



o coração sobrevém embriagado sob o tronco do qual sairá
uma guitarra que arrematando as cordas
o aprisionará

ângulo roxo:
a cobra enrodilhada no lagar
pariu treze filhas
e na expectativa da forquilha próxima
revê a superfície luzidia de todos os bagos de uva
janelas dum ciclo a confessar efemeridade
carisma do vinho a cair no copo, o descerrar
das escamas

os frutos falam de amor, delírios de quem
os come – e o tempo diz do néctar que neles habita

tingidas pela chuva as sedas
desmaiam nas imagens, enfraquecem o vinho
o afago
aos glóbulos vivos em ânsia despropositada

porque há arte em acender polpas
e muito se aprenderia se possível fosse
auscultar os mortos
na loucura de cada gomo – eterna espera
sedutora glicose escondida nas abóbadas do fruto
pulsar dos vértices, arquitectura do palato
atento
morrer e ressuscitar num segundo
brincadeira de língua

e quando a guitarra eleva o etanol
a voz tropeça na alegria aninhada nas veias
nesse encanto
o miocárdio entende porque
cantam as maçãs, as peras, as laranjas
nos pomares
– pulmões inundados pelo sumo
jorro feliz

basta uma garganta no platinado das sombras
uma fogueira que arda o mosto
[descuidado pela cobra subtraída ao lagar]
basta uma garganta que se implante numa tarde visionária
mordida pela embriaguez da saudade

e assim se estanca a solidão na cratera aberta
pela volatilidade das cordas, pelo casamento da voz
com a música

sábado, 14 de fevereiro de 2009

PSICOCLAUSTROFONIA (IV)

[Richard Pousette-Dart, s/ data]



a alma reposiciona-se na qualidade de diafragma
espera víveres do holofote

ângulo amarelo:
os mortos reconhecem-se na difusa luz
[centelha do suspiro]
unem os ossos no descampado
dão as mãos
[súplica do húmus tenro]
circundam os que vivem, cotejam poder a cânticos
– cadáveres à solta na garganta dos vivos

da ceifa ficaram esqueletos para herdeiros instrumentarem
à terra o fundo da circuncisão maior
dádiva completa de passagem em passagem
um diálogo com a legítima mãe
um forno húmido de crispações

suplantado pela piscina do ódio, lago de sombras
o ermo alimenta-se de episódios de amor mal resolvido

um horto de flores a haver:
girassóis transfigurados
tulipas descomunais albergando sanguessugas nas corolas
glicínias produtoras de minúsculos dardos venenosos
magnólias com ventosas musculadas
dálias carnívoras

o reinado da reestruturada dinâmica de fluxos:
sangue a subir o xilema
vómito a descer o floema

plantas com grandes olhos
o pesadelo, endereço dos mortos
– rótulas vegetais impulsionam canos
caules grossos
ligados ao contentor de açúcar
pólen saturado que as veias pingam

caroços químicos invasores
vírgulas no genoma – a alma dorme, consente
a derradeira posição do holofote

dentro da raiva que rege a estratificação do solo
a consciência do petróleo
o cheiro nauseabundo da abundância caótica
convertido em suor na espécie molestada

e os mortos brincam às marionetas com as plantas mutantes
ensimesmados no azar que lhes convêm
cumprem na entropia o teatro do ódio, a crueldade cénica
uma vida já extinta

sábado, 7 de fevereiro de 2009

PSICOCLAUSTROFONIA (III)

[Francis Bacon, 1968]


vectores do sangue lardeados pelo som da constrição
de paredes
partículas arrancadas ao domínio obscuro
– a força inerte
beleza do betão enquanto paisagem

ângulo violeta:
a mulher desconstruída em triângulos
desolada atravessa oblíquas dimensões do horror
chão em pesadelo
abismo de porta em porta
o som bastante sujo

a mulher desdobrada no que de seu perde
em truculentos rearranjos
figurações hediondas do amianto
sempre hesitante em qualquer maçaneta-chifre à sua frente

uma casa desarmada em flor bebe o arco-íris
pela aorta
engole fraccionadamente a mulher
que contrariada respira ar de brita

nariz contra o espelho – foz errada
beijar inverso:
planos côncavos deterioram outros convexos

frivolidade das arestas, a mulher invertida
a alienar uma epiderme mais espessa
que de estranha deixa corroê-la
pela borrasca intestinal
febre do stress
anjo-reflexo

faminta regressão hipnótica: a máscara consubstancia-se
tal a fúria calcária
e incha, incha até subsequente fractura

o grito – a mulher reconstrói-se
ergue-se no nervo óptico
sai da agrura do humor vítreo para o alívio do cristalino
insinua-se na pupila
floresce na íris
alumia o humor aquoso
desarma a córnea