à Natércia Oliveira Cidra
à Sandra Santos Martins
à Sandra Santos Martins
[DIA D]
que praia miraculosa meu coração não vê?
aonde a foz da estepe pressentida pelo chocalho?
que vento ousa esculpir minhas sete formas?
aonde a foz da estepe pressentida pelo chocalho?
que vento ousa esculpir minhas sete formas?
Assim murmura Narsad, na mais alta duna do deserto. Hoje é o primeiro dia vindo da cinza. Narsad dispersa as mãos no parto do sol, desejando que este sangre como a mãe dos povos e, lhe traga em fuga a aurora dada a ver numa boca, onde se entrançam milhentas linhas por remorso. O deserto é o seu país. Roça o ventre na areia. Perdeu algures a cartilha da serpente mais sábia, esconde o rosto com o lenço mais velho. Narsad, princesa de pé descalço num devaneio oriental, à mercê das agulhas dum marfim leitoso que, em rigoroso voo orquestram os lábios, ensinando-lhes a dança inebriante do gosto como plantam pólen no dorso do escorpião.
[MESES DE ENCANTAMENTO]
Eis que se alongam as noites – mede-as Narsad, braço a braço. As entranhas em absoluto desencontro. Sobram-lhe os pentes e os parentes. A lua mais perto – grande e azul encostada. Narsad em tremendo alvoroço no que olha enamorada, prevendo a seda que antecede a vontade do corpo. Passam os meses e mais lhe pesa o alimento; levado à boca não leveda o mesmo pão, embora se alastre a levedura como praga amena e insinuadora na redonda face da lua – onde o azul excede o desejo. Sempre presente o seu maior medo: ver apodrecer as uvas, colhidas no divertimento entregue ao lobo solitário e faminto, na sua ronda.
[CONFISSÃO]
Narsad assina em confissão cada rasgo na roupa que lhe esconde o ventre. Sente-se só – princesa sem umbigo. Chora uma mãe que nunca pôde ter tido, apesar de sempre viva uma memória de esperança a correr firme em cada veio da terra como útero abençoado que jurou amar. Ao luar deitada, mais próxima da adoptiva mãe, alisando-lhe curvilínea barriga, traça na areia repentino plano para cobiçar um umbigo nascido do seu sangue, e dar-lhe assim todo o amor que à terra pediu emprestado. As lágrimas cristalizam o esboço. O império será erigido sobre as águas do Sado
– pensa –
O sangue planará à linha d’água Narsad decide por fim abandonar o Palácio das Divindades Bastardas, sacudindo o luxo e a falsa protecção, dando início à sua verdadeira demanda.
– pensa –
O sangue planará à linha d’água Narsad decide por fim abandonar o Palácio das Divindades Bastardas, sacudindo o luxo e a falsa protecção, dando início à sua verdadeira demanda.
[NARSAD]
Pondo a galope o seu fiel Três-Áspides, velocíssimo cavalo lusitano, Narsad lança ao céu a Nona-Graça, águia de penugem dourada que lhe coube de herança na morte do seu tutor; e sob o eflúvio mágico dos sete véus que em branco milagre brincam nas barbas dum vendaval ameaçador, presta juramento:
Eu sou Narsad, princesa sem umbigo
filha secreta de Narciso
violentamente cuspida pelas águas do Sado
generosamente viva para erguer nova lei
e acenderei meu sangue
ver-me-ão parir sobre as mesmas águas
um filho que roubando beleza ao avô
calará meu choro com um sorriso
filha secreta de Narciso
violentamente cuspida pelas águas do Sado
generosamente viva para erguer nova lei
e acenderei meu sangue
ver-me-ão parir sobre as mesmas águas
um filho que roubando beleza ao avô
calará meu choro com um sorriso
[PAIXÃO]
Em fuga, um coração alarmado na treva. Pétalas cortadas ao vento seco. Relincha ávido, Três-Áspides de olho rápido na finta à flecha envenenada. Inclinada, Narsad bebe o ar de poço profundo, perseguida pelo batalhão do Sado. Nona-Graça talha luz no epicentro do céu, sinais de penas ao Três-Áspides. Firme na rédea Narsad fere as mãos no couro, roça a cara no sangue brotado procurando na guerra a sua máscara. Entra a trindade no labirinto do lago gasoso, camuflando-se na vegetação aquática. Narsad enrodilha algas nas feridas e, despistado o batalhão, ela emerge aprumada no Três-Áspides. Dirigem-se para uma caverna indicada pela Nona-Graça. Noite escura, Narsad descobre uma rocha de estranha saliência, venera uma barriga de pedra, alumia-a bem com a sua tocha, olha-a de perto, encosta o ouvido e algo move-se dentro, pressente vida; então, abraça a rocha e esta fende deixando cair um jovem rapaz, Tahir encarcerado por feitiço pela bruxa-mãe dos Kimohjad, a vil pedido do irmão mais novo com fome de trono. Narsad e Tahir olham-se frente a frente colados pelo silêncio, cada um ouve bater contrário o seu coração e, confusos na matéria e no tempo, fundem-se com um beijo.
[PRECE]
Tahir debruçado, abrindo um longo lenço de renda branca, acalmando Narsad de amor pejada, com um beijo suave numa das coxas – assim se cumpre o juramento, sobre as águas do rio Sado. Celebra-se o desejado império numa cabana de vime presa ao leito do rio, ajudada pela força da terra que as raízes enlaçam. Três-Áspides à porta, Nona-Graça no vértice mais alto da cabana. Entre ferozes contracções, a dor escorrega nos olhos de Narsad. Ouve-se um berro – nasce Irina; e ao abrir os seus pequenos pulmões ao mundo, os peixes do rio sacodem luz na escuridão da água, deixando entrever no leito o sorriso de Narciso.
Porfírio Al Brandão
Maio de 2007
Maio de 2007
[Deste opúsculo, inspirado no álbum «Narsad Suite» de Luís Lapa [2006], foram feitos 77 exemplares numerados e assinados pelo autor]
2 comentários:
sem palavras
rendo.me
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um beijo
assim como a Gab
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sim.
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oh menino Tu escreves de um modo que me arranha de prazer de ler.
bravo.
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