sábado, 27 de setembro de 2008

Infracarnália * Porfírio Al Brandão


O mundo é um grandecíssimo cadáver
com moscas de vaivém para abrilhantar.


José Cardoso Pires
in Balada da Praia dos Cães




I – O CÓRTEX








Cuspir a carne por ser nauseabundo
o seu odor bloco a bloco encaixado
já limbo sonoro onde se acama
OUTRÉM-GRITO a roer a casca
e encontrando branco o subterfúgio
disfarçado dizer subterrâneo pois
maldita e insurrecta a garganta engravida
de viscos e soberbas testamentárias
EU-QUEM a abocanhar o êxodo
à cauda da laranja morta
ainda amamentando a cobra
que desliza verde entre os gomos





De romper cadências da chuva – a testa
fulminante arabesco a sonhar demónios de saias


o útero da chaminé abre-se com
fugazes melodias de insectos despromovidos
em cada clareira
um mural
em cada haste em L vertendo
céus de demasia líquida
e instaura-se o centro da maternidade do cacto
de maternidade arbórea a luzir em qualquer sonho
sem que morra a ânsia de acordar


e na cabine homem e mulher olham a estrada
olham-na
engolem-na no limite visual
sob o alcatrão
flashes contínuos da contínua improbabilidade
da viagem


para lá do vidro algo espreita
acima das cabeças
alcatrão volátil
incolor acima das cabeças – a latência eminente
dum beijo de morte
homem e mulher impávidos
agrestes beijam esquinas
mantêm a expressão inicial do rosto
em acrílico tempo de menos a menos vivido
e largam cinzas do embrião sonhado
voam
queimam-se na névoa do alcatrão volátil


homem e mulher na cabine
olham
desovam tristeza
esparramada na chapa crua cruel inabitável
do alcatrão espasmado


– duas árvores secas






Ele vê-se a decifrar o arrojo sanguíneo – pensar
emergência do vermelho como
turbulência cerebral por fantasma estéril


e ele fala aos cães gemendo com um
em si adentro feroz cão negro


a esses que não teme fala de silêncio roedor
brusco inicia um retiro discursivo
pinga solidão intuitiva
verte violência muda
ginga entre balaústres do passado
aponta à esfera ladrares compulsivos


desce falando aos cães que o temem
gemendo sempre fugindo
do cão negro ainda em si dentro





Ignição: um carro rumo às barbas do céu
sufocado pelo arco-íris que um aceno
subscreveu – cinto é com tapetes diurnos
a suplantar escadas e ele bem apertado
extravasando cor em bolhas queimadas


o condutor sujeito à cruz enevoada
de curva próxima a amolecer-lhe o peito
e rasga ele a estrada pleno de apetite
atraído pelo pó que as nuvens mascam
a convite da mulher sorridente


um pé-de-feijão arrastando borda fora
o carro gripa e não, ele não se chama joão





Rumo à linha onde precipício me engulo
pulsam vértices orgânicos
de tossir picadas
e alinhá-las segundo a estirpe


figuro comida num ágil apodrecimento
orbitam mazelas que encaixam húmus
peso abominável ao mapa de grelhas


uma carcaça à terra se liberta


entro neste lento naufrágio
a pele derrete e amo degraus de cera
nos quais me ajoelho para rezar
à lâmina que as esponjas limpam





De beber o lençol julga-se morto
exposto num túmulo tenro
do alto à cegueira nega as pálpebras descidas
cume onde come bolor negro


debita suor abafando animais com as costas
cúpula do estábulo onde focinhos comentam
como se escavassem o sono colchão abaixo


o sonho é a gazela aos pinotes
no prado onde as flores sorriem decotes





Ouvi vivo no ar duros selos
e neles brindei em relevo
ao gume que talha venoso
os dados a ditarem
novo vestuário


segue-os atrás aquele nadar-de-orelhas
de rapina outro voar ainda ar denso
já outro corpo noutro agreste
enquanto entre eles cai uma porta
com dobradiças ósseas


vi e vim eu abrir vivo e sei: um pôs o pé
na sombra que se fez poça aspirante a espelho
onde outro mergulhará tintas expurgadas
a esquissos ambulantes em roda-morta
junto ao calvário





Olharam o dente como se
abocanhassem a orla dalgum cabo principesco
com a pressa de pentearem sonhos que no pestanejo
se escangalham ao redor desse defunto castrador
à distância fóssil duma nova ilha intocável


entrassem elas docemente pela raiz esbatida
na onda doutro sangue já envelhecido
doando curvas a um bolbo maior entre os eleitos
sonhos de morder almofada ou viajar fundo
em sono cru


vissem elas o poder das naus nesse mesmo dente
o grande caldo calcário onde se lavam as estepes
com direito à marcha fúnebre de bonecos pomposos
quando na ladeira esmaltada não se roça o linguado
saído da torneira a pingar-lhes nas cabeças
e soubessem elas que os pingos são soldados
mortos por tecelagem burocrática e que
em selada idade irão sacudir os brincos em fúria
com ambas as mãos no peito


– o dente – perguntei-lhes porque veneram
de manhã as gemas de sal
e elas responderam-me que o sal todo é da manhã





A vespa vem matar


asas nupciais às cócegas
quase me lancetam
a garganta


sou pelas lâmpadas doidas
da negra água brotam poldras
teclas húmidas a serem esculpidas
por trutas fluorescentes


ninhos ardem à conta do gás venenoso
suspiro da mãe-hematoma
neste dia feliz


chega de encobrir pevides em vítrea lamela
da colossal gravidez
que é a língua






Contar extinção por contágio
ascensão hormonal à escadaria
do homo sapiens recolocado
no distrito (i)mundo
lavando as mãos no ranho
que as cristaliza criminosas
para nos comparsas dar
palmadinhas nas costas e lhes
almoçar timos fígados e baços
regados de adrenalina
sim, este é o souvenir de cristal:
multiplicam-se ridículos os infectados
e o vírus engorda dentro deles
esticando-lhes o sorriso





Às costas minha banheira trémula
carapaça às avessas explica-a
certo fumo encarnado que algum fungo verteu
eu no aconchego da água quente
feto em volta da barbatana
que por sórdido umbilical lhe bebo
grossa gelatina para bom crossing-over


minha trémula banheira ao deus-dará
raso arranha-céus fumegante no qual
alforrecas se armadilham muito janotas


pelo som coso velocidades a objectos enquanto
caracol brincando à boca dum canhão de sal
e lá longe junto ao bidé
jaz uma tartaruga duas vezes morta
exibindo na sua podre carapaça
o rosto redimensionado de tristan tzara





Bêbado o profeta escoa salivas
as alucina por algemas barbudas
no habitat do verme – tricota o hábito
das algemas desfiando seda
descendo a outro salivar
que alcoólico se insinua a mucos perfeitos


profeta enquanto ossos
equilibrados no sopé do precipício
e espera, fica à espera e
tampouco desespera
espera o parto da manhã de aço
lendo o leite emulsionado
no espaço – gotas de luz
grafismos de sémen
sílabas rasantes à vista


venera a soberba mancha lenta da abóbada
pressupõe que alguém será a voz da sarça
num minuto assim estranho como exacto
ao redor duma cratera ensanguentada





O escuro. inseguro ventila cartilagens
irós já não lhe mordem. rói unhas
noite-azia. horário fracturado
espreita o guarda-roupa de lucífer. e assobia
agora verme. tremem-lhe anéis intestinais
de abraçar o frio espera recompensa. cubos
jogo-de-pés. sentidos em borrão na face
pânico diluído por mirones. um pano
digere os clones. ribalta metamórfica
em sintonia com os faróis. iró-de-prumo
conta 11. entra hidráulico no autocarro





Rasgar garagem num sabugo
por ouvir nervoso meia dúzia de pinhas
simpaticamente prenhas
de choverem hélices traz-me fricção
ó relâmpagos
caruma mágica nas mãos
arde amarga giesta quando
se esborracham olhos
errados na almofada
outrora cerejas frescas no topo
da plasticina


trampolim este sabugo fundo
algures dentro de mim a encorajar
janelas em fieitos de segredar à pele
daquele pequeno corpo
a arrancar membros às árvores
espadas depois
desembainhadas à claridade da manhã
vê-lo saltar dono e senhor de animais
bolindo nos micronichos dum oásis mudo
e o sol aprisionado em volta
pela cortina de pinheiros





É o rumor ósseo que lhes leva
o leite à boca
crescem do tronco expandido da mãe
a acalentá-los em sobressalto
e bem lhe serve o deserdado xaile
esse acordeão de renda onde se somarão
enganos doces


os pulmões enrodilham-lhe
os filhos
ela sabe-os perdidos
contudo enrijesse-lhes
os ossos


num estremecido fôlego
fortes foles filiam-se
aveludados no colo


são as bodas dum voo maior





Um aproximar surdo resvala
gaseificado enjoo neste terço minguante
permanecerão tábuas do enleio submarino
esboroada geografia humedecida na vertical


ouço-lhe estalos pulmonares
sei o esforço que as mós pleurais fazem para
não esmigalharem bolhas no contrabalanço líquido


quero dormir no incêndio do crepúsculo
ferido a vinte e um metros de profundidade
afogar os olhos e desmaiar nesse exercício
de afundar cabelos





Desço o limbo de isaac
cruz da cavalgaria assassina
disseram-me «o amor lava melhor
que qualquer sabão em agonia»
– estão mortos, mortos todos
subtraídos às esquinas do globo


há festim no jardim dos reis comuns
reis à procura da coroa
atolados na copa fértil
fundo víneo marulhando
fólios ascendendo a animais
vagabundos bebem-lhes a seiva encarnada
que lhes chaga o rosto
e o veneno trará boa ressaca narcísica


vénus calou a filha derramando-lhe ácido
na língua tenramente rosada
bem espremidas suas bolsas
caídas maduras da constelação movente
– festejemos a mortandade higiénica
dos que nus pingam ranho
no epicentro do templo
com cor esfomeada de incenso


hoje vi voar minha sombra esbracejando
diante dum espelho, não vou estar só
e cuspirei nesse machado vindo a lume
borbulhante na espiral virulenta dos olhos





Gira o cordão umbilical no microondas
futuro-tômbola para a plateia de estômagos


ao atolar-se um pé na passadeira
toda a dicotomia evapora tracejante com
contrafluxo das gentes em grosso tempero


quem arrisca estatelar-se branco quer beber
petróleo no poço escuro do tímpano
que não tem por poltrona
e cisma de camaleão-intempérie
a icebergue educado


passeia escorreito vento intentando fellatios
num xadrês citadino: embalsamam-se peões
por sonharem paralelepípedos contrariados





À luz ressurgem os cornos da bicicleta
e fico no que se camufla
pois retumbam exageros de sangue
numa camisa às riscas
que a avó apertou ao peito
e beijou


clareia-se-me a berma da estrada
pelo choro estilhaçado que o ranger comove
tal lasca do mundo ou folha granítica
intermitente de irmão a irmão
onde se desdobrou vida aos jorros
aliada ao musgo e à terra


presente ainda essa camisa
das nódoas só as dos beijos permanecem
e martelam
na minha cabeça





É o vento que me convoca, é o vento que me provoca
e a cadeira balouça: o velho
estirado completo na sua demência obscura
no seu passar igual dos anos
com a maresia dum louco cérebro à solta


balouça digerindo música seu diminuendo
da única alegria bebendo fluidos
planam pássaros
dolorosos cansaços vistos ao espelho
todo o dia toda a noite
e durante o sono masca aquele grão de loucura
obstipado na glândula
que à tarde amena se subtrai


ele repica passos, envolve-os em geleia crispada
e há migalhas na mesa
e há cadeiras fixas na memória
desmaiadas no pensamento
e há a ardência indolor dos olhos
água que jamais ressuscitará


irá de novo lançar redes para embrulhar peixes
e embalá-los num sono de alcofa
nunca mais dirá o seu nome
nem acariciará a fotografia
e o álbum há muito que é uma sepultura
há muito que alberga apenas traça
na sua vida minúscula
com vivência alegre da sua minúscula memória
mas que vive
vive
mesmo que minúscula a sua alegria


o velho arderá na planície
e nunca mais se ouvirá nele o eco da montanha
que algum dia lhe haviam falado





NOITEMÃE grito-te ó claustro fundente
secam as horas brilham os minutos
e num segundo fervo éguas brancas
espasmos de vísceras salpicados neste
pão branco que parto à mesa
alumiando vultos que colhi na clareira estelar
por desarmarem-me a pele
ANTESONHO minha estação motriz
cordilheira surda dos sete degelos
canto-te ó neblina óssea que
com incenso fecundo envolves
beijos podres do sol
a marinarem-se baços: bagas serôdias
balas soporíferas ocupando as câmaras
do revólver fálico que ferirá de luz
a vulva lunar





De esperanças o clarão descendente chama a criança
ela pega na medula peganhosa do objecto pensante
e confunde-se com o estímulo vermelho por mínimos
circuitos convulsivos das fibras deslizantes
não esquecida assume o músculo-betão ascendente
por um núcleo renascida no inseguro desfile
das imagens – pequeno soluço, arfa e curva os pés
como se agora segurasse o chão remanescente
dos edifícios; ouve falar por cima e sustém a respiração:
sabe que lhe sujam os vidros





Antes bem: uma última parcela de escuridão vertida
pela porta a transumar-se em continente
bem que respiro num sobrevoo
do grito a refazer
dúbio semblante do escultor que o perdeu


antes do carimbar de ouvido me vem
esse pétreo interesse por um
olho-búzio trazido pelo bruxo das boas-noites
e explica-me agulhas num amarelo vibrante
desculpa pesadelos mas


as pálpebras são corpulentas
pesadas cosem atalhos
nomeiam-me náufrago bolorento
com livre trespasse do âmnio
e assim reentro




II – OS VASOS









Porque íris de passagem
iria envolver paralisia e sombra
em crasso porquê da imagem
que à paragem do arco
um estridente quê
lhe ferisse os pés?





Disse-me o nome
e eu o disse ao de leve
pois que a sobra
circunscreve a moda dum
pronome ao telefone
ébrio letreiro que
incomoda a febre
do cone cavalheiro





A pseudomão empesta-me
nódulos nutridos com o suco medular
do caroço freático sangrante
núcleo duro da viagem
mas efervescente aonde
transbordante se me assiste
a velocidade





Boca em flecha ou
agulha abrindo
ao insecto a
janela do estame
que entulha vida
áspera quanto baste
neste certame





Dito homem assina
sangue ardendo à flor
perdendo rigor na pele
pelo dito não consumado


de ver-se queimado descrê
o vinho balbuciante
no copo


– raspas de água à superfície –


prevê vulcão rosáceo de
caprichosa lava-sangue
a desmantelar palavras





Derrubado escuta
a lei do microscópico
vento
sob a lisura ensan-

de[s]cida do granito
endospérmico
e lê a bivalve cor a rasgar-se
violenta sobre seu rosto
de papiros apodrecidos





Cómico isto de
subir a haste
duma deixa sem
manchar a mínima
renda na gotícula
isto de roubar sonhos
ao soar o orvalho
e entre as palavras
tão só e desprecavido
a roubá-los de novo
cómico isto de
imolar uma boca





De vê-las refaço-as
mãos invaginadas na
paisagem peristáltica


ramificam-se possessivas
machucam vozes





Um infinito cru aquece-lhes
o prato
que de olhar comove
bem resguardadas
as entranhas


mentem neve como pisam
o rosto da farinha
acusam oportuna cabeça
faz-de-conta


assim o perdoar visto
no borrão de seda
o bicho





Essoutro lugar retém
ouro de bissectriz cicatrizada
a diluir sob manhas
de querer adoptar
uma estrela





Soa pé ao búzio
carrancudo chupa
placentas e
nele suspira
o mar


mulheres em palco
mães suas mãos escoam
bílis agreste e
esfregam olhos
em terreno cabeludo


curvam línguas
botões carnais
o baile sulcando
nos braços
timbre hipnótico


e cresce um
veio roxo
escurece-se cavilha
dum coração
comedor de sal





Assim olho fibra a fibra
desflorados os clarões


gotejo partituras
e planam nelas naves auriculares
antenas ao tacto hipersensíveis


meço intenções na força cromática
a fixar aroma e textura no esqueleto
da tela espontaneamente fluida





O alvoroço lhe dá a fuga


adivinhando pegadas
ali mesmo renasce


e desfia silvos por chutar
penteados aos arbustos





À barriga da árvore acorrem
assombrados dentes
e suplicam rangentes
musicam doentes
sempre crentes
no rebento que ela há-de parir





A galope invadem-me
são víveres em metamorfose
animais verdes a perderem
pernas
que ao rastejarem
animam-me o corpo
e eu danço: são víboras





Esfolha-me

fole a fole


olhas-me


folhas e
medo





Um dia preso ao
nojo de pedir
azul estéril
para o
animal


por saber, a
portentosa cláusula


a cabeça aberta
e os dedos
muito sujos





Amadurecerá
o crânio na
bandeja


chorará
a gota pelo
chifre de luz


acorrerá
enamorado
o minotauro


[eixo a eixo
os olhos repetem
o mundo]


madrugará
uma canção







III – A MEDULA






A primeira imagem é o bebé ver
desaparecido o brinquedo debaixo do tapete
para desconhecida dimensão do universo


depois surgem esboço a esboço as paredes
comem área cada vez mais paredes
fortificam-se pelo tempo
mais baças do que verdes


ainda presas aos pés as raízes de todas
as plantas
ainda viva a sabedoria das árvores
no espírito
ainda intacto o contorcionismo das heras e madressilvas
nos músculos


os reinos beijam-se
a herança dissimula-se
profunda e invisível prevalece
até que o homem cansado e velho
abraçado à rocha e dela já parente
confesse o berço vegetal
nos primeiros nós da carne





Humanidade – o passeio
por tantas asneiras
cheira sempre a sangue
em todas as palavras
fora e dentro do corpo
e na valeta


humanidade – duas pernas ao lado
um lado nunca cicatrizado
para neste branco lugar
olhar de longe um gato
– cresce gato preto
pelos teus olhos de pantera
que eu me fico a tocar o tórax
a ponto de julgá-lo fruta
e justificar ar em falta
com arranhada tosse
grisalho e lento fosse o líquen
enrodilhado no coração


humanidade – pintar o pão
para morrer espumando tinta
jamais desabrochar noutros ouvidos
ouvir antes quebrarem-se pétalas ou vidros


humanidade – repensá-la
como quem se maquilha
há sempre guerra e tudo é mato
– morrer e oferecer à morte
um queijo azul muito velho





Se casco o pericarpo ao som
racho a pele em invasão dissecante


penso se li na lagoa espiga
o remoinho dos trompetes
a rodarem dedos suados
digo respigo aliás perdido no se
sopram tempo como miam
metal derretido e eu embalado
a doar órgãos ao vácuo feminino


então ver-se luz é regar enxertos





Que dizer da folia dum aguilhão aguçado
se me doem enxames no pescoço?


antes vê-lo executar viúvas de cera
com a fome de muitos lobos
um sem número de halos radiais
duma fria sensaboria tentacular
tê-lo mesmo como condão nidificador
coberto de plumas pairando sobre
velhos livros acossados pelo pó
manejá-lo aquecido no perímetro da voz
estimada catapulta contra o vasilhame
venerá-lo mastreá-lo aguçá-lo


talvez me desunhe à bica da flama
ou crave o aguilhão no céu da boca





Aproveitando na boda o jardim de espelhos para
o ensino da arte singular que é engolir
retoquemos a cobertura tóxica do bolo no centro
contráctil à música que varre as mesas
e sejamos feitos do brilho sujo da dança
da pobreza pura de relâmpagos faiscando contrastes
fragmentos de vídeo nesse sumo nauseado
demais o quanto sabemos que o é esta carne mutante
desmedida sempre e tanta saliva o comprova
sejamos par meu amor neste salão monstruoso
entre os que quebraram a flauta
sentindo ratos-bisturi galgarem-nos coluna acima
para apodrecerem nos lábios digna pergunta:
beber-se-á na arena destilado suor
como chuva cozinhada na atmosfera?
dancemos apenas e a sós dancemos
como se jamais tropeçássemos na variz purulenta
pela qual medram os sapatos em cada lance rítmico
e substitui o miocárdio deste salão
pleno de carícias urticantes que lubrificam a janela
por onde entrará o rinoceronte de luz
farejando-nos os ossos





«Dar água às grades»


mote corrente quando
se aprisiona uma nascente astral
de antedito pó
a tragar-se amargo ao redor do holograma


cambaleio mordiscando o púbis à nau do dia
descem panos curvos com nervos rubros
a alisarem o olho perfurante
que ainda desenha a bigorna


de ungir se esmaga
e beijar esgota
que vida se esvai
se estaca a boca?


«gradear as águas»





Ela sorriu às avessas e despiu a cidade
dizimou formigueiros soprando auréolas de fumo
– veio ridiculenraizar o amor


viaja num vagão azul
com a cadência solta das vértebras encharcadas
de quotidiano
massaja barro traduzindo assobios de flores
e estrangula lírios depois de os amamentar


perco-a em tantas faces
e ela nas escadas das nuvens de tão meu
céu confidente
tão meu refúgio quão
ecrã mutilador


sigo-lhe o arabesco mágico do cheiro
a pique num amor fatiado
mordo-me por doar açúcar mercantil


ao mínimo malabarismo com ovários
aquele sorriso apodrece
e explodem-lhe vilosidades numa cartolina
enfeitiçada igreja dos gnomos de barro





Escrevo a cear-te os átomos por saudade curva
doem-me as mãos de procurar granadas mínimas


a língua viaja pelo
mármore azedo – amêndoa
… desejo-a nos dedos


ouço turbinas no arcabouço veloz
ao lamber mucosas
e leio fundo nos tendões o verbo frígido
a engrandecer esse coito salivante das canoas febris
sob o artifício nascente de casulos luminosos


refazer-me-te praia daquela tarde
garças garganteiam-te o umbigo eruptivo
onde se aninha o precipitado coágulo violáceo
das marés inconfessas


abre-me válvulas
reata-me pérolas forradas a carne


e pensar que o coração é uma noz
um pedaço de mar aberto
à boca da cama


flutuante se me soluça o corpo
ao colher sementes na rouquidão nocturna
localizar-te nesse instante
em que a maré alta se confunde com o pólen
roubado à infância


os peixes beijarão a guilhotina
e não morderás a culpa que me veste de mar
nem tresloucarás a sede dos olhos que trespassam
o coração do cardume





Químico sol a tempo de arquear o caule
erguido a nós quebrado em dois
um beijo no orvalho crescente
entre narizes que a luz adensa e inebria
pela estéril doçura a trilhar no dorso


ouves eu dentro a consertar raízes
ampliando a vegetação
colhendo frutos sonoros numa nave de âmbar
engordando o caule com barriga televisiva


renasceremos mudos no tráfico de sementes





Tilinta o arco e a noite mera campânula
estrelas sobram atrás dos guindastes
sob o braço polar murcham lábios
como sujas palavras de sapatearem dentes


afio a agulha no pêndulo e costuro a casa
à febre estridente da última vinheta
alumiando ressonância indomável
tecto vulcânico à velocidade dum fósforo


e quando cintilam palpites a pulso
entrevejo-me inteiro redobrado
abrindo um bilhar de amoras





Uma colmeia gorda por candeeiro
estirando opacos seios gorgolejantes
do capim crescido nos nós dos dedos


hei-de acender favos líquidos quando
o cavalo de néon se quebrar no
entroncamento da frase a mim entupida


recém-chegado da tigela feia às voltas com
estranha alcateia de alcachofras cor-de-rosa
a segredarem-me morse por mil capas aos beiços


que redondos e curvos os seios enchem
de mel os favos e estes adoçam o leite
pela paixão em ângulo bem debaixo da lua





Abranda hesita pára: a caveira perfumada
ir no ir que alcança o chão e em frente
o vidro não perdoa paredes por transparência
ir à procura do til à demão da língua
esconder a couraça num galanteio de mentol
até ao mil se apedreja com rebuçados
quem surfa ondas do etanol desparasitado


que o amor vem dos bolsos aprendeu
a mais ter o poder de tocar e correr
o fecho éclair do peito às vezes movediço
outras pista de dança delas no corropio
a não esticar para não romper os bolsos
tornar-se invertebrado pregado aos mamilos
numa interrupção voluntária de lucidez





Muito rocha apetrechada de amar folhas
decalques sim: feijões proeminentes
de quem me ata cotilédones dependurado
muito qualquer coisa última num toque
de lianas e escorre um milímetro de arrozal
sobram amidos na confusão das bocas
muito papoila andante de malas feitas
um dia luzindo morte à escaravelho
cedo comparando mordeduras de alface
muito trinado compulsivo a abrir
corolas ao quadro estriado sobre retinas
cansa-me a guerrilha vegetal no pulso
muito tesoura dançarina numa paleta
e amputa sexo à tinta chorando óleo





Aí. só: ela no wc
por medicamentos no coldre me engane
com a capa onde prega
fivelas cromáticas da descabelada noite
e eu me dobre fintando-lhe o trote
donos dum chão a florir côncavo
abraçados para bocejar trevos
aos azulejos transpirados
junto aos alicerces das louças donde
face contra face
sóbrio borbotar da copa
nos irá acordar





Eu nos circuitos empapado com mangas
como se esperasse um esguicho para celebrar
o agonizante amarelo neste tapete binário
onde electrificado me sorteio com a pressa
de selar cáries e cálculos de enxofre
para rir-me como um tolo abraçado de bêbado
aos meus gigantescos rins e apontar-lhes ranho
olhando de soslaio a homeostasia de bonecos
com críticos órgãos amontoados nas lisas
cabeças unidas em cone quasi religioso
à procura do polímero-mor no foco ensandecido
dum palhaço a desejar melhoras espirrando laçarotes





Lembrar ânimo de sucção na cervical
e um arrepio leva a cor em frente


acorrem estilhaços junto à fava coronária
formigo enraivecido estranhando o balouço
e traz memórias dentadas a dois na pele
extensível a um quarto conservado pela saliva
numa súplica do capitel à vertebra fracturada
mas longínqua luz dura sustém o dente-de-leão
com tensões de explodir carruagens
num súbito big bang fraudulento


a mão assina a data no beiral cicatrizado
lambo-lhe o suor que intumesce os espinhos
há um turbilhão quente a envolver surdez
dum sangue descorado à força doente


à janela dói a grande superfície





Uma lágrima quente sem que a náusea ao de leve
me arrebate
por incompleto me seja eu mesmo
com vírgula aborrecida e
contando tê-la como alimento
à entrada dum matadouro


porque difícil é adivinhar dissonância nasal
espatifado em esponjosa contrição mamária
nunca sabendo se
lâminas labiais irão trabalhar
com grossos riachos a sucumbirem ao clorídrico suor
dada a serventia acrilírica de corpos submersos
no carvão nocturno – assim
avivasse ele mais negro destoantes pregas na cama
seguindo carícias dos anéis no parágrafo madalénico
da cobra
empalada já num receptáculo arbóreo deste dia mau





Enoja-me o verdete entusiasmado das notícias
mais o cheiro a bâton
cruzado com o do grave charuto
amarelado verbete me pareça
alérgico sim ao tumor-champanhe do beberete
porque minha casa envelhece
ela é de esferovite
enegrece ao tom eufórico do jornal
viveiro onde o vírus se replica
como se masturbasse nas barbas da célula cutânea
muito embora fechado nela
porém colossal quando prensado por colunas esguias
que lhe trazem a peçonha
fechado sim mas alongando pus por excitação
e os espigos musicais esburacam uma cozinha
julgada útero num sussurro digital





Venho atrás do lanho violeta que me dá o alfabeto
ideia curva de deuses anões esperando a trombeta
para verterem os bagos maduros do céu


porque se pintam podres as estrelas telecomandadas
numa atrapalhação pagã das mãos?


desfeitas as roupas em melaço
experimento a ousadia de provar chuva com o seu
travo a ferrugem sanguinolenta
e o prazer de afiar os dedos na trovoada






O fruto morreu há meia hora portanto
são horas de demolhar o calendário


acusar solstícios imprevisíveis nos músculos
numa intermitência de cores secundárias


não adianta sufragar a escorrência da polpa
nem tanto rever ópticas de leitura genética
em subcamadas do olho germinativo


é do dedo fixo o lugar envolvente
resta só
chegar por precisão a um derrame





As plantas são os mais belos mamíferos que um dia
abmorto conheci. intriga-me se é desordem
o desorvalhar das folhas
creio que sobredesenvolvimento mamário
ao micronível dos estomas; fundamento é
a própria gota que progressivo mamilo na queda
se goteja e aleija o tempo como espelha leites
por aguar num antebranco dominical. isto sem falar
da extravagância sexual e púbicos consentimentos
pois verde a tocar-se verde refulge toda a matéria
e os olhos são dois alvéolos do anormal pulmão
do mundo





Bendiga-se verde a folha nova
com os cegos cloroplastos da fortuna


olhai-a encurvar ampla planície
trazendo sossego do caule
que o sopro minoritário estende a domínio duplo
duas cores: uma clara-marialva por ressalva
a outra escura-grávida de grave sanguinidade


todo o pedúnculo refaz a voz do rio
e ouve-se o rebolar miudinho
dos ovos no cálice mas
cá fora um barco estridente
rasga águas à procura de novo amanhecer


que lagarta beijará ao contrário o amor
espelhado nos alicerces do casulo?

1 comentário:

Gabriela Rocha Martins disse...

o fascínio dá lugar
ao espanto


leio.te
com o prazer renovado
da partilha



.
um beijo