O mundo é um grandecíssimo cadáver
com moscas de vaivém para abrilhantar.
José Cardoso Pires
in Balada da Praia dos Cães
I – O CÓRTEX

Cuspir a carne por ser nauseabundo
o seu odor bloco a bloco encaixado
já limbo sonoro onde se acama
OUTRÉM-GRITO a roer a casca
e encontrando branco o subterfúgio
disfarçado dizer subterrâneo pois
maldita e insurrecta a garganta engravida
de viscos e soberbas testamentárias
EU-QUEM a abocanhar o êxodo
à cauda da laranja morta
ainda amamentando a cobra
que desliza verde entre os gomos
●
De romper cadências da chuva – a testa
fulminante arabesco a sonhar demónios de saias
o útero da chaminé abre-se com
fugazes melodias de insectos despromovidos
em cada clareira
um mural
em cada haste em L vertendo
céus de demasia líquida
e instaura-se o centro da maternidade do cacto
de maternidade arbórea a luzir em qualquer sonho
sem que morra a ânsia de acordar
e na cabine homem e mulher olham a estrada
olham-na
engolem-na no limite visual
sob o alcatrão
flashes contínuos da contínua improbabilidade
da viagem
para lá do vidro algo espreita
acima das cabeças
alcatrão volátil
incolor acima das cabeças – a latência eminente
dum beijo de morte
homem e mulher impávidos
agrestes beijam esquinas
mantêm a expressão inicial do rosto
em acrílico tempo de menos a menos vivido
e largam cinzas do embrião sonhado
voam
queimam-se na névoa do alcatrão volátil
homem e mulher na cabine
olham
desovam tristeza
esparramada na chapa crua cruel inabitável
do alcatrão espasmado
– duas árvores secas
●
Ele vê-se a decifrar o arrojo sanguíneo – pensar
emergência do vermelho como
turbulência cerebral por fantasma estéril
e ele fala aos cães gemendo com um
em si adentro feroz cão negro
a esses que não teme fala de silêncio roedor
brusco inicia um retiro discursivo
pinga solidão intuitiva
verte violência muda
ginga entre balaústres do passado
aponta à esfera ladrares compulsivos
desce falando aos cães que o temem
gemendo sempre fugindo
do cão negro ainda em si dentro
●
Ignição: um carro rumo às barbas do céu
sufocado pelo arco-íris que um aceno
subscreveu – cinto é com tapetes diurnos
a suplantar escadas e ele bem apertado
extravasando cor em bolhas queimadas
o condutor sujeito à cruz enevoada
de curva próxima a amolecer-lhe o peito
e rasga ele a estrada pleno de apetite
atraído pelo pó que as nuvens mascam
a convite da mulher sorridente
um pé-de-feijão arrastando borda fora
o carro gripa e não, ele não se chama joão
●
Rumo à linha onde precipício me engulo
pulsam vértices orgânicos
de tossir picadas
e alinhá-las segundo a estirpe
figuro comida num ágil apodrecimento
orbitam mazelas que encaixam húmus
peso abominável ao mapa de grelhas
uma carcaça à terra se liberta
entro neste lento naufrágio
a pele derrete e amo degraus de cera
nos quais me ajoelho para rezar
à lâmina que as esponjas limpam
●
De beber o lençol julga-se morto
exposto num túmulo tenro
do alto à cegueira nega as pálpebras descidas
cume onde come bolor negro
debita suor abafando animais com as costas
cúpula do estábulo onde focinhos comentam
como se escavassem o sono colchão abaixo
o sonho é a gazela aos pinotes
no prado onde as flores sorriem decotes
●
Ouvi vivo no ar duros selos
e neles brindei em relevo
ao gume que talha venoso
os dados a ditarem
novo vestuário
segue-os atrás aquele nadar-de-orelhas
de rapina outro voar ainda ar denso
já outro corpo noutro agreste
enquanto entre eles cai uma porta
com dobradiças ósseas
vi e vim eu abrir vivo e sei: um pôs o pé
na sombra que se fez poça aspirante a espelho
onde outro mergulhará tintas expurgadas
a esquissos ambulantes em roda-morta
junto ao calvário
●
Olharam o dente como se
abocanhassem a orla dalgum cabo principesco
com a pressa de pentearem sonhos que no pestanejo
se escangalham ao redor desse defunto castrador
à distância fóssil duma nova ilha intocável
entrassem elas docemente pela raiz esbatida
na onda doutro sangue já envelhecido
doando curvas a um bolbo maior entre os eleitos
sonhos de morder almofada ou viajar fundo
em sono cru
vissem elas o poder das naus nesse mesmo dente
o grande caldo calcário onde se lavam as estepes
com direito à marcha fúnebre de bonecos pomposos
quando na ladeira esmaltada não se roça o linguado
saído da torneira a pingar-lhes nas cabeças
e soubessem elas que os pingos são soldados
mortos por tecelagem burocrática e que
em selada idade irão sacudir os brincos em fúria
com ambas as mãos no peito
– o dente – perguntei-lhes porque veneram
de manhã as gemas de sal
e elas responderam-me que o sal todo é da manhã
●
A vespa vem matar
asas nupciais às cócegas
quase me lancetam
a garganta
sou pelas lâmpadas doidas
da negra água brotam poldras
teclas húmidas a serem esculpidas
por trutas fluorescentes
ninhos ardem à conta do gás venenoso
suspiro da mãe-hematoma
neste dia feliz
chega de encobrir pevides em vítrea lamela
da colossal gravidez
que é a língua
●
Contar extinção por contágio
ascensão hormonal à escadaria
do homo sapiens recolocado
no distrito (i)mundo
lavando as mãos no ranho
que as cristaliza criminosas
para nos comparsas dar
palmadinhas nas costas e lhes
almoçar timos fígados e baços
regados de adrenalina
sim, este é o souvenir de cristal:
multiplicam-se ridículos os infectados
e o vírus engorda dentro deles
esticando-lhes o sorriso
●
Às costas minha banheira trémula
carapaça às avessas explica-a
certo fumo encarnado que algum fungo verteu
eu no aconchego da água quente
feto em volta da barbatana
que por sórdido umbilical lhe bebo
grossa gelatina para bom crossing-over
minha trémula banheira ao deus-dará
raso arranha-céus fumegante no qual
alforrecas se armadilham muito janotas
pelo som coso velocidades a objectos enquanto
caracol brincando à boca dum canhão de sal
e lá longe junto ao bidé
jaz uma tartaruga duas vezes morta
exibindo na sua podre carapaça
o rosto redimensionado de tristan tzara
●
Bêbado o profeta escoa salivas
as alucina por algemas barbudas
no habitat do verme – tricota o hábito
das algemas desfiando seda
descendo a outro salivar
que alcoólico se insinua a mucos perfeitos
profeta enquanto ossos
equilibrados no sopé do precipício
e espera, fica à espera e
tampouco desespera
espera o parto da manhã de aço
lendo o leite emulsionado
no espaço – gotas de luz
grafismos de sémen
sílabas rasantes à vista
venera a soberba mancha lenta da abóbada
pressupõe que alguém será a voz da sarça
num minuto assim estranho como exacto
ao redor duma cratera ensanguentada
●
O escuro. inseguro ventila cartilagens
irós já não lhe mordem. rói unhas
noite-azia. horário fracturado
espreita o guarda-roupa de lucífer. e assobia
agora verme. tremem-lhe anéis intestinais
de abraçar o frio espera recompensa. cubos
jogo-de-pés. sentidos em borrão na face
pânico diluído por mirones. um pano
digere os clones. ribalta metamórfica
em sintonia com os faróis. iró-de-prumo
conta 11. entra hidráulico no autocarro
●
Rasgar garagem num sabugo
por ouvir nervoso meia dúzia de pinhas
simpaticamente prenhas
de choverem hélices traz-me fricção
ó relâmpagos
caruma mágica nas mãos
arde amarga giesta quando
se esborracham olhos
errados na almofada
outrora cerejas frescas no topo
da plasticina
trampolim este sabugo fundo
algures dentro de mim a encorajar
janelas em fieitos de segredar à pele
daquele pequeno corpo
a arrancar membros às árvores
espadas depois
desembainhadas à claridade da manhã
vê-lo saltar dono e senhor de animais
bolindo nos micronichos dum oásis mudo
e o sol aprisionado em volta
pela cortina de pinheiros
●
É o rumor ósseo que lhes leva
o leite à boca
crescem do tronco expandido da mãe
a acalentá-los em sobressalto
e bem lhe serve o deserdado xaile
esse acordeão de renda onde se somarão
enganos doces
os pulmões enrodilham-lhe
os filhos
ela sabe-os perdidos
contudo enrijesse-lhes
os ossos
num estremecido fôlego
fortes foles filiam-se
aveludados no colo
são as bodas dum voo maior
●
Um aproximar surdo resvala
gaseificado enjoo neste terço minguante
permanecerão tábuas do enleio submarino
esboroada geografia humedecida na vertical
ouço-lhe estalos pulmonares
sei o esforço que as mós pleurais fazem para
não esmigalharem bolhas no contrabalanço líquido
quero dormir no incêndio do crepúsculo
ferido a vinte e um metros de profundidade
afogar os olhos e desmaiar nesse exercício
de afundar cabelos
●
Desço o limbo de isaac
cruz da cavalgaria assassina
disseram-me «o amor lava melhor
que qualquer sabão em agonia»
– estão mortos, mortos todos
subtraídos às esquinas do globo
há festim no jardim dos reis comuns
reis à procura da coroa
atolados na copa fértil
fundo víneo marulhando
fólios ascendendo a animais
vagabundos bebem-lhes a seiva encarnada
que lhes chaga o rosto
e o veneno trará boa ressaca narcísica
vénus calou a filha derramando-lhe ácido
na língua tenramente rosada
bem espremidas suas bolsas
caídas maduras da constelação movente
– festejemos a mortandade higiénica
dos que nus pingam ranho
no epicentro do templo
com cor esfomeada de incenso
hoje vi voar minha sombra esbracejando
diante dum espelho, não vou estar só
e cuspirei nesse machado vindo a lume
borbulhante na espiral virulenta dos olhos
●
Gira o cordão umbilical no microondas
futuro-tômbola para a plateia de estômagos
ao atolar-se um pé na passadeira
toda a dicotomia evapora tracejante com
contrafluxo das gentes em grosso tempero
quem arrisca estatelar-se branco quer beber
petróleo no poço escuro do tímpano
que não tem por poltrona
e cisma de camaleão-intempérie
a icebergue educado
passeia escorreito vento intentando fellatios
num xadrês citadino: embalsamam-se peões
por sonharem paralelepípedos contrariados
●
À luz ressurgem os cornos da bicicleta
e fico no que se camufla
pois retumbam exageros de sangue
numa camisa às riscas
que a avó apertou ao peito
e beijou
clareia-se-me a berma da estrada
pelo choro estilhaçado que o ranger comove
tal lasca do mundo ou folha granítica
intermitente de irmão a irmão
onde se desdobrou vida aos jorros
aliada ao musgo e à terra
presente ainda essa camisa
das nódoas só as dos beijos permanecem
e martelam
na minha cabeça
●
É o vento que me convoca, é o vento que me provoca
e a cadeira balouça: o velho
estirado completo na sua demência obscura
no seu passar igual dos anos
com a maresia dum louco cérebro à solta
balouça digerindo música seu diminuendo
da única alegria bebendo fluidos
planam pássaros
dolorosos cansaços vistos ao espelho
todo o dia toda a noite
e durante o sono masca aquele grão de loucura
obstipado na glândula
que à tarde amena se subtrai
ele repica passos, envolve-os em geleia crispada
e há migalhas na mesa
e há cadeiras fixas na memória
desmaiadas no pensamento
e há a ardência indolor dos olhos
água que jamais ressuscitará
irá de novo lançar redes para embrulhar peixes
e embalá-los num sono de alcofa
nunca mais dirá o seu nome
nem acariciará a fotografia
e o álbum há muito que é uma sepultura
há muito que alberga apenas traça
na sua vida minúscula
com vivência alegre da sua minúscula memória
mas que vive
vive
mesmo que minúscula a sua alegria
o velho arderá na planície
e nunca mais se ouvirá nele o eco da montanha
que algum dia lhe haviam falado
●
NOITEMÃE grito-te ó claustro fundente
secam as horas brilham os minutos
e num segundo fervo éguas brancas
espasmos de vísceras salpicados neste
pão branco que parto à mesa
alumiando vultos que colhi na clareira estelar
por desarmarem-me a pele
ANTESONHO minha estação motriz
cordilheira surda dos sete degelos
canto-te ó neblina óssea que
com incenso fecundo envolves
beijos podres do sol
a marinarem-se baços: bagas serôdias
balas soporíferas ocupando as câmaras
do revólver fálico que ferirá de luz
a vulva lunar
●
De esperanças o clarão descendente chama a criança
ela pega na medula peganhosa do objecto pensante
e confunde-se com o estímulo vermelho por mínimos
circuitos convulsivos das fibras deslizantes
não esquecida assume o músculo-betão ascendente
por um núcleo renascida no inseguro desfile
das imagens – pequeno soluço, arfa e curva os pés
como se agora segurasse o chão remanescente
dos edifícios; ouve falar por cima e sustém a respiração:
sabe que lhe sujam os vidros
●
Antes bem: uma última parcela de escuridão vertida
pela porta a transumar-se em continente
bem que respiro num sobrevoo
do grito a refazer
dúbio semblante do escultor que o perdeu
antes do carimbar de ouvido me vem
esse pétreo interesse por um
olho-búzio trazido pelo bruxo das boas-noites
e explica-me agulhas num amarelo vibrante
desculpa pesadelos mas
as pálpebras são corpulentas
pesadas cosem atalhos
nomeiam-me náufrago bolorento
com livre trespasse do âmnio
e assim reentro
II – OS VASOS

Porque íris de passagem
iria envolver paralisia e sombra
em crasso porquê da imagem
que à paragem do arco
um estridente quê
lhe ferisse os pés?
●
Disse-me o nome
e eu o disse ao de leve
pois que a sobra
circunscreve a moda dum
pronome ao telefone
ébrio letreiro que
incomoda a febre
do cone cavalheiro
●
A pseudomão empesta-me
nódulos nutridos com o suco medular
do caroço freático sangrante
núcleo duro da viagem
mas efervescente aonde
transbordante se me assiste
a velocidade
●
Boca em flecha ou
agulha abrindo
ao insecto a
janela do estame
que entulha vida
áspera quanto baste
neste certame
●
Dito homem assina
sangue ardendo à flor
perdendo rigor na pele
pelo dito não consumado
de ver-se queimado descrê
o vinho balbuciante
no copo
– raspas de água à superfície –
prevê vulcão rosáceo de
caprichosa lava-sangue
a desmantelar palavras
●
Derrubado escuta
a lei do microscópico
vento
sob a lisura ensan-
de[s]cida do granito
endospérmico
e lê a bivalve cor a rasgar-se
violenta sobre seu rosto
de papiros apodrecidos
●
Cómico isto de
subir a haste
duma deixa sem
manchar a mínima
renda na gotícula
isto de roubar sonhos
ao soar o orvalho
e entre as palavras
tão só e desprecavido
a roubá-los de novo
cómico isto de
imolar uma boca
●
De vê-las refaço-as
mãos invaginadas na
paisagem peristáltica
ramificam-se possessivas
machucam vozes
●
Um infinito cru aquece-lhes
o prato
que de olhar comove
bem resguardadas
as entranhas
mentem neve como pisam
o rosto da farinha
acusam oportuna cabeça
faz-de-conta
assim o perdoar visto
no borrão de seda
o bicho
●
Essoutro lugar retém
ouro de bissectriz cicatrizada
a diluir sob manhas
de querer adoptar
uma estrela
●
Soa pé ao búzio
carrancudo chupa
placentas e
nele suspira
o mar
mulheres em palco
mães suas mãos escoam
bílis agreste e
esfregam olhos
em terreno cabeludo
curvam línguas
botões carnais
o baile sulcando
nos braços
timbre hipnótico
e cresce um
veio roxo
escurece-se cavilha
dum coração
comedor de sal
●
Assim olho fibra a fibra
desflorados os clarões
gotejo partituras
e planam nelas naves auriculares
antenas ao tacto hipersensíveis
meço intenções na força cromática
a fixar aroma e textura no esqueleto
da tela espontaneamente fluida
●
O alvoroço lhe dá a fuga
adivinhando pegadas
ali mesmo renasce
e desfia silvos por chutar
penteados aos arbustos
●
À barriga da árvore acorrem
assombrados dentes
e suplicam rangentes
musicam doentes
sempre crentes
no rebento que ela há-de parir
●
A galope invadem-me
são víveres em metamorfose
animais verdes a perderem
pernas
que ao rastejarem
animam-me o corpo
e eu danço: são víboras
●
Esfolha-me
fole a fole
olhas-me
folhas e
medo
●
Um dia preso ao
nojo de pedir
azul estéril
para o
animal
por saber, a
portentosa cláusula
a cabeça aberta
e os dedos
muito sujos
●
Amadurecerá
o crânio na
bandeja
chorará
a gota pelo
chifre de luz
acorrerá
enamorado
o minotauro
[eixo a eixo
os olhos repetem
o mundo]
madrugará
uma canção
III – A MEDULA

A primeira imagem é o bebé ver
desaparecido o brinquedo debaixo do tapete
para desconhecida dimensão do universo
depois surgem esboço a esboço as paredes
comem área cada vez mais paredes
fortificam-se pelo tempo
mais baças do que verdes
ainda presas aos pés as raízes de todas
as plantas
ainda viva a sabedoria das árvores
no espírito
ainda intacto o contorcionismo das heras e madressilvas
nos músculos
os reinos beijam-se
a herança dissimula-se
profunda e invisível prevalece
até que o homem cansado e velho
abraçado à rocha e dela já parente
confesse o berço vegetal
nos primeiros nós da carne
●
Humanidade – o passeio
por tantas asneiras
cheira sempre a sangue
em todas as palavras
fora e dentro do corpo
e na valeta
humanidade – duas pernas ao lado
um lado nunca cicatrizado
para neste branco lugar
olhar de longe um gato
– cresce gato preto
pelos teus olhos de pantera
que eu me fico a tocar o tórax
a ponto de julgá-lo fruta
e justificar ar em falta
com arranhada tosse
grisalho e lento fosse o líquen
enrodilhado no coração
humanidade – pintar o pão
para morrer espumando tinta
jamais desabrochar noutros ouvidos
ouvir antes quebrarem-se pétalas ou vidros
humanidade – repensá-la
como quem se maquilha
há sempre guerra e tudo é mato
– morrer e oferecer à morte
um queijo azul muito velho
●
Se casco o pericarpo ao som
racho a pele em invasão dissecante
penso se li na lagoa espiga
o remoinho dos trompetes
a rodarem dedos suados
digo respigo aliás perdido no se
sopram tempo como miam
metal derretido e eu embalado
a doar órgãos ao vácuo feminino
então ver-se luz é regar enxertos
●
Que dizer da folia dum aguilhão aguçado
se me doem enxames no pescoço?
antes vê-lo executar viúvas de cera
com a fome de muitos lobos
um sem número de halos radiais
duma fria sensaboria tentacular
tê-lo mesmo como condão nidificador
coberto de plumas pairando sobre
velhos livros acossados pelo pó
manejá-lo aquecido no perímetro da voz
estimada catapulta contra o vasilhame
venerá-lo mastreá-lo aguçá-lo
talvez me desunhe à bica da flama
ou crave o aguilhão no céu da boca
●
Aproveitando na boda o jardim de espelhos para
o ensino da arte singular que é engolir
retoquemos a cobertura tóxica do bolo no centro
contráctil à música que varre as mesas
e sejamos feitos do brilho sujo da dança
da pobreza pura de relâmpagos faiscando contrastes
fragmentos de vídeo nesse sumo nauseado
demais o quanto sabemos que o é esta carne mutante
desmedida sempre e tanta saliva o comprova
sejamos par meu amor neste salão monstruoso
entre os que quebraram a flauta
sentindo ratos-bisturi galgarem-nos coluna acima
para apodrecerem nos lábios digna pergunta:
beber-se-á na arena destilado suor
como chuva cozinhada na atmosfera?
dancemos apenas e a sós dancemos
como se jamais tropeçássemos na variz purulenta
pela qual medram os sapatos em cada lance rítmico
e substitui o miocárdio deste salão
pleno de carícias urticantes que lubrificam a janela
por onde entrará o rinoceronte de luz
farejando-nos os ossos
●
«Dar água às grades»
mote corrente quando
se aprisiona uma nascente astral
de antedito pó
a tragar-se amargo ao redor do holograma
cambaleio mordiscando o púbis à nau do dia
descem panos curvos com nervos rubros
a alisarem o olho perfurante
que ainda desenha a bigorna
de ungir se esmaga
e beijar esgota
que vida se esvai
se estaca a boca?
«gradear as águas»
●
Ela sorriu às avessas e despiu a cidade
dizimou formigueiros soprando auréolas de fumo
– veio ridiculenraizar o amor
viaja num vagão azul
com a cadência solta das vértebras encharcadas
de quotidiano
massaja barro traduzindo assobios de flores
e estrangula lírios depois de os amamentar
perco-a em tantas faces
e ela nas escadas das nuvens de tão meu
céu confidente
tão meu refúgio quão
ecrã mutilador
sigo-lhe o arabesco mágico do cheiro
a pique num amor fatiado
mordo-me por doar açúcar mercantil
ao mínimo malabarismo com ovários
aquele sorriso apodrece
e explodem-lhe vilosidades numa cartolina
enfeitiçada igreja dos gnomos de barro
●
Escrevo a cear-te os átomos por saudade curva
doem-me as mãos de procurar granadas mínimas
a língua viaja pelo
mármore azedo – amêndoa
… desejo-a nos dedos
ouço turbinas no arcabouço veloz
ao lamber mucosas
e leio fundo nos tendões o verbo frígido
a engrandecer esse coito salivante das canoas febris
sob o artifício nascente de casulos luminosos
refazer-me-te praia daquela tarde
garças garganteiam-te o umbigo eruptivo
onde se aninha o precipitado coágulo violáceo
das marés inconfessas
abre-me válvulas
reata-me pérolas forradas a carne
e pensar que o coração é uma noz
um pedaço de mar aberto
à boca da cama
flutuante se me soluça o corpo
ao colher sementes na rouquidão nocturna
localizar-te nesse instante
em que a maré alta se confunde com o pólen
roubado à infância
os peixes beijarão a guilhotina
e não morderás a culpa que me veste de mar
nem tresloucarás a sede dos olhos que trespassam
o coração do cardume
●
Químico sol a tempo de arquear o caule
erguido a nós quebrado em dois
um beijo no orvalho crescente
entre narizes que a luz adensa e inebria
pela estéril doçura a trilhar no dorso
ouves eu dentro a consertar raízes
ampliando a vegetação
colhendo frutos sonoros numa nave de âmbar
engordando o caule com barriga televisiva
renasceremos mudos no tráfico de sementes
●
Tilinta o arco e a noite mera campânula
estrelas sobram atrás dos guindastes
sob o braço polar murcham lábios
como sujas palavras de sapatearem dentes
afio a agulha no pêndulo e costuro a casa
à febre estridente da última vinheta
alumiando ressonância indomável
tecto vulcânico à velocidade dum fósforo
e quando cintilam palpites a pulso
entrevejo-me inteiro redobrado
abrindo um bilhar de amoras
●
Uma colmeia gorda por candeeiro
estirando opacos seios gorgolejantes
do capim crescido nos nós dos dedos
hei-de acender favos líquidos quando
o cavalo de néon se quebrar no
entroncamento da frase a mim entupida
recém-chegado da tigela feia às voltas com
estranha alcateia de alcachofras cor-de-rosa
a segredarem-me morse por mil capas aos beiços
que redondos e curvos os seios enchem
de mel os favos e estes adoçam o leite
pela paixão em ângulo bem debaixo da lua
●
Abranda hesita pára: a caveira perfumada
ir no ir que alcança o chão e em frente
o vidro não perdoa paredes por transparência
ir à procura do til à demão da língua
esconder a couraça num galanteio de mentol
até ao mil se apedreja com rebuçados
quem surfa ondas do etanol desparasitado
que o amor vem dos bolsos aprendeu
a mais ter o poder de tocar e correr
o fecho éclair do peito às vezes movediço
outras pista de dança delas no corropio
a não esticar para não romper os bolsos
tornar-se invertebrado pregado aos mamilos
numa interrupção voluntária de lucidez
●
Muito rocha apetrechada de amar folhas
decalques sim: feijões proeminentes
de quem me ata cotilédones dependurado
muito qualquer coisa última num toque
de lianas e escorre um milímetro de arrozal
sobram amidos na confusão das bocas
muito papoila andante de malas feitas
um dia luzindo morte à escaravelho
cedo comparando mordeduras de alface
muito trinado compulsivo a abrir
corolas ao quadro estriado sobre retinas
cansa-me a guerrilha vegetal no pulso
muito tesoura dançarina numa paleta
e amputa sexo à tinta chorando óleo
●
Aí. só: ela no wc
por medicamentos no coldre me engane
com a capa onde prega
fivelas cromáticas da descabelada noite
e eu me dobre fintando-lhe o trote
donos dum chão a florir côncavo
abraçados para bocejar trevos
aos azulejos transpirados
junto aos alicerces das louças donde
face contra face
sóbrio borbotar da copa
nos irá acordar
●
Eu nos circuitos empapado com mangas
como se esperasse um esguicho para celebrar
o agonizante amarelo neste tapete binário
onde electrificado me sorteio com a pressa
de selar cáries e cálculos de enxofre
para rir-me como um tolo abraçado de bêbado
aos meus gigantescos rins e apontar-lhes ranho
olhando de soslaio a homeostasia de bonecos
com críticos órgãos amontoados nas lisas
cabeças unidas em cone quasi religioso
à procura do polímero-mor no foco ensandecido
dum palhaço a desejar melhoras espirrando laçarotes
●
Lembrar ânimo de sucção na cervical
e um arrepio leva a cor em frente
acorrem estilhaços junto à fava coronária
formigo enraivecido estranhando o balouço
e traz memórias dentadas a dois na pele
extensível a um quarto conservado pela saliva
numa súplica do capitel à vertebra fracturada
mas longínqua luz dura sustém o dente-de-leão
com tensões de explodir carruagens
num súbito big bang fraudulento
a mão assina a data no beiral cicatrizado
lambo-lhe o suor que intumesce os espinhos
há um turbilhão quente a envolver surdez
dum sangue descorado à força doente
à janela dói a grande superfície
●
Uma lágrima quente sem que a náusea ao de leve
me arrebate
por incompleto me seja eu mesmo
com vírgula aborrecida e
contando tê-la como alimento
à entrada dum matadouro
porque difícil é adivinhar dissonância nasal
espatifado em esponjosa contrição mamária
nunca sabendo se
lâminas labiais irão trabalhar
com grossos riachos a sucumbirem ao clorídrico suor
dada a serventia acrilírica de corpos submersos
no carvão nocturno – assim
avivasse ele mais negro destoantes pregas na cama
seguindo carícias dos anéis no parágrafo madalénico
da cobra
empalada já num receptáculo arbóreo deste dia mau
●
Enoja-me o verdete entusiasmado das notícias
mais o cheiro a bâton
cruzado com o do grave charuto
amarelado verbete me pareça
alérgico sim ao tumor-champanhe do beberete
porque minha casa envelhece
ela é de esferovite
enegrece ao tom eufórico do jornal
viveiro onde o vírus se replica
como se masturbasse nas barbas da célula cutânea
muito embora fechado nela
porém colossal quando prensado por colunas esguias
que lhe trazem a peçonha
fechado sim mas alongando pus por excitação
e os espigos musicais esburacam uma cozinha
julgada útero num sussurro digital
●
Venho atrás do lanho violeta que me dá o alfabeto
ideia curva de deuses anões esperando a trombeta
para verterem os bagos maduros do céu
porque se pintam podres as estrelas telecomandadas
numa atrapalhação pagã das mãos?
desfeitas as roupas em melaço
experimento a ousadia de provar chuva com o seu
travo a ferrugem sanguinolenta
e o prazer de afiar os dedos na trovoada
●
O fruto morreu há meia hora portanto
são horas de demolhar o calendário
acusar solstícios imprevisíveis nos músculos
numa intermitência de cores secundárias
não adianta sufragar a escorrência da polpa
nem tanto rever ópticas de leitura genética
em subcamadas do olho germinativo
é do dedo fixo o lugar envolvente
resta só
chegar por precisão a um derrame
●
As plantas são os mais belos mamíferos que um dia
abmorto conheci. intriga-me se é desordem
o desorvalhar das folhas
creio que sobredesenvolvimento mamário
ao micronível dos estomas; fundamento é
a própria gota que progressivo mamilo na queda
se goteja e aleija o tempo como espelha leites
por aguar num antebranco dominical. isto sem falar
da extravagância sexual e púbicos consentimentos
pois verde a tocar-se verde refulge toda a matéria
e os olhos são dois alvéolos do anormal pulmão
do mundo
●
Bendiga-se verde a folha nova
com os cegos cloroplastos da fortuna
olhai-a encurvar ampla planície
trazendo sossego do caule
que o sopro minoritário estende a domínio duplo
duas cores: uma clara-marialva por ressalva
a outra escura-grávida de grave sanguinidade
todo o pedúnculo refaz a voz do rio
e ouve-se o rebolar miudinho
dos ovos no cálice mas
cá fora um barco estridente
rasga águas à procura de novo amanhecer
que lagarta beijará ao contrário o amor
espelhado nos alicerces do casulo?
1 comentário:
o fascínio dá lugar
ao espanto
leio.te
com o prazer renovado
da partilha
.
um beijo
Enviar um comentário