segunda-feira, 22 de junho de 2009

John Paul Caponigro


Aturdida perante o que o mundo lhe oferece. Um fervilhar intenso que ela amansa na espera. Revê a geografia dos órgãos mais uma vez. Os olhos ficam-lhe presos ao doce entardecer do dia. Embora tenha interiorizado essa sensação de doçura como nítida perfídia, não lhe dispensa o encanto enredado. Despede-se da última flamância violenta do dia. Ela respira como manso pardal nocturno. À espreita. Ama a noite como ama cada subterfúgio do seu corpo. Consegue perscrutar na pele o bafejar das estrelas. Pressente no escuro a enorme estrada acendida no que lhe é mais íntimo. Concebe uma irmandade de corpos celestes. O céu estrelado – aparentemente arrítmico – surge-lhe como partitura magistral a requerer um debruçar sensível. Mãos frágeis mas agilmente meticulosas no artifício da leitura. Láctea. Leitura do espaço para dentro de si pelos sentidos expandidos.
A janela aberta ao luar – boca do quarto – por onde respira o pensamento. Um patamar onde ela orquestra os ruídos mais elementares que se atracam no ouvido. Ritmos. A música. O canto hipnótico dos grilos, quase religioso; o romântico soluçar do cuco. Bebe os sons. Sofregamente. Última água para longa, muito longa, travessia do deserto. Dança descalça esmerando exactidão nos movimentos. Balança o corpo como que embebedada de melodia. Luz. A mais pura luz. Vinda de dentro, do estremecimento dos ossos, das cartilagens. O exercício da alegria. A sós com tudo o que a rodeia.
Inebriada corre até à fruteira da cozinha. Fome do que não é de carne. Namora toda a fruta e descobre, por baixo dos pêssegos e das bananas, uma maçã vermelha tão solitária quanto ela. Indaga-lhe os pequenos defeitos. Autopsia-lhe o luzir estrangeiro que verdadeiramente a seduz. Revê-se na maçã. Compreende-a. Acaricia-a como se tocasse nela própria. Cresce subitamente a vontade de aconchegá-la junto aos lábios. Varre-lhe a superfície com a boca fechada. A maçã viaja no sorriso de um canto ao outro. E estranha não desejar trincá-la, ou mordê-la ao de leve, apaixonadamente. Os dedos lavam-se na frescura da casca e ela ganha novo fulgor. Devolve a maçã à fruteira consagrando-a rainha. Contempla-a cumplicemente à distância. Renasce o gáudio sabendo restituída à maçã a sua legítima imagem. Porém, no mais fundo de si, percebe que algo mudou. Volta as costas à fruteira e pressente que a túrgida maçã a observa, irremediavelmente fecundada.
Sair à rua. Contagiar mais além. Boceja ao dar-se conta da tamanha felicidade que a invadiu e quer emprestá-la enquanto luz. Caminha pelas ruas da povoação beijando a noite nas esquinas. O vestido brilha. Os dedos saboreiam a bainha. Caminha ao ritmo do que ainda lateja vigorosamente no corpo.
Diante do rio. Despe-se como se vestindo pura. Assim se manifesta completa sua alma bivalve. Entra no rio com uma serenidade que ilumina as margens. Mergulha a cabeça e ascende à superfície como que cumprimentando a vida aquática. Depois nada pressurosa e em dual movimento reacende ondas que lhe são familiares. O seu território. Apazigua-se num recanto junto aos salgueiros. É a água negra da noite a sua maior confidente. Os pés são grandes raízes. Balança os braços, ramos brancos submersos. A água iluminada ao seu redor, farol de algas e peixes deixados à solta. Uma solidão salutar brindada com breves relâmpagos de harmonia por todo o ecossistema. Uma rocha a meia profundidade – um púlpito no tórax do rio. Que sabe ela do coração? Antiga num sentir que jura ainda não dominar, nutrido pela desprendida osmose. O que vê é tudo universo.

4 comentários:

Isabel disse...

fico sempre submersa sem palavras apenas de alma iluminada pela tua luz que se vê até do mais longe dos longes.



a tua escrita é um bálsamo para os meus olhos de sentir.


quem dera a vida inteira para assistir ao luxo do teu rio!



-------------sempre tua.


imf

Gabriela Rocha Martins disse...

meu deussssssssssssssssssss

levantando um pouco a cabeça por absoluta necessidade de respirar - ainda não regressei ao meu estado primevo de peixe - suspendo o olhar e fico muda

torno.me um tudo nada de mim para ser ,apenas ,um tudo muito do teu texto

magnífico

senhor

absoluto da palavra e do ritmo




.
um beijo ,ainda sem fôlego

isabel mendes ferreira disse...

soberbo o vídeo......



como tu.

Gabriela Rocha Martins disse...

a menina Isabelinha tinha de tirar.me as palavras

pronto .AMUEI

meu príncipe



.
um beijo