domingo, 14 de junho de 2009

Fernando Lemos [Eu, 1950]


Manhã. Sempre uma manhã. Direito ao reflexo do mais longínquo abutre. O cordão umbilical assombra-se na linguagem. Hipotético estômago do abutre. Ele ri. Vive. Não escuta ainda o ruído das páginas que lerá. Nem precisa. Nunca precisará. Pelo menos até ao mínimo clarão onde lhe há-de surgir o mistério do tempo. Nada em branco, infelizmente. Pensa ele. Confuso. Os olhos procuram janelas. Os outros. Um abismo retorcido. A sujidade das unhas. E a ácida amplitude do cérebro na cabeça. A controversa superioridade sobre o que designa de animal. Respira. Vive. Dorme. Acorda sem querer acordar. Planeia fingir querer acordar. O dia brindado com amnésia uterina irá convencê-lo num despertar inequívoco. Na noite que antecederá esse dia enumerará sonâmbulo as mais indecifráveis razões. Desconhecidas, a olho nu. De súbito o conforto. Uma estante cheia de livros. A boca lânguida a atear papel na fogueira da teatralidade. Cruel. De resto há muito que aprendeu a brincar. Consigo e com os outros. Fora deles para dentro de si. De si para dentro dos outros. Foi aprendendo a esperar. Assim se adensa, febrilmente, o mapa da sua concepção do tempo.
Beberrica o café no terraço. Sabe-lhe a naufrágios de personalidade. Acrescenta-lhe mais açúcar. Uma espécie de anestesia. As papilas viciam-se. Revê-se no filão de mármore. Delapida o semblante. Defronte à vegetação. O coração da clorofila. Hera a esbofeteá-lo. A rampa dada pela rocha escavada. A consciência da mão humana. O muro hirto que dela se levanta. Cerebralmente oblíquo. Memórias sumarentas de frutos silvestres. Cortes precisos. A mestria dos dentes incisivos. E crê sufragar a dor do ser vegetal, erva ou fruto, permitindo à gata o livre arbítrio de ferrar com fundura as suas garras no braço tenro. O equilíbrio. Bem arrumadas as dimensões paralelas. O câmbio justo da natureza sem adendas à moral.
Ânsia. Ânsia plena. Vontade de partir. Ele quer transpor-se. Superlativamente. Trespassar repetidamente o espaço físico até à aresta indivisível. Quer experimentar todas as cores da metafísica mordendo vagarosamente o círculo inato da viagem. Transpor-se massajando as têmporas da imagem a si devolvida que de velha e opaca lhe é no espírito renovada. Questiona-se. Imuniza-se gradualmente. Busca maior resistência ao veneno da memória.
A hesitação dum solavanco pulmonar. O que os olhos mastigam de agreste na serra. Reencontrar-se? Não. Matar inquietações? Tão pouco. Procurar a imobilidade. Aprender com as fragas. A lisura do silêncio. Ele mantém-se frívolo. Desenrola a magia das pequenas coisas. Procura a força da água na imagem acorrentada. Uma dissecção dos músculos da água. A torrente. O branco efervescente que entusiasma o cérebro. Vê-se traído num fundo macroscópico e simples. Sente um exasperante desejo de água gelada da montanha. Transmuta-se. Indomável. Olha. Uma paisagem onde deixar o espírito. Selvagem. A preguiça dos dedos. A língua presa. Inteiramente imóvel por um instante. Alguns pingos de chuva desvirtualizam-lhe o rosto. E no regresso tudo se dissolve.

2 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

QUE estrondo!!!!!!!!!!!!!!!

Que saber escrever!!!!!!!!!!!!!


Que

Que
Que....

tenho de levar o texto comigo para mergulhar fundo.




abraço-Te.

Gabriela Rocha Martins disse...

no espelho dos deuses

um corpo em sobressalto
ou frémito
nasce - HÉLIOS!


devolvo.te o osso
fico com a medula


e



.
beijo.te ,numa lufada de vento