segunda-feira, 15 de setembro de 2008

boca do mundo * Porfírio Al Brandão



ANOTAÇÕES DO EXORCISTA DESEMPREGADO

“Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começam”

António Maria Lisboa


o luar sangra copioso enquanto uma ninfa dá à luz pudibunda. a pele derrete num sopro desfocado coleccionando fungos enjoados da acrílica sede. encostado ao parapeito aprecio a fúlgida maresia de elementos. embebo um casulo no álcool e coloco-o no crisol em chama para reforçar a sombra da alvorada de cordel. estrangeiro em casa, a ruína repetida em cada palavra – de que matéria são as nódoas na túnica luminosa? sumo de tulipas negras ou sangue pisado? o problema é despertar a sombra morta do que já é morto.

saboreio o doce verso da terra em cada circuito oval circunscrito, no álamo em que sobeja a dor póstuma dos gestos. saboreio o que de sabor fede – a injusta verdade dos gomos insubmissos – arranco o eco aprisionado e do soluço de cristal a voz retrai para que no êxtase sincrónico dual, um outro ser puro e imaterial surja.

perante a abscôndita sinceridade carbonizada rompi com o diabo das miudezas vis e espumei clorofórmio ensandecendo. vivo a loucura febril das tardes de escrutínio – as sarças ardem solenemente. o vidro ameaça a veia cardeal e cabeças negam propósitos. deste terreno apenas se herda o húmus e a névoa inevitável do supérfluo.

este novo antro
este apetite elíptico
ou estrada relançada
ou abismo ressentido
inspira expira e morre
ciclicamente – recicla
a terapia da fala

mergulho no mar marmóreo onde ressurge a fisionomia. o lodo verde apodera-se da pele. bebo as cores dos olhos que fugidios embatem nos meus. espremo um limão verde na fechadura do acaso. como expressar o desprezo encurralado em cada cópula? lento visco a escorrer entre rostos que num tempo a tempo tocam-se solitários – a espera reanima o falso vagar dos corpos.

teias de seda cegam e o murmúrio aquoso silencia os gestos. os ecos afunilam-se. recebi notícias da outra margem pelo mensageiro negro e agora despeço-me atirando asfódelos até ajaezar o ínvio nado-morto... adeus.

este novo ser
esta estátua de lama viva
ou agitação obscura
ou decalque mordido
inspira expira e exibe-se
doente – vomita o bolor
que o persegue à noite


irrompem apotegmas do algodão translúcido que limpa graciosamente o coração de vidro. preparo a mortalha para o almoço. para a entrada indigestas reflexões metafísicas abrem o apetite. o pulso frágil repousa na mesa onde o pão desabrocha para as bocas intimamente rosadas. súbita fome verbal – mastiga-se o pão, mastiga-se a opinião – à mesa curam-se feridas corrigem-se posturas num vislumbre ósseo. as frases desirmanadas do suco medular são a confissão nas entrelinhas e os choros em argola, encadeados nas lacunas do diálogo arquitectado sílaba a sílaba, recriam uma memória colectiva.

não repouso nessa neblina acoruchada. consumo poeiras obscuras dum silêncio reduzido à orla imediata e, se da mão envelhecida se celebrar a deiscência dos esporos com o fúnebre desalento da memória alegre das coisas, sairei ileso ao desabar o solo carcomido. abro os olhos e entro na tertúlia imagística da sala vazia. os naipes arrevessados ao chão depois da notícia, o cego jejum da solicitude mesquinha – longe, neste lugar, procuro repouso.

uma vez mais
a formiga verteu
ácido sobre as pétalas
manchando com luz negra
tudo à sua volta

a pronúncia secular da cinza retrai o que próximo se acende quando denotada a alígera fecundidade da boca que, morta de desespero, cala-se enclausurando segredos dum calcário ardente.

uma vez mais
outra pomba morreu
em pleno voo
quando um poeta cardíaco
selou o poema caindo sobre ele

não digo do palácio de cristal renegado no sonho enquanto sopro diário. não digo dos fungos que sós assombram qualquer regresso nos pedaços de jornais velhos. digo dos dedos arqueados, digo do vibrante arco metálico que regressa do exílio.

abro os braços à agitação dos ventos do sul. persigo os pássaros que outrora desenhei nas noites em que a insónia me ensinou a dormir de olhos abertos.

tento emitir a argola envolvente perante a prontidão canora do vampiro enraizado no sangue que teme a volúpia exasperante das cartas a escrever. reconheço a lua na noite aquática, rezo ajoelhado perante a ulva macia de prata e sigo com o olhar um peixe que foge a trote; os dedos negros de paixão, unidos em oração, pedindo a anulação de imagens no espelho universal. enganado pela viuvez da imagem, assisto cabisbaixo ao simulacro da vulva póstuma.

neste antro nocturno, aproxima-se de mim o tosco anão verde que tosse agoniado por ter folhas secas caídas do castanheiro senil entranhadas nas cavidades respiratórias, e, jocoso e sério, segreda-me ao ouvido: «engole o botão de rosa».

a parábola repousa
na corola da flor
que madruga
adoçando o ódio


não mais do que isto: a zaragatoa aperta, o inóspito campo é povoado por flores-de-lis, a ronda precoce entoa os caprichos e a madeixa de cabelo é moeda entre inimigos. não mais do que isto. rodo a maçaneta e já não nego o tesouro mas a sua forma. ninguém dissimula a logística entranhada e os glóbulos jamais apagarão as éclogas consolidadas no ínfimo recolher de espasmos coniventes até à estância libidinosa que o coração engrandecido pressente a todo o momento. que memória devo guardar dos dias sem semântica?

a parábola como punhal
exposto no regaço inquieto
– crianças adormecem
no quarto que fumega

a relíquia sob a plena colina, o áspero colar indemne no colo, o labor floral nos braços... remexendo os sais me devolvo. o desenlace do argumento forjado a um passo do fulgurado abraço entre iluminados e dançando à chuva o sabre do inócuo ressentir golpeia o grito náutico – eis o espaço mínimo entre flocos para blocos que contrariam os focos. daquela tarde lembro-me da caruma morena do verão, do cheiro a hortelã que benze os lábios. nesta tarde resta-me a sede... o unicórnio abandonou o vale dos espelhos e, agora, corre a morte no rio.

de novo a corda ensebada, o visco arrasta-se nas artérias do afecto. a distância contida no aperto propicia a revolta da saliva metafórica que faz com que as bocas soletrem mágoas e esqueçam o beijo, magno artifício do prazer. abro a janela e emerge uma linha curva no repentino solo. escavo derrapando no escárnio e vislumbro a raiz no brusco clarão que incide na aguarela.

voo picado
sono moroso – drena-se
o paulatino veneno


os lábios não estão completos ao dizerem a palavra, mas o simples ruir das margens completam o sentido infectado do corpo.

três versos três facas
ainda não morreste? – alguém
será teu provisório inferno
PRANTO PELO CORDÃO UMBILICAL
“As nuvens explodem. Estamos no Signo da
Cascata. Porque as mães sabem tudo. Aguardam
sentadas o vinho dos mortos.”

Fernando Grade

“Mãe: quem me dera dormir tanto que voltasse a nascer...”

Jorge Fragoso
neutrões assumem o comando da matéria
cabeças vazias clamam o nihil
perdidas cabeças na pele
farrapo de células
os apelidos da infância humilham
aqueles que deram braçadas
no mar de saturno
facas estelares
atravessam os pulmões
que beberam o ar e a geografia abissal
a repetir uma e outra vez nos pesadelos
inicia-se a combustão
os átomos dançam em torno do fogo

entra e sai da câmara
o que és?
soletra «frio»
o sono longe e certa a faca do dia
sintoniza a cara de luz na avalanche mental
ouve o grito da imagem
esfaqueia a sombra do que se diz frágil
mas intocável

esfregam-se mãos na parede pintada
com o sangue dos vermes intermitentes
desenhos a lápis fino nos olhos apontados ao sol
a sujidade do mundo é vertiginosa
a beleza é subjugada pela raiva
ó mundo dos acidentes hormonais
bombardeado com motorizadas cadentes
vindas da cordilheira de meteoros
apartai de mim o jarro de porcelana que parti
e colei peça a peça com a cola dos lábios que trinquei
nas absurdas noites da paixão adolescente
¿como esquecer as roupas sujas
de lama e verdume de giestas?
o fim em cada luar
areia mastigada com desdém e antipatia egocêntrica
[o mundo selvagem]
cai a música
o açúcar da doença rapta o sorriso hipócrita
entre pensamentos planetários
os dedos já navalhas ferem as faces do rosto

mãe
a orquídea está cansada do orgulho
que lhe corre na seiva
mãe
expurga-me o veneno
a obsessão visionária é negritude discursiva
¿como esquecer o coração da viagem?

e se fosse possível prever
a órbita
das auréolas voadoras?

e se depositássemos
as veias
no antro estomacal do mundo?

e se largássemos
as mágoas
que causam anemia?

e se já não houvessem
os espelhos
da alegoria social?

e se prevalecesse a intercepção desmesurada
dos olhos onzeneiros
que sedentos esperam o desabamento do tecto?

e se a negra cor do pano
alimentada de medo
deixasse de ser a cor do sono comum?

mãe
vi Cassandra desolada
subindo a rua com a túnica rasgada
os pulsos rodando brancos
os dedos tacteando francos
o ar que já não respira
os olhos repetindo o poço de sangue que vira
o rosto esculpido pelo ódio
dedicado à besta que subiu ao pódio
– Cassandra arrasta seus pés
seguindo o trilho do sol pela última vez
mãe
vi Orestes procurando a víbora viperina
e nem Pílades lhe esgueira a sina
nem Ifigénia o reconhece agora
cada facada em sua mãe é hora
que passa recordando seu pai
com estima cega – o coração trai
o materno colo que de carne o adornou –
por Hermíone Orestes Pirro matou
e Cassandra soltou um sorriso maquiavélico
– Orestes carrega nas veias o amor bélico

o andarilho humanóide
festeja ensonado
a sumarenta denúncia
chove
e há quem se molhe por dentro
parafusos de cobre enferrujam na carne mole
do sentimento que veste os órgãos
suados de existência
chuva contrária
chove
e há quem arda por fora

mãe
o bicho-da-seda
encontra-se rodeado de agulhas
contorce-se de dores
quer sair e sairá
mãe
tenho dores por todo o corpo

monto o palco
forro o cenário com a pele
o mundo entra-me pelos poros
declaro único o lugar
[o cérebro da cidade dos homens]
único é o primeiríssimo lugar
– com todas as ossadas encaixadas –
no qual assisto à dança dos mártires do novo tempo

estar aqui
mergulhado no muco
lendo o vermelho da imagem
o sangue
sempre o sangue
digo sangue escorre sangue
e ele dentro
anima o corpo explodindo nas veias
o sangue
estar aqui
à espera que as vozes presas na minha cabeça
se soltem desobrigadas
para que possa escutar a mirabolante fábula
e desenhar os esquemas nas paredes amarelecidas
pelo líquido amniótico

dentro quente me sinto
as duas metades roçam-se com desejo
dentro possesso articulo os selos ósseos da memória
fora arde-me o umbigo
a musa esbofeteia o ar acima da cabeça
fora solta-se-me o cavalo de bronze
que amarga a língua presa ao meio

mãe
quero adormecer de novo no teu ventre


TOOLBOX

ESPELHO
da superfície plana a imagem plena
eu e outrém frente a frente
paralelos ao vazio quedamos atentos


SANGUE

ângulos advertem perigos geométricos
vermelho o sangue mata


CORAÇÃO

cofre de mágoas guardado por espinhos
cofre de pólen guardado por ossos

BOCA

a caverna húmida ecoa – a boca – adúltera
encarcera o segredo libertando-o


MÃOS

iluminam o que tocam
movidas por escura razão
– soldados nus dançam atrevidos


PELE

movimento limitado ao círculo delineado
a tarde de horas vestida – a sombra mancha
a pele


CABELO

lianas descem a colina sinuosa
almejam envolver todo o corpo
para que do casulo um novo ser nasça

OLHOS

janelas móveis para o mundo
espelhos irredutíveis da realidade mutável
esferas cristalinas incrustadas no altar do corpo


OLFACTO

o aroma chama – tão secreto seduzir – à porta
do palácio polpudo é nosso dever sucumbir
aos desígnios egrégios de tão humilde condição


OSSOS

articulam-se comedidos dobrando a carne a pele
jamais roçam o perímetro frágil do afecto
– o esqueleto insinua bifurcações da vacuidade


ÓRGÃOS GENITAIS

Profusamente Ébrio Navega Injecta Sémen
Vulva Aberta Gritando Inspira Natividade Abjecta

OUVIDO

auscultando o movimento intrínseco ao vulto de terra
no laboratório isolado de brancas paredes mortas
o ouvido olvida a pulsação primordial que une
as vísceras do ser às entranhas da crosta terrestre


ROSTO

ninguém adivinha o rosto com o olhar
por mais profundo que seja
ninguém o desenha de modo fidedigno
com seu lápis mente ou deslumbramento
sem que lhe imponha traços de outros rostos
ninguém conhece o verdadeiro rosto
e se alguém julgar conhecê-lo torna-se ninguém
FLORILÉGIO DO SILÊNCIO OBLÍQUO

RECINTO MORTUÁRIO

acelero a cor do pinho na alvorada que se incendeia
escrevo como obsessão última
arauto vibro
penso e viro o leme no que é pleno
mas inconcebível – a agulha sobrevoa
a pele – defendo a farsa das terminações nervosas
como preâmbulo declamado pelo gago a apedrejar
enxergo a linfa no gume
procurando o gato persa fictício
e sacudindo a poeira de alucinações
adopto o léxico do corvo

sei que criaram a verdade a partir da rosa murcha
e agora as bocas esfomeadas comungam-na
em círculo – a lampreia não sabe o nome de cada um
dos seus filhos – não me cabe corrigir o silêncio
sabendo que o peixe foi criado para o dislate
e que o agrilhoado decesso singra
no encontro dissonante em que visto
um rosto de prata
a tarde torna-se crespa com o glutinoso silêncio
festejo a solidão comungando rochas brancas
e amêndoas amargas
enquanto a mulher de água doce caminha sobre
o mar

observo o meu corpo aliás estudo o corpo
em uníssono – será o corpo a herança a profanar
no pálido recinto mortuário? – o corpo fez-se a partir
do silêncio que ainda orvalha na pele
tão triste a água que sobra
quando a força do beijo ósseo se torna agreste
quem morre numa boca em corpo se transforma
vive-se mastigando o pão da culpa vive-se
da lenta morte que aglutina grãos de pólen sortidos

a gota de mel alastra-se pesarosa no copo de cristal
e só é mancha quando esfregada na pele
daquele que a repudia e enxovalha
quando decalca o pudor salino que bebeu
dos seios marmóreos das estátuas
há muito esquecidas na ilha longínqua
que se tornou ferida negra do oceano imenso


CIO

amancebam-se os bígamos pois é etéreo
o caminho da paixão roxa – irá o corpo enlanguescer
nas núpcias como logro? amante ou locatário?
eis a dúvida da nova praia – a cama enluarada
é o leito fúnebre de Platão

o maganão de olhos esverdeados solta a fúria
na espiral dum beijo
lava-se no lago sagrado agitando as águas
depois do banho reduz-se a um cadáver
manchado de néon que conserva no peito
um ninho de aves de sangue frio

o edifício de açúcar erigido em tempos
entre as árvores de betão foi demolido
e resta agora o regozijo pesaroso
aquando a despedida das aves migratórias – o cadáver
acena com sua mão construída de musgo
e líquen – adeus aves perfumadas

DUAS POMBAS VADIAS

“Pero tú vendrás
con la lengua quemada por la lluvia de sal.”

Federico García Lorca

vislumbro o suicídio ao longo das tuas pernas
de te tocar falhei ao fingir falecer
a silhueta púbere sobrevoa
o que me ataca por detrás
espera
quero que saibas que não perco o rasto
do que voa rente ao chão

vem pousar nesta noite escura
amanhã virá a mãe do que se move
liberta-te desta casa
os olhos agarram-se ao chão
liberta-me também
pois quero acordar no aquário teu
acalma-te
quebra a cabeça de água
o outro mundo é apenas
um outro dia que não chega a raiar

¿quantas vezes amarrados
à cama resguardada do frio criador?
não consigo ver nada lá fora
a erguer-se calvo e serenamente cruel
neste amontoado de lençóis impregnados de saliva

éramos pequenos deuses rasgados devagar
quando selvagens na cama
para terminarmos mortos no chão

a síndrome das algemas de vidro ataca de novo

tenho-te nas veias
num espaço de luz penetras em concentração
entras radiante
a vida como rocha
o amor tão devasso
e um fio de chuva corre nas palavras

perdi-me ao perder-te em mim
nas minhas coisas poucas
amarguradas de forma tal
que o singelo movimento é
a propaganda horrenda na rua

o lado agoirento emaranha as atrocidades
duas pombas vadias
apaziguadas pela enfadonha submissão às regras:
sem lábios carnudos para beijar
sem poder de escolha entre aberrações
de algo que ainda não se conhece

distanciados por um interstício
dois corpos suados – a nossa juventude estreitava-se
na conversação imaginária – tu dormias
e eu contemplava a sorumbática descida
do milhafre
ameaçando a sombra do barro feito homem

o que de mim recolho pelo olhar retido
é morgue absorta do abismo detido


persistíamos na súplica de chegar a qualquer lado
ajoelhámo-nos
gritámos
dissemos que um dia mataríamos a lua
e afundávamo-nos cada vez mais
na areia movediça

aflige-me o cansaço de cansaço
a maçã acidula torna-se azeda
como denúncia poética
dos que foram condenados à vida

fim em cada qual
exortação insatisfeita do animal


foste-te embora
sei que levaste lágrimas escondidas
nos punhos cerrados
aqui comigo ninguém
dispo o nada visto o nada
troco o nada acontecido
pelo nada sentido
mergulho no rio – uma urna
flutua ao meu lado

irregular esta navalha do céu oceânico
ataca-me de novo um mar de vidro
um anjo atravessa a nado as minhas costas

a navalha foi cravada fundo


FALSO FOGO

chego tarde e trago falso fogo nos lábios
falaram-me da maçã sem corpo
e inocentemente esperei a mãe dos ovários de ouro
para lhe dizer que já não é bem-vinda neste mundo
refugio-me no umbigo da laranja que pousa
para a luz residual
dragões de fogo bailam silenciosos
despertando subtilmente a dor – parte dum corpo
a partir – dor que se arrasta dormente na carne
ainda viva
o silêncio que a doa é ruído
e o ser a roer-se por dentro chega a temer o pior
desejando incrédulo o esvaziado sentir
da dor – parte dum corpo a partir

FILHOS DA AVE TRAÍDA

não me lembro mas é como se me lembrasse
um enorme chorão é o marco do subterfúgio lilás
sento-me na escadaria e estalo os ossos dos dedos
estabelecendo uma ordem de pequenos progressos
a anotar ao longo da insónia numa pauta desenhada
no peito suado – a maresia lunar anima soluços
de terra e há um volver astuto que resvala em toda
a armação orgânica – ninguém cala a cálida brisa
que ostenta a crise absurda das moléculas
a sombra áspera é território a perder de vista
onde se travam as mais ridículas batalhas
como artifício de decoro a coroar o corpo
nascido da furna humidamente quente

não me lembro mas é como se me lembrasse
junto a mim a segurança soturna de goivos
encurralados na jarra de vidro baço
os dias amassados no tabuleiro para fabrico de pão
que provoca a amnésia parcial garantindo
a sobrevivência num calculado mundo insalubre
¿terão frio as estátuas erguidas pelos filhos
da ave traída que mastigam a neve e o gelo
quando têm sede? – nenhuma sede é saciada
ter-se sede de vida é ter-se sede de morte – e sempre
que a fome ataca rasgam a carne uns aos outros
carne de cor roubada a uma outra carne
¿de que nos queixamos afinal?

palmilhando a estrada do silêncio
a voz sobrevive atravessando a nebulosa – ouve-se
um oco eco
o comedido fonema – neste mundo
tudo causa gangrena e há quem dê por dar
o poema

BOCA DE ONTEM
e no princípio era o nada que ainda hoje é
de tanto dividir o dia chego a ver mutilado o sonho
sorvo a luz do estranho astro que povoa sonâmbulo
o espaço que por não ser meu pertence-me
e as pegadas lembram-me coalhos de lágrimas
soros aflitos sobre as palavras precipitadas

espelho:
olhos olham o olhar de outros olhos
eu feito tu sou eu sem o ser

os ossos rasgam a seda dos dias
e
a boca de ontem exala um olor a morte
LE DERNIER TRAIN
Jacques Prévert

il pleut
le sang pleure
le plasma diminue
¿qui nous regarde?
les étrangers de la nuit roulent
la règle est simple:
ne jamais se rendre à l’espace pétrifiant
à la gare mes amis
à la gare
on mange les ossements des autres
on ferme les yeux en parlant
la folie est morte à la maison
les enfants sont pâles
ils ne connaissent pas la vraie chanson de ce monde
ni le mot fatal
à la gare mes amis
à la gare
on part à la recherche du foie noirci de la lune
elles ne me disent rien
ces fleurs découvertes à la lumière étranglée
elles ne me disent rien
ces feuilles sèches de l’arbre brûlé
ils ne me disent rien
ces appendices démasqués des multiples insectes
morts par le nectar d’or
on n’aperçoit aucun vêtement de la mort
qui danse autour de nous
mais tout est dit:
il n’y a rien à dire

l´eau mortelle sur ce plastique ridicule
¿où être pour réussir à attraper l’étoile obscure?
l’illusion à connaître sans effort
le délicieux pain corrompu par syllabes
de l’heureuse marionnette dansante
à la gare mes amis
à la gare
¿ne faut-il pas nous sauver?

les fluides d’un cristal fragile qui souffre
dans toute la constellation
descendent en à notre rêve
le plus grand rêve
écho de la vie derrière des conflits fugaces
qui troublent la dernière phrase
avant la décadence organique du corps

la soirée jaunie ressuscitera le père de la folie
à l'égard du séjour que brille euphémiquement
les images brûlent en passant
des peaux ressemblent à l´argile frétillante
desséchée sur le métal malade
à la gare mes amis
à la gare
protégez vos têtes

voici le poison atrocement inéluctable
l’image définitivement déflorée
avec la poussière de chaque jour seul
sur la nuit nue métalliquement ouverte

en pleurant la ville s’asphyxie
l’aigre air ressemble à l’antique refoulement
fermé dans le crâne solide par l’orgueil
¿qu’est-ce qu’on fait ici?
à la gare mes amis
à la gare
allons-y allons-y

A CIDADE DO ÓDIO

tubarão entre tubarões no útero da mãe
irmão entre irmãos
o canibalismo uterino é a prova
o vencedor mergulhará para fora
e tudo se desenrola sem ódio explícito
o ódio jamais habitou o útero
habita a cidade
autêntico baile de gadanhas
o turbilhão em cada um e na multidão
ninguém sai ileso deste chão estrepitoso
cá fora perde-se o que veio de dentro
outrora imaculado
o silêncio da legítima ignorância
uma outra morte mas que nada decepa

pouco se sabe sobre o que realmente nos magoa

“A process in the eye forwarns
The bones of blindness; and the womb
Drives in a death as life leaks out.”
Dylan Thomas


a árvore falou com suas raízes de cheiro
e no ano seguinte secou – eu sou onde estou
nada a antever por agora
um vento novo vagueia
de hora em hora
as mãos enterram-se no cabelo macio
adormecem calejadas resguardadas
do frio
a noite é longa – viajo deitado perpassando
o paralelepípedo enevoado – não durmo
a noite é labareda de gelo
ardo acumulando no interior o vurmo

a água morta cinge o peixe morto
por linhas direitas o desígnio torto


1 DE NOVEMBRO

ergue-se uma nova multidão no cemitério amplo
a terra cheia de rostos – que rosto limpo paira sobre
as cabeças dos vivos? – não passa dum choro
a mais pequena flor orvalha sem o sorriso
dos que já viveram – o gelo atacou – outrora houve
um coração arrancado a ferros da fornalha
não era um coração era um búzio de carne
que quando soprado entoava a música
do fraco ouro que a geração dos assassinos
perpetuou – os mortos ainda gritam
os sinos pararam de tocar – quem está vivo
é já morto se não ouvir o seu próprio coração

a terra sabe a amargura de corpos que deixaram
de respirar – a terra é sangue – as flores nascem
as árvores irrompem do solo crescem engrossam
pela força da terra que digere os corpos
¿quando descerá a palma dourada que concentra
toda a energia que outrora animou esses corpos
agora húmus?

à luz da lua fluorescente o cálice de prata
colocado no centro da mesa do jardim
arrecada gotas de chuva para que na nova manhã
dissolvam as lágrimas esféricas solidificadas
de espanto nos rostos cadavéricos
e eis que nasce o dia em que se celebram os mortos
o sol desponta imponente – abre-se a janela
para se ver a montanha a arfar com nova cor

hoje não se bebe o orvalho de todos os dias
hoje e só hoje bebe-se o cálice de lágrimas

ORQUESTRA SEM MAESTRO

os tambores apelam à secura flagrante do crepúsculo
a cítara hipnotiza renunciando ao verso que cheira
a terra molhada
guitarras eléctricas galgam a montanha
e a descer violinos choram irritando a pele
a harmónica hostiliza o espaço pisado cautelosamente
saxofones esfaqueiam na escuridão – cegos
vingam-se robustos
o metal refina o sangue extorquindo a ferrugem
acumulada na jornada – os gemidos são dissimulados
pelo contrabaixo de voz grave e paternal

por fim o descanso
o piano ensina a ordem de todas as coisas
e depois o isolamento parcial para auscultar
a música do corpo desapegado da fala

LÁGRIMAS DE SANGUE

transfiguro o rosto com lágrimas de sal tatuadas
na mão aperto com força o gargalo de vidro baço
um queixo de luz esvai-se acima
dum outro rosto reflectido
com lágrimas de sangue vivo a escorrer
pelas faces abaixo

suculentas borboletas planam no espaço livre
do sótão
ao canto um baú de castanho por abrir
desmaiado sob o olhar da roda secular
saio fechando a porta e sei que as borboletas
se despenharão inanimadas
transformando todo o espaço num cemitério
de pedaços de cartolina recortados
em forma de borboleta
e minúsculas peças de madeira

há uma continuidade entre o corpo animado de vida
e o vácuo doentio que nos transcende
tudo se reduz a um sopro limpo
uma aragem filosofal que transforma em vida
tudo o que toca

da realidade frugal uma outra realidade abscôndita
o caos recomeça no ponto cardeal minúsculo
da afinidade conjugal de todos os corpos
adormecidos na paisagem interior do sonho
tornado carne focada de modo abstraído

o diafragma invisível trabalha
rodeado por músculos que formam o pericarpo
dum fruto que incha fuliginoso

a luz gera-se no interior
e é conduzida por um canal estreito
até ao ostíolo – porta selectiva – de lábios
morbidamente encarnados quando fechados
mas que abrem diáfanos
deixando transparecer o sangue vivo em apoteose
quando algo emerge da paisagem externa
e navega subtilmente através do fruto
transformando-se em nova paisagem interior
outra luz

a terra dissipa o vapor enamorado
pela força dos astros montanhosos
a música das esferas anima esculturas vulcânicas
e a orquídea respira com dificuldade
tem sucessivos ataques de asma
perante plantas demoníacas e ervas guerreiras
que banidas do reino floral colorido
respiram arquejantes e dominadoras

as pétalas do lado negro
vivem manchadas pelo orvalho contrafeito
as pétalas do lado imaculado
vivem manchadas por lágrimas de sangue vivo
que escorrem lentamente para a terra
habitando-a definitivamente

o hálito da terra é acre
assim como o paladar do sangue na boca
que pulsa ainda vivo pelo remorso

“Estalaram os botões dos salgueiros.
Um bafo húmido-lilás turba e perturba.
A primavera toca mais fundo na loucura, revolve
os vivos e os mortos.
– Todos deitam flor.”
Herberto Helder
não adianta renunciar à dádiva comum
dos anos alinhados pelo espaço húmido
que nos dilacera – boca do mundo – a nascente
de saliva
caldeia as enigmáticas esculturas aprisionadas

¿será o jardim a súmula da fantasia empoeirada?
o contrapeso das jornadas manchadas de sangue
e suor?

visão alucinante quando se espreita a primavera
estação na qual plantas desossadas florescem
rendidas ao bailado dos insectos que zoam em coro
e o jardim
é ele próprio um oceano
as ondas foram substituídas por corolas
que abrem sincronizadas durante o dia

uma tarde sob uma outra
os olhos comprometem a terra
cintilam tremores nas pétalas das açucenas
as peónias abafam a papoula solitária
mas eis que a hera rasteja cautelosamente
serpente vegetal enrolando-se nas peónias
sacudindo-as até cuspirem as ninfas envergonhadas
para o chão que se mancha dum pó dourado

nesta tarde as lágrimas têm cheiro
Apolo chora ainda
chora desprezando o atento girassol
que cresce opulento no solo empanturrado
de melancólicos desgostos e sussurra repetidamente
o nome duma ninfa da água
Apolo chora com um jacinto cor de sangue
a roçar-se-lhe no peito – as dedaleiras
dançam sarcásticas e acusam Zéfiro
uivando com suas inúmeras bocas

todas as flores têm tatuadas nas suas pétalas
um rosto divino ou humano
e cada uma tem o seu sangue em que o plasma
é composto pelas lágrimas derramadas de quem ficou
e viu partir quem amava

tudo é construído pela dor escorregadia
(o navio de cristal cavalga na alucinação
breve emaranhado de sombras indescritíveis)
denunciar o rebento que a todo o instante se altera
torna-se manobra da paixão quebradiça
a falecer nesta enseada doentia
e que
ao apagar-se na sombra da mulher que vestiu
as pétalas das flores murchas
o navio de cristal esquecido entre a relva embacia
esse mesmo navio que limpo
amplia a flor que repousa no chão
flor cruelmente decepada que ainda
não partiu deste mundo

quando o dia se reduz ao crepúsculo
o sol não é mais do que uma ciranda de brasa
que anuncia o fim de tudo

ENIGMA

saia o último clarão do vidro fusco para que vingue
a tarântula sensual morta no ventre da página
os cômoros são falsos assim como o olhar húmido
do estrangeiro em nossa casa de fluídos e cartilagens
de parte em parte a dívida pelo comum
não há palavra com o equânime valor do gesto
mas a semântica dos afectos não acorda os mortos
um mastro de cristal condena os espectros
ondulam anjos de sal na intempérie pardacenta

adoeço à chuva procurando o lírio
que outrora cresceu com o meu choro sofrido
entro no portal de vapor e de súbito
a opção como ameaça: o texto ou o fruto
o fruto do texto ou o texto do fruto
e depois o enigma: as sílabas dos frutos eleitos
cruzadas ao acaso – escapam fantasmas
pelos meatos – ainda não eclodiu o cisne das nuvens

concluída a criogénese gigantescas crianças de gelo
apressam-se pelo corredor armadilhado: géiseres
vulcões em erupção
chuva ininterrupta de bólides pungentes

o corredor é estreito como lâmina do presente
com inúmeras portas de mármore róseo trancadas
escondidos nas esquinas de marfim
os esqueletos de animais extintos
surpreendem as crianças e elas gritam e esquivam-se
à luz dos olhos de quartzo das estátuas plúmbeas
encostadas às paredes do corredor que humedecem
com o sangue das crianças
e estas derretem progressivamente diminuindo
de tamanho até se evaporarem por completo

outras crianças abrem seus gélidos pulmões
à aragem de morte devolvida por sucção
da outra margem – negro e trémulo círculo
ao fundo do corredor

IMPÉRIO DE CAL

estás sentado – lês – uma tulipa nasce-te
entre os dedos do pé esquerdo
magoada acende-se roxa para ti
continuas a ler para não confessares ter visto
ergues o império de cal no cérebro desprezando-a
e a tulipa explode

sabes-te culpado
soltas uma pequena gargalhada cruel
que engoles ávido sem transparecer
qualquer sentimento de culpa
ninguém te olha mas é como se estivesses
entre a multidão que te julga a cada suspiro
não lhe tocaste nem tão pouco a viste
sentiste-a entre os dedos do pé esquerdo

agora
entras na cave dos excessos onde escondes
o que mais de visível apresentas na tua conduta
experimentas um silêncio corrosivo
e tal silêncio é dor morrente

sentes fome
e só te lembras dum pólen que não provaste
tentas adivinhar-lhe o sabor
mas nenhuma boca adivinha o paladar do sémen
duma flor

nessa tua cave tens um frasco onde em menino
colocavas as corolas arrancadas às flores
com inocência eversiva
mas como foste gastando o que angariaste
nesses teus verdes anos
o frasco encontra-se agora vazio

já não regas os teus dias
com o pólen da tolerância unânime
e vives amedrontado
rodeado por paredes de vidro

SONOLÊNCIA
“Não somos nós quem dorme
não somos nós quem morre
quando as pálpebras pesam
é o sono que morre
é a morte que dorme
quando dormimos nela”
Gastão Cruz

o alvoroço infernal governa a planície do medo
e seus herdeiros não degeneram
cumprem o ciclo
cada um por si neste jardim de espelhos
corroídos pelo ácido solto
entre breves olhares disparados
em ofensiva
bípedes esbracejam ritualmente
neste salão pavimentado de azulejos negros
em que a medida do vazio
é a medida do frio
enquanto decalque sobre o nada
os bípedes dançam
orbitam aturdidos em elipse
o que os segura é o medo
esse líquido que corre nas artérias da ignorância
a viagem
a derradeira viagem inesperada rasga a noite
descansar é substituir angústias
conquistar velhos castelos em ruínas
abandonados na infância
o fôlego é maior na solidão
a moldura gira em torno
das mãos
e verte-se o líquido azul
sobre a pele – essa manta gelatinosa
que se veste à justa – sussurrando
a última palavra da frase ossificada
à beira dos lábios

¿que afecto o sono
prende?

fungos guerreiros do sono assemelham-se
a constelações
e o escárnio cru de seres irreconhecíveis
compõe a partitura que acompanha
o desmoronamento do corpo
até restar apenas lodo que lento se move
e respira dissonante
sob a égide das quatro paredes
do quarto escuro trancado

abrindo as mãos
o corpo entorpece
como paga do que se apaga
nos olhos cansados
e depois um leve sopro coincide
com a brusca
queda
do tampo

¿que confissão o sono
prende?

TERRA A TERRA

as mãos nuas carregam o trigo dourado
e o rosto não é acaso
é essência figurada – ardem as vestes
mas a feição é implacável e crua

o coração soluça na terra
vivo sol a sol sobre a cinza
respiro e morro em cada suspiro
as mãos ardem por dentro
mesmo antes de serem mergulhadas no fogo

olho a terra sinto o sangue
sorvo o elixir de tão invisível condição
soletro a palavra «terra»
T-E-R-R-A
Temendo Esconjuros Ressuscito Raízes Antigas

grato labor nos dá o labirinto
a colheita negra é nosso orgulho
deste chão ergueremos nossa face

uma voz sussurra:
«recebe o cordeiro de ouro em tua casa
cinge-o com a luz da lamparina acesa
e quando sentires que é carne à tua imagem
carrega-o nos braços até ao altar»

um muro branco se adivinha
ao se medir metro a metro a estampa
do que se vive pisando
e quando às mãos descem o pão o vinho
mastiga-se solenemente a renúncia à seara à vinha

meço com as mãos os frutos do sol
caio
a queda em flor
do que digo sobra-me a tesoura
os dedos circundam o umbigo
é o tempo é a hora
terno é o mando embora ilusório
PERIGOS GEOMÉTRICOS
OBRA
...............quadrado...dado...quadro
...............u....................................s
...............e....................................t
...............b....................................e
...............r....................................n
...............a....................................s
...............n....................................i
...............t....................................v
...............obra...exposta...a....cobro
PAIXÃO
...............o.....c..o..r..a..ç..ão....e..m.....a..p..e..r..t..o
.................d.........................................................i
....................a...................................................c
.......................r..............................................r
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...........................ombreia.a.asfixia..a..dois

CASA
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........................r...............................................................d
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MEDO
...............................o
.........................m........d
...................e.....................e
.............d................................z

.........o......n......d.......u.......l.......a

CICATRIZ
.........................não .se .ouve .o .coração
......................a.......................................n
..................d.............................................d
...............a....................................................e
.................v...............................................d
....................e..........................................i
......................restos: ..legítima..cicatriz

ÁRVORE DOS SOLUÇOS
“If the lost word is lost, if the spent word is spent
If the unheard, unspoken
Word is unspoken, unheard;
Still is the unspoken word, the Word unheard,
The Word without a word, the Word within
The world and for the world;
And the light shone in darkness and
Against the Word the unstilled world still whirled
About the centre of the silent Word.”

T. S. Eliot

“olha em redor dos bosques as veredas destruídas
pela explosão devastadora das minas e ouve
as vozes límpidas morrerem no poema”

Al Berto

eu vi o terror
entranhado nos olhos que matam
silenciosamente
vi a carpa gigante cortar o muco
às postas
calculei por palavras
réplicas da cidade destruída
vi corvos em reunião
com etiquetas suicidas
nas garras

abriu-se uma fenda
no paraíso de betão
os culpados serão punidos
cada um a seu tempo

cabras com cornos de aço
perseguem agora o desertor
que executou as tarefas macabras
– a cidade dizimada

a eira ao abandono
regresso despedindo-me de tudo
quanto foi alegria lilás
as velhas portas apodrecem
como eu apodreço
a cada rotação da terra
foi-se tudo
o tempo róseo dum eixo
que hoje é cicatriz no queixo

carrego a carapaça de calcário
deste tempo
bebo desconfiado o delírio fecundo da noite
enquanto ouço o ziguezague oriental do zinco

dou por mim às avessas
os órgãos expostos
espio-me a mim próprio
¿brilhará a nobreza
do belíssimo fruto cínico
acariciado pelas egoístas mãos?
ou será o brilho a desonra
a fugacidade rediviva que cega
esbranquiçando os olhos polidos
a cada imagem que passa rente
com sua acidez?

abro uma laranja rasgando com as unhas
a pele grossa
leio o texto humedecendo os lábios
com o sumo dos seus gomos violados
gostaria de sentir o mais pequeno remorso
ao beber o sangue deste fruto
ao ler os seus versos

secam as fontes
a alcateia à espreita
bocas tão bocas
os sons da garganta estragam palatos
morrem animais

eis que chegam os narizes de sangue azul
– as grades sujas de esterco
e sangue amarelado

¿quando vingar a cor do dia?

a rua
nua
a noite
noutra rua
o dia

se um som
se um mesmo som ouvisse
sem a voracidade mental
se fosse quem fosse a própria pessoa
escorregando no som
e se nesse mesmo som
eu ouvisse a ouvir-me fingindo silêncio
repetindo o som com os lábios feridos
a língua exausta
os dentes a corroerem-se progressivamente
se nesse mesmo som eu me ouvisse tanto
que me deixasse de ouvir
poderia gritar
– rasgando o véu desse limpo som –
a fórmula do novo silêncio

ao descer descalço a montanha
a alma do alcatrão surgiu-me disparando
seu olhar como bala obstinada
e outras também o fizeram no mesmo segundo

após o tiroteio negro
desenhei a face escavada do estranho eleito
entre muitos que agora habitam o corpo
e senti o corpo a seu corpo
outro corpo apartado do corpo legítimo
mas dentro – nada nem ninguém
se apodera do sangue

extraio o ácido da árvore dos soluços
na camisa uma nódoa de sangue fermenta
como dístico na amputação do sonho
antigos demónios tatuados no peito
são o único testemunho da catástrofe do inverno
relembrado com o incenso das manhãs de nevoeiro
sorvo a luz
a cabeça húmida de suor e perdido o bulício
encolho-me: esqueci-me dum nome
que me beijou junto à cama
esqueci-me das três sílabas
o nome da mulher vestida de lua

cito a perícia da plebe gemebunda sito no mundo
[as mãos cosem as tiras de carne uma a uma]
cito a frase que os pulmões golfam
a ventania oblíqua encolhe-me a cada momento
dedilho os ossos fictícios que arqueiam
debruço-me cansado sobre a terra frágil
que à meia-noite se alimenta de folhas de videira
e galhos secos que estalam como dedos nervosos

a pele queimada
o sol raia louco empobrecendo a luta
– não se vê a armação de metal –
o prazer é ilegítimo
o cardume silencia a lagoa
a rosa murcha no berço do vácuo
e num milímetro visual
olhando em frente
um abismo de decalque
sobre o esvoaçar de andorinhas
tíbio disparo sanguíneo

a trágica açucena ergue-se entre as patas
do quadrúpede unicórnio
[a enxada assina o declínio da abóbada cinábria]
e espreitando pela janela armadilhada
meço a força da água no horizonte
– esquecida a terra do elo semântico
as vicissitudes dum outro tempo
tornam-se estranhas à razão

um novo arco de cal e a epiderme retrai
parcimoniosamente
as linhas ósseas intersectam-se em movimento

– assim vivo com os lábios negros de beijar à pressa

A REGIÃO DO FANTASMA

TRÊS DEDOS

a orla engessada
os pés criam musgo
na meia o brinquedo
a lua atinge o medo
SENHOR
quero três dedos a apontar a vitrine
mora lá a minha voz de criança
a retinir o passado
que as geladas mãos adultas amarrotam
FREAK
gaguejo sagrando sob influência solar
oriento as mãos para o gesto luciferino
KILL THE ROSE
eis que venho denunciar a rosa
queimando saliva
a memória em tornado
a genética dita a cadência dos enigmas
ADN
não quero acordar o peixe de fogo
que há muito habita o arco-íris do ódio


OFERENDA

treze virgens menstruadas
festejam com as luas
poças de sangue
rolas desordeiras
suam na opaca noite
ÁMEN
eis a vítima do ópio sagrado
mulher trasladada para o sepulcro
CAMA
as pernas estremecem
as coxas apertadas esfregam o sexo
os corpos olham-se
o corpo sobre o corpo
corpos
untos derretidos
FUSÃO
guelras para respirar entre lençóis
as orelhas mordidas por impulso carnívoro
ALVOROÇO
os ouvidos morrem
os corpos apagam-se com gemidos
ORGASMO


INVENTÁRIO PARA...

UNHA
negra
OSSO
branco
ISCO
infalível
bando de abutres calculistas
herança de fundamentalistas
da terra à água
da boca ao ânus
estrume nos lábios podres
janela de hálito ogro
pesado mistério tão sério
como a gaivota comendo alcatrão
iluminação precoce do abléfara
eis a lição
do
PARA

TROVA DE ATRIÇÃO

AI DE MIM
disse
ou brinco
com os teus cabelos
queimaste-me
e eu rasguei-te a saia
a noite não te come
quando assim estás vestida
AI DE MIM
disseste
ou evaporas
sem deixares qualquer rasto
não passas dum espectro
então
não te escuto
escreve a tua presença no espelho
com os dedos suados
eu espero
AI DE NÓS
disse
ou disseste tu?


EXPIAÇÃO

a cavalo cintilo ausente
saqueio fermento às musas
CULPADO
falo por sílabas de luz suja
a mão direita bate duas vezes
no peito
ABSOLVIDO
mantenho a pose surda
uma onda de sangue
resvala sobre o cérebro
digo o que está dito
quando muito não dizer
é imunizar a palavra
dizendo-a em silêncio absoluto
sem abrir a boca
SINAL DA CRUZ
perdoai querubins
a indecisão do ser menor


VAU

eis a incumbência basilar
dum luto planeado
ONDE ESTÁ O CADÁVER?
anteontem a terra
sorveu-o desabrida
esguichando
sua linfa venenosa
instituído o sobral pontiagudo
o verso estaca
e a charrua indaga díspar
QUEM MORREU?
cadáver anónimo
a constar nos autos
cadáver anónimo deambulando
entre pesadelos húmidos
QUEM ÉS TU?
surdo
caminha na passadeira de sangue
até ao interruptor
OFF


VÍRUS

demarco a tatuagem
interstício da linha agridoce
as línguas em euforia
AGORA
um olho de vidro
a doença
MAIS LOGO
o silvo de bronze a morrer
na garganta do irmão terráqueo
AMANHÃ
a cura descrita num papel amarrotado
receita milagrosa ilegível
os destroços mutilam a consciência
JAMAIS
assistiremos à cabal destruição do vírus
a palavra o gesto a paisagem o homem
tantos vírus ou apenas um
nenhum
[é este o vírus]

CHÁ DE CINZAS

sobre o que sob o néon
sobreveio no escaldante serão
lamento o rodapé da charada
vinho a escorrer nas paredes caiadas
palma contra palma
PALMAS
o avejão baila na rua
com a cabeça na mão
baila bêbado
nem sequer sabe que não existe
[existe portanto]
agora grita assobia geme
STOP
a cicatriz em sangue
num lado da boca
as malvas guardadas
no outro lado da boca
o calor a brasa a chama
convido-vos a beber
o meu chá de cinzas
SILÊNCIO

ENTRELINHAS

(!)

verde
de cair
a boca

(...)

outra
margem

(...)

o leão
indisposto
como tapete
dormente

(...)

a sirene
soa


(...)

os lençóis
no chão

(...)

tarde
o arrepio
a tempo

(...)

a tábua
resinosa
intoxica

(...)

o suor
[água
com sal
mordente]
o licor
sufragado
do corpo

(...)

o cérebro
alcooliza
o humor

(...)

o corpo
sonâmbulo
pisa
a passadeira
de flores
secas

(...)

a esquina
reluz
[ainda é
tempo]
a fome
aperta
os espelhos
movem-se
na sala

(...)

o vício
da ferrugem

(...)

dor nos
membros

(...)

a poesia
(le)prosa
ensombra
o quarto

(...)

o cadeado
esquecido
entre dobras
de papel
a chave
desenhada
no crânio

(...)

elo iludido
sem os
cem vocábulos
do fuzilamento

(...)

dança
a vespa
entre
as capas

(...)

jejuando
o ser
suicida-se
a mastigar

(...)

a floresta
dos sais
negros

(...)

a sirene
soa
novamente

(...)

o vento
maligno

(...)

as bocas
denunciam
tudo

(...)

a valsa
de fogo

(...)

tudo escurece
ao contacto
(...)

a floresta
dos sais
negros
único refúgio

(...)

não tarda
o coração
enegrecer
por completo

(?)

CUBICULUM

“Silos de prosélitos como fruta podre
que eu avisto da minha colina rachada pelo meio.
Desço, plano e pico
voraz,
é o meu farrapo de carne narrativa...”

Paulo da Costa Domingos


“Às vezes, entranhando-me num espelho, consigo dar
nele duas ou três braçadas sucessivas.”

Luís Miguel Nava

persigo a alta onda serpenteada
finto as lâminas recordando Ícaro
enveredo pela espuma decantada
percorrendo toda a casa onde pícaro
objecto procuro enquanto isento
lutando contra paredes que invento

um sismo no corpo, fluido mosaico
esperando que um rosto boquiaberto
saia como vareja vil do estio arcaico
planando a flora do coração em aperto;
o corpo arde por dentro e treme por fora
espera o sopro criador cavalgando na hora

incrédulo peço morosamente a mão
a mão povoada por líquenes cinzentos
que sombrios desafiam o cogumelo são
cujo talo é pétreo pelo som dos ventos
mas oco e frígido e de sangue vazio
escondendo bem fundo o nó bravio

a mão pousada convida os insectos
o desleixo é seu eixo, doce morrer à sede
enquanto a água oculta ditongos secretos
o monstro torna-se escravo; e o sol? vede
como desperta a cor da inaugural mistura
de sonhos e límpido sangue que perdura

impunemente a cortesia para a inimizade
porque no lacre tudo provoca a erosão
e eu peço a pegajosa demora na assiduidade
o refluxo hábil entre o estômago e o coração
para que as imagens elegidas pelo tacto doentio
aflorem selectivamente nos sonhos à beira do rio

embraveço mirando o pescoço cuidado
temendo os cactos letais da face ingrata
foi porque falaste, ó tu com ar de danado
que vestes o luto e enrolas a luz na gravata
ó tu que és sola da noite e tampo do sol
não cantarás inocente no meu secreto atol

onde vislumbrar a estrela cinzelada
nesga de luz a caiar ou morder vocal?
onde achar o filho pródigo da alvorada
quando a memória inspira cuidado tal
que a álea entre o passado e o presente
torna-se casa incendiada pelo poente

os famigerados cadeados riem-se calados
o que sobra? réstia de sangue como lágrima
de monstro marinho para sonhos estereotipados
e o lado sangra o tu real, a cova após a esgrima
o tampo abeira-se em alucinações como simulacro
efígie sublimada sob a língua crua e o paladar acro

palatos confundidos com úmeros, o sono da criança
apressada para o célebre abismo célere e a corrente
enfreia a ânsia atrevida na sintomática esperança;
nascer aleijão com gomos capciosos, dócil doente
é ser laranja azeda num pomar ominado mas vivo
ou vã elite causticando num cerco familiar estivo

terreando sabendo do nó brusco que padece ao frio
longe do ventre tem o vento o ar a água morta
terreando sem que a maré suba com sábio estrio
sem que a longa palma pronuncie a sentença absorta
de modo subtil mas com a força bárbara permitida
exalando um olor lauto no hexágono cerrado da vida

jorra a fonte e eu, só, em plácida noite refugiado
guardo minúsculas pedras frias para um colar
algo para alguém ressuscitar ao manejar o cajado
alguém ausente, perdido no meu corpo a chorar;
o abrigo é único regozijo fiel à traição viável
e nesse antro, o nada sentido é o tudo inefável

trauteio a culpa na viela arrojada em pleno olhar
minha fracção vítrea resplandece inquieta e voraz
húmida sobre a imagem, atenta no insólito vibrar;
a luz sob inflexões aquosas e depois o soar mor traz
sílabas cheias intactas por desbravar e enaltecer
até ao clarão negro até ao branco atónito até morrer

entre rostos a distância do enigma em pensamento
a corola ausente e um punhado de pólen surripiado
galhos em vez de dedos e uma fogueira arde, o vento
ousa desvirginar os negros cabelos da mulher ao lado
o paul escuro seca perante as montanhas do alvor
até cobiçar a água dos vis olhos improfícuos da dor

a brasa acesa do infortúnio, intermitente, o sono
ambígua vontade sobre o côncavo lacre inseminado
longa vai a tarde nesta praia de areia sem patrono
onde recito a exígua culpa soletrando-a queimado
os lábios a arder e a estrela comovendo-se solidária
– o probo queimor torna cativa a condecorada área

ardor no cubículo amestrado em tempo de guerra
sei do campo de flores regado pelo fluxo enjeitado
traduzo-o em movimento lendo a boca de terra
protegida por árvores guerreiras cumprindo o voto;
por não caber na forma do outro que sempre analiso
não confio no nome escrito na doce neve que piso

o nome sujo por simpatia esbelta, erro do costume
platinar o medo amolecendo a ardósia do pericárdio
para ter sede no vale irrigado pelo osmótico lume
da paixão de dois gumes aquando o beijo precário
e o nicho ofegante da enigmática sombra bendita
não supera o vulto sublime que sofrendo crepita

uma concisa nota menor no dorso e escuto
o imaculado ditongo onde a obnóxia lava
assume a contrapartida inibitória do arguto
manancial de retrocessos nos quais a clava
perpassa domínios intrínsecos à abjecta falácia
minguada no sorver aleivoso, na dual eficácia

deteriorando o difuso tapete, o chão já sublimado
a súplica racha quando se dá a desova de lampreias
e a mórbida elipse da denúncia aceite como achado
arrecada o livre suco desamparado de efémeras veias;
o semblante serena com o exotismo megalomaníaco
enquanto se limpa parte do cinismo hipocondríaco

meditabundo na dor, envolto na cíclica nuvem
claustro perene intacto e nem sequer uma fracção
de incenso ardida remando contra o que se tem
proferindo à terra o monólogo da reivindicação
– rei sendo escravo de si próprio quando chora
homem de não saber a palavra que só ancora

um naco da árvore, sóbria dissolução da azáfama
ravina escarpada, serosa do eminente arquitrave
e largando de antemão as redes na água da chama
uno as mãos imbuídas de nácar trazido por uma ave
permitindo o silencioso denegrir da grafite herdada
e beijo, prudentemente, a extensa fronte inflamada

outra foz, labaredas no vazio sepulcral
cinzas confundem o autêntico paladar
nem prato nem talher, o axioma do mal
apenas um púlpito antecedendo o cessar
a reunião de elementos como certo mando
dum líder só, entre muitos de si, chamando

iões amargos na boca alugada, o de dentro brada
não se acende, a sumptuosa amada não se evapora
e eu, bicho entre bichos, aflito por ser espúrio nada
nego a própria negação e a locução é grito no agora:
a única realidade neste desperdício de terra e fantasia
o único pão que corta como espada ao olhar a fasquia

ouvi dizer que a fera soltou-se e não encontra o dono
derramado nos lençóis tento falecer de novo na noite
a fera espera no outro lado para atacar-me no sono
dançando sedutora ao som metálico do aéreo açoite
– o pautado corpo fulgura num assaz faiscar errático
longe da fera comum que abalroa o mundo prático

enfrento ansioso a lua manchada de urina celestial
sintonizo a maré nocturna, cometas como peixes
ajoelho-me e relembro a água salgada e a areia dual
arqueio-me abraçando o cadáver suspenso – os feixes
de energia no mínimo e a secura invade a garganta –
o negror ostenta a luz aspergida que dócil me levanta

rara, a erva verde na cal da boca e tu a um passo
não falo de amor, falo de corpos em combustão
das cartas amo mais as cinzas e o terno embaraço
ridículos são os néscios madrugadores da paixão;
prefiro a alvorada como temporário leito de morte
e a fusão de lágrimas como ouro matinal da corte

caindo na imensidão dos múltiplos ícones flagrantes
traio-me impaciente observando a compulsividade
dos elementos cúmplices na entropia, mui cintilantes
– convexos adversos desconexos – presos à afinidade
o vácuo como premissa da frenética criatura vassala
alfa e ómega no cerne do lume, ínfimo clarão da fala

ter o túmulo como cobertor, a vanglória de poder
cheirar os mortos, dádiva ao conhecê-los na esculca
após a viragem ou conversão química, puro morrer;
o beijo fica deixando-se ir, antro respiratório da culpa
dissolvida no rubro charco das tácitas diatomáceas
– tudo escrito na tábua, coeso turbilhão de hemáceas

necessito de chuva nestas palavras e o céu azul
nostalgia indigente, voz no vazio vácuo musical
era pressuposto entrar o coro – frenesim do paul –
acompanhado pela cavernosa guitarra do vitral;
os amantes suicidam-se e cai lento o áqueo pano
escusados são os berbicachos ao redor do engano

uivo à claridade duma fictícia lua ainda alucinada
não espero nada em troca de silvos desenxabidos
clamo e nada mais a morrer nos braços da enseada
agonizo perante o arder do enxofre de cabelos tidos
como fósforos a acender na fiel madrugada algente
– gaguejar perante a estátua falante é ser inclemente

prevejo a tertúlia cerebral e trincolejo sarcasticamente
medusas dançam à volta e largo as rédeas já cobras
espreito pelo orifício esgravatado quando só, doente
não arrecado estilhaços de saliva nem ásperas sobras
escondo-me aquando os bocejos, almofado os ossos
e faço parémias crivando punhados de terra de Cnossos

o cão e a pulga de O’Neill acordam-me, o orvalho pende
colchão frio: ardósia da noite de improvisações canhestras
arrepio-me por não saber os truques do desabrido duende
e atordoado pelo assobio da flecha enxoto moscas destras;
pecados geram o tumulto que forma o diamante a entrever
à janela da palavra-flor escrita no ventre luzidio da mulher

pressinto a gula subindo a escada até ao sótão dos gritos
rei sem reino num mundo limitado mas infinito colossal
os juízos enferrujados recordam o sangue insidioso de mitos
a loucura eremita de novecentos, a mestria a fugir do sal;
debruço-me e cheiro o pó até se tornar licor para o beber
estendo o sorriso e recito antiquados sonetos ao entardecer

vagueio com o purpúreo manto apaziguado pelo uno coalho
a poesia povoa a pele como escama despertando os répteis
danço asfixiado no antro cheirando o que morre no soalho;
durante o sono os avisos dos profetas servidos por azeméis
estremeço só de saber a errância maligna da vã carnificina
– talvez subestime o olor das noites com lua purpurina

ergo a taça sabendo que dela não beberei e lamento
o valor das balas fundidas, sangue metálico, ardor
de vítimas por todo o mundo a curar num tempo
purpúreo tempo das imaculadas feridas sem dor;
receando a ruína da alçada repito as palavras ardidas
crendo na sombra omnipresente de peles sofridas

em surdina devolvo o arrebatado divagar
a lembrança como precoce estímulo tardio
mães choram no cais com derradeiro vagar
e os gestos do poeta no crepúsculo sombrio
salgam as lágrimas da rota com flores estiadas
– álgido é o leito amargurado de glosas recitadas

vou deixar gerânios sobre a mesa, depor a casta mão
que afaga estes versos banidos do solo, estes versos
manchados de fúria desavinda tão real como a canção
que chega aos ouvidos de alguém a errar nos reversos
da nervura folicular colhida a frio no átrio da alegoria
vigiado pelo guardião que vive a noite temendo o dia

domingo, 14 de setembro de 2008

O Príncipe Nu * Porfírio Al Brandão

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Mário Cesariny

CHAMAMENTO

levanta-te do chão
morde as palavras soltas
prostra-te agora
e ajoelhado agarra toda a terra
até sentires a lama a causticar os ossos

pulveriza as máscaras de calcário impostas
e erguendo o rosto caminha em direcção
à silhueta de lume que pulsa
entre os ramos da árvore sibilina

CAIS

de volta ao cais
onde outro beber sobe
a colina de água e cal volátil

branca face do disfarce a desmantelar

de volta ao cais
onde gaivotas sortidas agitam
a maresia com lustre oco sob as palavras

o navio ao longe e o náufrago em terra

de volta ao cais
onde a névoa sanguinária precipita
o saudoso laranja estilhaçado

cravo em surdina recordando o beijo árido

de volta ao cais
onde o retorno monótono se repete
como uivo latinizado para recreio inócuo

a lepra paira ainda sobre o jazigo inconcluso
OBJECTIVA
ao António de Abreu Freire
sentado movo com o olhar
a fileira inquieta
cedendo na escrita a esmagadora opulência
e um misticismo paira nos camuflados âmagos
e tudo mais se corrompe
não havendo janela acesa no subúrbio sobrestimado

PARTO TÉRREO

ferve o tóxico da palavra
a morar morta na língua
o sono mutila o corpo
e as tropas da letargia
irrompem sombriamente

embriões ensanguentados
rasgam o ventre da terra

vampiros de bibe choram esfomeados

BANQUETE

o fétido aroma convoca-os

ao chegarem reúnem-se categoricamente
e palreiam altivos sobre futilidades

halo brusco após a incisão
onde deixar o berço das mágoas?

dúvidas e calafrios pendem na varanda
e as jovens morrem em cada ciclo

na boca oscilam dentes
a mortalha serve de guardanapo

óvulos para a sobremesa
convida honrado o castrado
em alienação controversa

PAPEL QUÍMICO EM MOVIMENTO

a folha dança sozinha ao vento
enquanto frágeis vampiros catalogados
bebem saliva com limão demolhado em sangue
e não se dignam a arranjar morada

traindo a gula da esfera em movimento
fecham-se portas pesadas que verticais hostilizam
com dilema acabrunhado
os cadáveres móveis em cada cerco

circo a lápis este ciclo
rendido a adjectivos falaciosos
mas a seiva corre viva a ferver
espumando nas margens do diálogo

SETE VACAS MAGRAS
ao Daniel
meu irmão
as caveiras plantadas no deserto
miserável espectro falacioso do muco cerebral
e a boca aduladora suja o lenço emprestado
com o carvão negro dos seios de cada dia

a cinza sacudida no beijo
e o sabor do sabão intoxica
quando na ebúrnea varanda
chora a esposa do operário

a balouçar no guindaste
percebo agora o orvalhar do betão
e asseguro que beberei essas lágrimas cínzeas
apenas para morrer à sede

a carne purpúrea apodrece
e alguém funga absorto com paredes
a limitarem-lhe o oxigénio

CENOTÁFIO DE ALCOVA

olho posto no sabre detido com assombro
de janela em janela o cansaço retirado da flanela
era suposto um acusa-pilatos sarapintado morrer
neste festim de hienas

a calvície da montanha entra pela janela aberta
o eco rouco intimida quem teme à luz do candeeiro

no sonolento corpo de palha mastigada
pelo sol de outros
vislumbram-se pequenas esferas visuais
e nos lábios morre um verso dum poeta empoeirado
há muito esquecido na mesa de cabeceira

ÓCIO

perdido neste ócio levanto-me enrascado
ergue-se sóbrio este mosteiro ridículo

um país de saliva na fronte
e o discurso dum fantasma
irrompe da madrugada

esse fantasma que é fantasma dum outro
não se dá conta do incêndio que dissipa lenta
e subtilmente
as suas vestes de linho

perdido neste ócio deito-me como fúria sem papel
e monto entretido com contas assimétricas
o rosário febril
À NOSSA

a pequena embarcação navega no pó
de nada ou tudo foge e nisto o semblante da maré
alterado por sufrágio ou acusação

o pólen deposita-se intacto
no nariz irregular do mostrengo anunciado

a bebida ainda na mesa
ranho de criança e escarro de adulto homogeneizados
luminosa bebida exposta na mesa

ao passado e ao futuro
diz um velho antes de tragar a bebida
SÁBADO

desenho um pé na agrura matinal dum colapso
auscultando tremores do piano biológico
e ritmicamente desbravo a rua
retrocedendo no plano debuxado da memória

o rente esvoaçar de pessoas ou pares variados
cicatriza por instantes a iminente ferida ressentida
com astúcia musical a perfilhar como luminoso baque

pessoa entre gente pessoa entre pessoas
ou
o brilho dum objecto pendendo simples na pessoa
ou
a pessoa pendendo sobre si transfigurando o espelho
natureza morta que ressuscita
morrendo novamente nos lábios inchados da pessoa

festeja-se o sábado sabujo
à noite florescem flores negras
e o choro lento sem lágrimas espessas reduz
a energia solar do abraço esboçado
com os olhos baços
MURAL

rompendo camadas da legião açucarada
regresso comprometido com a lâmina
metal ausente do ablaqueado senso
e do lado ferido exploro minerais adventícios
como passatempo que corrói o tempo de olhar
reinventando um outro tempo a tempo de recusar

deslizo e finco-me
ao mural

COMBOIO
«o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe
regressar. reduz os continentes a distâncias
mentais.»
Al Berto
um túnel de fumo como opção
mas à frente a passadeira móvel
reacendendo o enrubescimento do silêncio

o braço nu esticado em brasa
e em torno
a lacuna gélida pela acumulação de ar frio
do constante debulhar de espigas metálicas

ninhos de cobras afloram como cérebros despidos
ourejando todo o objecto aproximado
e da janela inventada a inevitável aragem que contrai
os músculos esqueléticos
reavendo a penúria do medo enquanto revolta

daqui ninguém antevê a insipiência lúgubre
da infinita gesticulação mental
saboreia-se antes a inocuidade da peste entranhada

o anfitrião recebe desdenhoso os convidados
com um banquete de gases funéreos

daqui ninguém houve ainda sem que inale
a presença do parasita da ausência
daqui assiste-se ao repentino jardim de lâmpadas
dum pálido amarelo de cansaço
e ao manso rebanho de lobos esbranquiçados

a ferida da cidade ainda exposta
dela os retalhos orgânicos globulares
crisálidas de feixes intermitentes
futuros brancos peixes de sal

não se regressa aonde não se esteve

VATICÍNIO
à Sandrine
imagina um ventre
obscuro por si só e dormente
em cada metade cíclica da ausência

imagina inúmeros planos transversais
iluminando os objectos de seda
que ardem ao contacto das mãos

imagina o incolor abraço
entre ádvenas carcaças
em contínua posse

imagina uma estranha paisagem de orquídeas
onde pulmões se dispersam
desflorando a caixa torácica

há-de chegar um ímpio de rosto assombrado
segurando cismático com a mão direita
uma fotografia amarelecida nos cantos

PRAIA
«Rouler aux blessures, par l’air lassant et la mer; aux supplices,
par le silence des eaux et de l’air meurtriers; aux tortures qui rient,
dans leur silence atrocement houleux.»
Arthur Rimbaud
retorno do mar
retorno sem adorno e choro
as dunas não o consolam
sagas revertidas com corações desviados
a pulsarem mortos

a seara longe ou o medo entorpecido
as espigas apodrecem devagar

é dum azul aleivoso este singelo manto limpo
uno em cada soluço oportuno
e a voz balança áspera
falando da eminente insígnia paterna
corrigindo glosas amacia horrores do mito

guardam-se salvas a amarinharem na garganta
com naufrágio lento da sombra dual

resta a palavra – espuma nos lábios – abrindo a boca
vê-se o mar diminuto
e percorrendo-o como baldio consagrado
nega-se o ramalhete do augúrio enfático

na praia o dia rompe-se
e a perniciosa saliva salgada invade o corpo
endurecendo os ossos

a onda
metal maleável com aura sinfónica
escultura viva que se declina tímida quando olhada
é vítima do suspiro congeminado como súmula
dos dias secos
CANDELÁRIA
ao Cristino Cortes
nada há a dormir no covil
senão o fingimento hipócrita
e a hora decalca o esmorecer pontual
que a real ganância há muito pontilhou

o dragão de asma azul acordou
e o centro pulsa fora cedendo
a sarcasmos no instante fulcral
da mordomia perversa do açor

renasce o dia e as rochas periféricas suam
à passagem da virgem vestida de branco

O PRÍNCIPE NU

o denegrido príncipe
alojado neste país de luxúria
onde o que contamina é prato principal
regressa ao cais cardinal traçado a carvão

crisálidas roçam-se comprometidas
com múltiplos silêncios diferenciados

por onde passa luminoso
este inferno tornado gente?

como pode o fedor humano causar saudade?

o fogo cruza-se removendo a água dos ossos
e a circe surge revestida de plumas
cuspindo o seu veneno embriagante

A GREAT MAN IN HIS PRIDE
“A great man in his pride
Confronting murderous men
Casts derision upon
Supersession of breath;
He knows death to the bone -
Man has created death.”
W. B. Yeats
a morte nasceu da visão petulante do homem
temor borbulhando na pele de hediondez gradual

inventor que não sabe o que inventa
é um subúrbio da natureza morta

há uma primorosa faca que como aragem ensina
o dever a educar por cortesia ou por tão pouco

a carne em putrefacção inicia o sono bajulado
e escamas amontoam-se mantendo a transparência

invento inventado por eventual invento falhado
assim se vê o homem afogado na sua altivez
ULISSES
à Natércia Oliveira
ao regressar ergue o rosto com júbilo
mas prostra-se à soberana eminência
e todo o relicário dos árduos anos
dissolve-se nos boatos antigos ainda vivos

a distância causa maior dor na memória

A ARTE DA FUGA

é admirável a arte da fuga que o homem
experimenta em si próprio
quantos labirintos de palavras?
quantos esconderijos fúteis?
à noite abandona a sua casa de cuspo e asnices
para depois viajar intermitentemente
na frágil bolha de sabão extraída dos sonhos

explode sorrindo
explode matando
explode abrindo o antro coronário
explode chorando
é estranho o que carrega nas veias
não importa nada importa no entanto dói
saber da porta
fechada
aparentemente encostada
fechada
aparentemente fácil de escancarar
fechada
e a chave ainda na mão
como frio enjoo metálico elementar

uma pirâmide cerâmica equilibrada na cabeça
a chave ainda numa das mãos
a outra pendendo morta
a roupa com singulares remendos

o homem visto ao espelho
ao espelho nunca visto embora sempre pressentido
numa paisagem num lugar num devaneio
na cama enquanto acidamente acordado

é estranho o que carrega nas veias:
talvez um amontoado de cadáveres esquisitos
toldando toda e qualquer visão próspera

FOLHA CAÍDA

ninguém visita os rostos desfigurados
estampados nas páginas inferiores
das folhas secas amontoadas
na sombra do velho castanheiro

ainda hoje vi na mesa cruzes feitas de flores
violentadas em círculo
e o pó de dedos de porcelana que por lá passaram

outra ala escolheste enquanto bebeste o arsénico
dissipado aquando a erupção do vulcão ocular

medusas infernais visitar-te-ão
e com seus chifres aguçados encurralar-te-ão
até confessares

ver-te-ei com os dentes atolados na lama
INCÊNDIO
à Carla Rodrigues
a cabeça arde
ouço o estrépito acelerado das abelhas mortas
neste outono de fungos letais

imundo delito regular tido
como supra-sumo código
e as mãos tão grandes sobre a cabeça
mas a rampa engole-me só de a olhar
com esperma áqueo a escorrer

a água apaga fogos menores
nunca a combustão do ser em dúvida

a cabeça arde
ardo
incendeio tudo o que toco

a cabeça suada derrete os dedos
o gladíolo esbranquiçado na jarra
bebe a única água disponível
vendo-me a arder no aquário de fogo

mas
a água apaga fogos menores
ZÉNITE

de nada em nada por nada
tensão imprecisa na rede anexa
o compromisso estendido sob o nó
submerso no roseiral baço
que ondula mecânico subjugado
pela cerca compacta de estiletes metálicos

em cada lenho em cada túmulo
a espinha inscreve-se em hélice
atordoando todos os corpos
e o som vibrante como vazio
enche o cálice soletrado
por cada boca por cada ser

enquanto a monotonia perfazer a soma
do estranho devolver cíclico das águas
separadas prematuramente
haverá unicidade na diferença

enquanto o ser se vir
como vassalo sistemático da sua própria angústia
haverá sempre um outono húmido reservado
ESTRANGEIRO ESTÓICO EM SUA CASA

orações de refugiados a caminho
na noite limpa dos eremitérios

sombrios círculos espelham o ar aguado
e no íntimo ressurgimento
o calado sopro luminoso da lua
a toupeira gulosa a surgir na terra lavrada
o pastor airoso contando o seu rebanho

a insígnia é consumida fria
para posterior alegoria sáfica dos cristais

intacta é a pele dos subúrbios
e a rir opõe-se o cardume
tomando posse da superfície movediça

esta é a agonia dita sublime
no fraco desnudado de sábia postura

A CERTEZA DUM NOME

o que se inventa
em dias de penumbra
tem a sua lógica marginal

assiste-se ao prelúdio raquítico
à dança dos sinos bélicos

a certeza dum nome?

vestes lançadas
ao vazio
os olhos possuídos
pelo ódio

solta-se a língua ladina

compra-me a boca
eu compro-te os ouvidos

recuso agora
o contágio sedutor da boca
ósculo omitido

recuso o aperto
o nó invisível
orientado para a asfixia

de
____sin
te
____gro-
_________-me ao abortares a fala

serve-me com o teu lado
neste sítio calafrio
morde-me as pálpebras
abre-me o rosto

sentes bater o coração?

FEIXE DE CONTRIÇÃO

o muro interpela a sombra das estepes
a descer o farfalhento caule de amianto
e um surro avança no corpo nu do dia

à queima-roupa
a geometria triangular da ave ferida
intersecta-me pensativo
e a labareda incha orvalhando no ápice

à tarde uma luz intensamente oblíqua
atinge a superfície da cómoda
reanimando os estiletes
de diversas flores que dissequei

cismático relembro a poeira de beijos
o suor imundo da noite em desatino

ATHENA

tríptico vento passeando entre as colunas
Athena regressou e a mesa abandonada morta
um caos amargo de apodrecimento vário:
o vinho azedado com aroma a desonra e dolo
o pão esventrado falecendo em cada cor do bolor

Athena derrotada e ninguém surge para seu consolo

INVERNO

vinco o peito no parapeito nu
esmurro a parede que me ampara
e o argumento ainda agarrado à língua

lá fora a geada tudo queima
os tons desta sala agonizante vestiram-se
de púrpura
e os sons do meu corpo já não têm cor

abandonaram-me pelo cinzento murmúrio
das palavras
ou talvez pelo eco do alumínio vibrante
que povoa estes dias – brindo com o enxofre
arrecadado nas já longínquas chuvas

os répteis não me largam e agora
o quarto é um cubo de gelo
e nem mesmo os poemas o derretem

ACOLÁ DO QUE AQUI MORRE

acolá – tanto se lhe deu como jamais lhe irá dar
é esta a glória subversiva dum jorro quente
paraíso minúsculo do albatroz construído peça a peça
com animalesca imaginação de risco a perpassar
o sonâmbulo pano que vai apagando arabescos
de pó e ícones fulcrais gravados a pólen de anjo

acolá – algures nas profundezas dum rio raso
despovoado pela concreta animalidade bocal
que aboca os peixes desamparados em frases ocas
sombras irreais a subsistirem de medusas loucas

acolá – nada se fez igual ao que se aparenta
e se desloca em perseguição pois é ignóbil
a razão que raia nos meatos por nós criados

acolá – creio que acolá para lá do onde
acolá do que aqui morre

RESCALDO

o demo insólito no derrame
a curva na cama
e deste suplício carnívoro
sabe-se o que não sabe na boca

a seda pegajosa
com escamas do peixe fétido
lentamente mastigadas por dedos

o saibro imprimido em cada lábio
ao ecoar a oração entrecortada
no parto em ebulição

depois a hemorragia
reatando o lume
ao ponto de reluzirem crepúsculos
e da massa inerte informe
um tumulto cala o silêncio
ao separar o fogo do ouro

as mãos açambarcam o rosto
as pálpebras caem
mas a azia reanima
espectros da sangria objectal

Ancoradouro * Porfírio Al Brandão

pousa a boca no peito fissurado da terra
colhe o silêncio do que está morto
regressa para onde nunca estiveste
reconstrói em ti a pequena ruína dos brinquedos
no quarto escuro refaz o fugitivo corpo

da rumorosa existência de papel bebe
a ansiedade venenosa das palavras o sangue
das perdidas aves no surdo coração da viagem

quando chegares ao límpido limiar do corpo
incendeia a cruel noite da infância despede-te
porque ao regressares aos tristes dias de hoje
terás esquecido a breve alegria do rosto e
uma luz extinguir-se-á vagarosamente
no interior da mão envelhecida
Al Berto
ABISMO

falar da montanha
o real da cordilheira de papel sem jasmim
o cheiro a suor como soporífero
terror dos currais ambicionados

decanto o pranto desenhando a anca
absorvo o fluido predilecto
a tarde em que morre o cárcere
dono do esperma ressentido

uma cara desertora exibe o silêncio
dum monólogo interior
apagam-se mãos nas cortinas encarnadas
e as pevides não ardem;
ainda é cedo para ressuscitar
o nódulo encarapinhado

derrapo fedendo em mim
num chão de desejos rotulados
a abelha brocada persegue-me
ao vislumbrar a soldadura incólume
prevendo a luxúria nos lábios
***
AFINIDADES

sobre a mesa a muda faca
e seu espectro como boca
mareja minerais; o alumínio
dissimula o suprimento cívico
da redundância terminal

de tudo os olhos apartados
perdulários afastam formas
ciciam os justos títulos
para o assomo acuchilado
pela nesga de luz

o arabesco turvo do silabar oscilante
principia o gesto brusco da limalha ensaiada
autêntico dízimo brejeiro

o pão ázimo inculca o peito nomeado
seu gume afiado ameaça
no cruciar verídico e a lua emboca
com seu núcleo oculto
na cinza dum corpo pagão
recordando o borbulhar
o cismar do arroxeado
queimor incógnito que abrolha
na linha acidental da era finda
***

GRAVIDADE ASSIMÉTRICA

a chave espetada na parede onde haveria uma porta
se azulejos iconoclastas não destruíssem a simetria
do que é real e que se povoa hermeticamente suspirando

carreiros perpendiculares perpetuados
por um esgalhar de escrita abissal
entre esculcas que ávidas apontam ao movimento

conto a partir do nada instalado
refiro-me ao extasiado breviário
de ditongos clonados em penúria
pela ave negra que voa engordando
com a sublime gravidade tácita
volúvel no aturdimento inconfesso
***

EXSUDAÇÃO

olhando-me insípido renovo o descrédito amontoado
tonalidade da demanda parasita causticando o arco
cume enquanto verme tendo como capa a manta morta

uivos iniciam a sinfonia do descampado
vale ou garganta em sangue

o potro finta as escamas
a poética entra em oclusão
entranha-se nas redes microscópicas
dum pedaço de pele sofrível
e as labaredas acolhem indecisas
um sopro
insígnia da ardência verbal

***

ANTRO SIBILINO

trio damascos côncavos enquanto recluso
fricciono os músculos no soalho
até poder cheirar uma outra carne

morrem seres no armário caliginoso

viajo na janela quase ecrã
– a cera inimaginável
em breves depósitos do decalque ocular

a criança mutante aponta o dedo ao peito do pai
enquanto a mãe recolhe os fragmentos de mercúrio
logo adulterados pela química lacrimal


abaixo do reflexo em roda
o outro lado escrito
cifra do tecto sinuoso

***

ANCORADOURO

encravando no arranque repelente
no solavanco defraudado
colarinhos aveludados coincidem
com o desaparecimento da palavra

a denúncia dos actos envenenados na mente druida
trilha a gula frágil da ruga a voar em asa delta – pausa
– o espelho comanda a força
não há decisão fremente no que se acusa
através de feridas amordaçadas num antigo destino
conotado pela noção de casa

surge a estrela desavinda do que se encontra quando só
e um relance musical atrai o desenlace – pausa
– um instrumento hipnótico escuta o tambor da fala
e a voz rouca canta para acrílicas paredes incrédulas

a nuvem de pássaros pedintes desperta
e o céu oferece-se de novo – pausa
– uma nova melodia aviltada no crepitar da revolução;
vampiros da legião guerreira afunilam dogmas
do ressuscitar em oração e de novo o relance musical
a loucura de subir pelas paredes, o cântico negro
a fugir das vogais em convulsão – pausa
– um estômago emerge sozinho vomita ganha braços
e punhos e esmaga golas desencontradas
num peditório ou banco de esperma imaterial

palavras esfaqueiam projectos defecados em sonho
como espuma parida por um mar poluído
e de novo o relance musical
o bando de pássaros aflora sem aviso prévio
para um renovar a partir do vetusto trilhar empoeirado;
outra sílaba no descanso e há um dilúcido arrependimento
ao auscultar carunchosas óperas aniladas
dulcificado pábulo do solevantar inicial
apadrinhado por algum céptico corrupto
***
PÉRIPLO

alongo o pus na ferida imutável
exalo a fúria dum tentáculo corroído
posteriormente mastigado por bocas imundas

o consumo ardente da nova aurora
direito à perda perante o público
na ascensão da parábola saciada

rua coberta de paralelos esdrúxulos
sob frenético lençol esverdeado
a penugem do ensandecido púbere

alcançando as rochas negras
o navegante eremita suaviza
a paisagem energúmena do ridículo

no lago navegam alfaiates obstinados
– a escada não se releva como astro íngreme
é antes disseminada em argutas utopias
***

CONSUMPÇÃO

ao aplaudir serpentes que se esfregam
a desejar anfíbios e ovos
dilaceram-se gostos da promíscua serenata degolada
esquina sombria renitente do fôlego alheio
e os objectos metálicos reluzem
os dedos não escondem a soturna face embriagada
negra de crer em fictícios ícones, geleias nocturnas
suprimento de candeias no deserto algente

o carbúnculo do eremitério a luzir
e a velha dorme
sequiosa perfila na gigantesca roda
ou álamo perfidioso
unguentado pela maresia chistosa
para déspota armação
***
CONFLITO

na evaporação o halogéneo simula a corrente diletante
como anémona acorrentada em vago aquário inculcado
rematando as pontas duma raia drogada que escuta
a música de orcas em festa

a rusga insidiosa entre elementos esfomeados
por negritude assaz
convoca o cometa do desarranjo planetário

em cada palavra a linfa detentora
e o porão repleto de injúrias
manjar inopinado de tribos
***

MUTAÇÃO
o último desperdício
e a salamandra insurge
exibindo suas manchas

chamas como auréolas
sobre as cabeças
invasões em terapias provisórias
que ineficazes escavam poros
num antro desmontado
a cada viragem de entoação
***
CULTO

monges jejuaram diante do lamento
desadunado pelo efebo de olhos húmidos

monges beberam lágrimas seminais
cumprindo em oração até à exaustão gótica

um estranho jarro de estanho jorra soluços
sincronizando espáduas antagónicas

painéis apodrecem à primeira fala do prior
na tarde alumiada em que estigmas afloram

***
TIROCÍNIO

foi-me dado o tremeluzir da fleuma
a província escolástica guardada
como morro beneditino

o cabelo enxuga os pés molhados
o coração guarda-se em casa
numa caixa perene à senda dos tempos
e relíquias perdem valor
enquanto meros artifícios passados
valorizam com estrénuo suor depositado
***

VERTIGEM

assistindo à solidão das galinhas
prestes a provarem o cúmulo da perdição
engulo o lagarto sapiente em justa harmonia

o onde em verão ao deglutir tâmaras envenenadas
com palavras postiças, autênticas falácias em combustão
em conspiração arquitectada para um arborescer maligno

o sangue ferve nas demoníacas veias da hegemonia
felpuda irrigação sonante, querido fado de chinelos
– apercebo-me da vertigem ao beber a saliva de ícones

***

INCISÕES

o muro em células
intacta rosa do deserto
seu aroma, balbuciar indiscreto
do peregrino que propaga
pétalas de choro
com seus olhos contíguos
ao luar envidraçado

cinco incisões e prossegue-se
o baptismo com pó de anjos
cinco chagas, flores quaresmais
de todo o sempre apregoado

os tigres adormecem no covil
onde o movimento oureja
***
CONTRASTE OUTONAL

folhas amolecidas, negras arrastam-se pelo chão
visitam o musgo repousado na rocha paciente

o rosto claro da ampla magnitude
soberba, murmurada na brisa
da manhã húmida que entreluz

ângulos incertos e depois um sopro
assenta a geometria cintilante
de fungos espermáticos
***
TREVO

a sorte a boiar no lago
reforço da carapaça prateada
caruncho da carne ou véu indemne
lança espetada na monotonia casual

a sorte do pulgão que assalta
o floema da planta robusta

não há sorte que conforte a má sorte
está lido o gemido contido no ser sofrido

as medalhas arrecadadas afogarão o vencedor
***
RECUSA

decorado está o ostíolo em chama
morbígero alardeia a língua inepta

pupilas decaem no regaço aberto
lomba de mentor inconsciente
para triagem da languidez ou rícino
jactância predilecta em compromisso

a fala não engana o dono do falo
relicário no sudário ambulacrário

o quarto com cama inalterada
servirá de poço – no lençol
a única nódoa é a de lágrimas
amontoadas histericamente

***

DE BOCA CHEIA

da maldade fiz farinha
dessa farinha fiz pão
desse pão falo agora

com o esófago congestionado
trinco o que deveria apregoar
dou comigo a fruir o que injurio
dou o que rejeito amando ao longe

ainda aqui a ver o de lá definhando
sobra-me o fatal dizível querendo
morder minha crua carne nímia

denuncio a rotatividade nociva
o ciclo devasso entre ciclos fidos
– no espelho nada é proeminente
embora saiba que a boca está cheia

***
TROVOADA
embarco na fala da chuva
e na do trovão colérico

estremecem telhas
corações frágeis

embarco na ira fria
da enguia eléctrica

ouço brados ensandecidos
vejo navalhas afiadas e chicotes

ao som de golpes desferidos
a equivalência dum choro tácito

embarco no desdém a ferimentos
o laranja halogenado quase mártir

cintilam fímbrias arrojadas
cinza de olhos e algum granizo

embarco no mote dúbio e distante
à flor do que vive abaixo desse fogo
***

EVOCAÇÃO

num elo próximo abrir de novo
os pulmões afogados no passado
rever rubis a arderem como olhos
decepar aglomerados em nubladas
contrições lenificadas ao ritmo
dos gestos complacentes – lápide:
em tudo o fundo deste mundo
***
APARIÇÃO
pálido sob a figuração
espezinhando a negritude
entediado no antro do lume

ouço a voz e cravo no peito
a pluma da outra terra
terra de lâmpadas que fundem mudas

um vulto emana intensíssima luz
e tudo cega à volta
do já cego meditabundo

***

EFÍGIE

prosseguindo a estação visionária um pé franzino na areia
arrisco um sopro súplica nítrica ou louco zumbir
a bandeira mergulhada no lago, fraco sol sobre a pele
rente ao coral medito sobre a esfera, dedilho fragmentos
de madressilva; pecador isento traficante de pecados
pescador em alto mar, a dor é aguda: palma ou solha
não tens lugar nos mortos pois esta festa é sesta
na cama sulfúrea, uivo como uva salgada e o mar longe
degredo instancial braçada na terra tumor sem dor
e o corpo com mazelas os dentes a roerem imagens passadas
fugidias enguias a contorcerem-se e é estranho o som
resultante da fricção destes corpos expandidos;
não subestimo a matéria nem o vácuo, reato a frugal
subsistência verbal o vivo canto vertical intermitente
sou cúmplice ao ver extinguirem-se sopros vertiginosos
acendo fósforos a partir do cume na noite de néons
e estudo a alquimia dos seres que se apagam no painel
clarão com marcas de água estampado no rosto dos olhos
a tinirem sussurros discretos sobre a dissolução do mal;
realço a azia ou gaivota bravia em tamanha heresia
tardio consolo da boca que arde fendida no corpo calçado
***
ASSEMBLEIA
o silêncio colhe o catarro da arquibancada
prestes a ruir o alento a sisudez cárnea
gorjas expandem-se no prelúdio feérico

eis o sóbrio halo no devaneio balístico
a sede de metais aquando a decadência de escórias

a sombra colhe o medo do extorquir pedinchando
o debruçar sobre o cristal deixa de ser culto
e o pulso transfigura o recipiente do sémen baldio

eis o contorcer férrico acusando dissimetria
a fome de acrílicos aquando a revolução arbórea

os desavindos rostos em armadura
libertam faúlhas de cumplicidade
e rubros mantêm-se profundos
***

FEUDO

o pulgão frouxo na areia dissimula o visco ejaculado
no culminar da dança pela alameda
lábios em euforia e como estorvo as palavras e os dentes

traz-me o basalto para emoldurar a escultura de gelo e seda
e um cálice de vinho para amadornar acérrimos presságios

vesti a túnica de alumínio para este deserto
no qual a flor explode e ganha gomos
moribundo hei-de segredar à vagina da montanha
os pecados ridículos borbulhando para dentro
as fábulas espectrais da infância intermitentemente sacudida
as esculturas mirabolantes construídas com papel e cuspo
as fantasias estrambóticas da adolescência litografada

e depois a dolorosa ressaca em que se viaja chovendo meteoros

tónico para descompressão:
reviver a gula por presépios em construção
esbofetear o rosto
e cheirar e ler os velhos papéis que assombram o presente

***

DESASSOSSEGO

preocupa-me o precipitar de corpos mortos
em pantomina
o sexo dos anjos caídos
o portal
a demora anacrónica
dos acontecimentos almejados
para os dias vindouros
agarrados ao exasperar granítico

preocupa-me a repulsa entre salivas
a fuga imediata do calcário
e um abraço fratricida rompendo
a madrugada
os músculos contundidos no duplo disparo de atalaias
os olhos feridos solitários
repetindo o espectro lunar
irrequietos

arredo as tulipas na mesa movediça
estampo a mão direita na face argilosa
e sorvo os ruídos os ditongos ao abandono
na tarde estéril
o sol purificando os poros da pele já cortiça
um desalento frívolo
as pálpebras procuram o cabelo
o medo só o medo ao raiar a fogueira insaciável

preocupa-me o canto das ninfas embriagadas
aprisionadas em baladas do absurdo infinito
e o tampo
sob a monotonia azulácea
que o magenta crepuscular dissolve
gorgolejando como antevisão da solitude hipocondríaca
da noite

e o austero relógio ameaça com seus ponteiros

***

VENENO

apraz-me rebolar com as metáforas das imagens
porém há que ter cuidado
as víboras adoram surpreender
ternas suavizam os conceitos
balouçam a cabeça o corpo
mas mordem e o veneno traz a ressaca
fervorosos alucinogénios povoam o corpo
tornam o intacto no difuso transparente

quando acordadas estas víboras emigram
para o interstício fictício
até alcançarem a câmara sulfúrea
do icebergue
nas profundezas do mar gelado

aninham-se e segregam veneno
para vasos que irrigam de imediato
o cérebro o coração os músculos da periferia do sonho

a esterilidade destas víboras
inquilinas das metáforas
explica o apanágio de cada veneno singular

surgem ininterruptamente por geração espontânea
e cada qual herda a acidez do instante ímpar
aspergindo o seu fruto exclusivo
***
CIZÂNIA
as palavras agravam-se o sangue precipita nas veias
e depois a nuvem de electrões navega hesitante
entre o confessar fluido e o abalroar da barragem memorial

os dilemas ofendem as incontornáveis orações pragmáticas
e por vezes a assilabia é sorvida como asilaria
sulcando tecidos ocultos abrindo fendas coronárias

após os disparos de pólvora o desarrumo interpessoal
e a ablução do desentendido desenterra cadáveres
já corroídos pela solidão acetosa

o arrependimento aniquila os alicerces do confabular
o diálogo volta a ser moita por desbravar
a fidelidade dos pombos é posta em causa

os halogéneos tornam precária a ambiência
estilhaços de hemáceas obstruem arteríolas
as palavras consensuais oxidam na garganta

dispersos os despojos de guerra apodrecem
e a emanação dos gases pressagia a serenidade
a letargia de argumentos acéticos até nova contenda

***

OBSERVÂNCIA

ergo a tábua despida de simetria
tiro medidas e fétido
guardo uma estilha acesa

evoco o cuinchar de ratazanas
envelhecidas junto ao contentor do lixo
no bairro desnudado a cada sílaba do tempo

transitando entre objectos
os nós lassos respiram difusos feixes de fotões
e na reentrância de luz
pressente-se o estridor de alvéolos

ergo a taça transparente
roubo a cor ao vinho por beber
declaro intragável esse alegórico líquido
e sorvo a aquilina quilha naufragada
inane fosforescência

***

LUCÍFUGO

sob a lua betuminosa
compacto esperma luzindo
o noctívago espuma químicos pela boca
adormece no regaço sombrio
com as narinas drenando o sal de excessos
decalca a rua macadamizada por blocos de gelo
a língua disforme
trago de lava por engolir

obliterado pelo granizo de insinuações
cativo no palanfrório da circunlocução em rede
o noctívago foge da luz da claridade que flui opaca
em suas veias como tóxico imediato
os lábios gretados do sofrimento
os dentes fustigados
o corpo em aperto
os pulsos vibráteis sobre o balcão
na pele abundam nódoas
manchas de compostos oxidados

nutre-se da própria sombra tatuada
com o fulgor amargo
de incentivos murchos
de fósforos humedecidos pelo suor
e depois grilos cobertos de néon invadem a cabeça

e quando nasce o dia
o noctívago procura uma outra noite
na qual possa dormir

***

DEFLEXÃO

derreto o cálamo e pouso o cinzel
sobre as pétalas duma flor menor

mastigo sementes de maçã
– negros diamantes amargos –
os dedos montam a janela
e desfiguram-na rotativamente

albatrozes iniciam o bailado
sangram o céu e bebem-lhe
o laranja ejaculado efusivamente

repito assíduo o configurar de hemorragias subalternas
hilariante despeço o escárnio aéreo
e translado gravuras bolorentas
***
ECOS CONGÉNITOS

o eflúvio digno da maresia ablaqueada
colora a derme acordando os genes subtraídos
a corolas caprichosas vultos luxuriosos
em espiral no ar

o lodo não substitui a configuração arrecadada
dos rostos
assim como o iodo das nódoas pálidas arreigadas
em cândidos gladíolos
não substitui as lágrimas derramadas à luz
do candeeiro surdo

na floresta negra o ariano florígero afugenta o corvo
a fonética enrobustece o cango sobrecarregado
os insectos embriagam-se com a abundância de néctar
e o fruto apodrece solitário afogado na sua própria água
***

CAVERNA

dilatas a culpa
entras numa ala húmida escura
e depois vês raiar a desolação de falecidos a falarem
por entre dentes
rumores aviltados abrigados pela sombra
das noites impunes

é aí
nesse lôbrego espaço em que depões as ogivas
denegridas pústulas amealhadas na boca
não é segredo
toda a carne é fraca toda a carne decai desfalece
e apodrece bolorenta adúltera
a cor não esconde pecados

mesmo dissimulando os frutos como a aveleira
verás que o disfarce cai
sulcando essa mesma carne que aglutina prazeres
e nessa caverna onde te escondes
viverás para sempre o inverno da neve rubicunda
sufocarás ao avistares as flamíferas torrentes de lava

edificarás o inferno à tua imagem
e também tu caminharás pela sombra
das noites impunes
***

CIRCUNSPECÇÃO

escuta o sustenido na adipsia
de vocábulos órfãos
e sente o carvão lúzio
ascender no canal

ausculta o carbono a cintilar efémero
o enxofre a articular os cabelos
o ferro a pesar no sangue volúvel
que suporta o perfume de lírios
em acrimónia

ouve o desabrido coração
abscôndito nos supérfluos minutos do dia
e de cônscia postura
queima incenso no eremitério erigido
a partir de frases carnudas polposas

quando pressentires a surdez impingida
abstrai-te irradiando espectros falaciosos
e bebe o azoto gasoso da tarde chuvosa
***

ARTIMANHA

aconchegando os lençóis
alumio truques carbónicos
seguindo-se os sussurros cardíacos

as costas buliçosas
o rosto acossado na almofada
atarraxado experimenta a respiração alcoólica
imprimindo o bafejar

a parénese barrenta
sobre a analgia dos afectos
o aguaçal
a verosimilhança como cataplasma
para desobstrução de meatos

da entoação letárgica em desalento
o sepulcro embusteado
o vazio longínquo
a semântica cadavérica
das atrozes chibatadas eléctricas
áscuas reboliças na cama de fumo soporífero
Dédalo cativo no labirinto de Creta

***

SEDUÇÃO

os dedos apegados ao quartzo leitoso
aduladores passeiam-no
pelos mamilos dilatados
que difusos emanam propano

ulmeiros intimidam a sílica luzidia
da pele em erupção contínua
e olhares clorídricos avançam na atmosfera
circunscrita à paixão

quando exposto o narcótico
disseminado na embriagante angiospérmica
torna-se invisível e os encandeados cegam
iniciando a lenta dança inebriante
rumo à inércia inconsciente

***

TANGO INOXIDÁVEL

reflexos moldados por oleiros
fúlgida empatia
dois corpos coriscam no salão
com ventosas pregadas cambiam suores
rompem-se lábios e as peles roçam-se
húmidas
uma contra a outra

primeira investida
esfaqueia-se o ar com dois punhos irmanados
depois a segunda a terceira e o foco estampa-se ébrio
vultos rodam arfam espevitam o ânimo

fissão centrifugação fusão sublime dos corpos
que empalidecem até ao brilho metálico

a faca dança ritmada obedecendo ao metrónomo
corações sincrónicos ignoram o público obsidente

***

PRECIPITAÇÃO

o livro pesa morto nas mãos leprosas
chove
o vinagre escorre nas telhas amordaçadas
pela aragem defunta
chove
o orvalho mudo dos deuses esquecidos subsiste
no mofo salomónico
chove
as hélices enferrujam com o vapor
eflúvio de murmúrios secos
chove
sonâmbulos deambulam nas estantes abandonadas
chove
a caravela de velas córneas enfrenta a intempérie
em plena saliva
chove
o marfim definha esponjoso
e asfixia no sonho estridente
chove
o coração balouça num abismo destilado
em horas calcárias
chove
e não é chuva

***

CANSAÇO

um vulto corpóreo abatido
a lupa a galope
estranho torpor ósseo
algas negras no derrame
filamentos das pálpebras alquebradas
oscilam aleatoriamente

as dunas desmoronam-se
e no laboratório
estudam-se alquímicas reminiscências

a inquisição intrapessoal persegue
os ecos recapitulados
como funestos espectros do avejão

tímidos fantasmas alcalinos
surpreendem
aquando o vago ressentimento iminente
e
alvejando os cristais linfáticos
masturbam-se alterados desnudados
sob a mesa transparente

o olhar côncavo pelos objectos
que murchos gatinham para a margem abissal
e após a consternação maleável da distância
um sopro fastiento como último decesso
antes do fenecer recto

***

EBRIEZ

dados mergulham na cerveja
paulatinos dedos engendram órbitas
o copo queima em todo o perímetro
e a boca do degredado símio incha atónita

regressando a casa o polvilhar de enxofre
as faces em metamorfose o clamor no peito
incendiado
a elasticidade dos corpos
em torno dum eixo naufragado
e térmites algozes escarafuncham a vítima

e depois na cama
roda gigante em movimento
desponta a viagem vertiginosa
à ilha das aves brancas

entre vómitos abrolhosos o subterfúgio da sede
delírio de polímeros extintos ao pequeno-almoço

***

SOLSTÍCIO DE INVERNO

a criança principia
o tumulto na água tépida

o cisne de jade levanta voo

verdes vimes enastrados
na soledade
cal exaltada sobre dorsos

a fragata anestesiada
alívio incauto no domínio
da neve
dolo fragrante sob a saliva repudiada
espuma postiça nos lábios da onda

a cadeira como chão após o suspiro
e depois um olhar destoante
sobre o ábsono vale arrependido
***
ABNEGAÇÃO

bebo a infusão de aves marinhas
e emigro no espelho fingido para o rito
de pautas corrompidas pelo óleo lacónico

jejuo em plena alvorada
renuncio a esquálidos líquidos
e patenteio a polpa sumarenta de frutos
espiráculo em ascensão
tónico para viajar no limbo amnésico

culmino no promontório
trémulo afundo-me lentamente
na água betuminosa
esbracejando apaziguado
sempre indiferente ao sabor insalubre
dos dias
***
CESURA

o fogo prende com sua chama
a pele da face povoada
por escamas de paixões fugazes

retomo o fluxo jorrando o forro
são inúmeras as sogas sob o hélio solar

solitário o andor impune retalha
a maresia lunar
e assomam-se seres ambígenos
que taciturnos
circunscrevem estrelas ignescentes
***

ALUIMENTO

tudo é redutível ao incêndio deliquescente
equídeos do câmbrico exalar vigiam
ásperos fragmentos dum diálogo

há um buraco negro na fala
uma ardência cúmplice no rosto
em permanente declínio

estalactites rangem no cogitar esfíngico
e reflexos espessos em erosão fulminam
poros causídicos estigmas de depuração

há suor estampado delíquios interiores
ecos baldios em constante turbilhão
e primorosos animais matizados no olhar

***

O ÉS-NÃO-ÉS DA EXPURGAÇÃO INCENDIÁRIA

a casa na ravina
o ouvido acochado à terra
para escutar o murmúrio acrisolado
e com o plasma a ferver nas artérias
analiso eufórico o quase partir o quase apagar

a rebolar na manta ouço o choro dos flamengos
o leito a cair para trás o entorpecer do cais
zumbi de umbigos iludidos pela memória turva
rasguei os mapas ininteligíveis e acendi uma fogueira

beijo a cinza de outros corpos
até a maré encher
provo o sal reluzente e invoco Neptuno
plantado na férvida ejaculação de ondas

depois a melancolia do vazio
e a convicção de que a idiossincrasia cíclica
congemina casulos negros na face oculta de vitrais
***
RESSONÂNCIA
atenta na sáfara nuvem manchada de óleo
e guache
até descobrires a morada dos banidos

ressoam cavernosas sonatas distorcidas

é proibido chorar no átrio aleivoso da felonia
frontispício do espécimen que cansado
vê correr o egoísmo nas veias
espreita instintivamente habitáculos
e cerra as pálpebras
para caldear rostos e feições
em cenários lamacentos com espectros
de cores em alvoroço

ouve o marulhar estriduloso
ao extinguir-se o som
e banzo sente o empedernir silente da egolatria

***

CONTÁGIO

de outro pão o furor sulcado
rio de prata definhando
sob o artifício prolífero

a mão dum corpo infectado
açulado por desaires implícitos
torna-se a quilha provisória
em fortuitas tempestades lancinantes

decifrar a inveterada geografia de corpos oscilantes
é como tentar enxergar debaixo do oceano
de agitadas águas reboliças cegamente turvas

de outro pão o silenciar fosforescente
a cáustica agonia a equimose imperecível
e biliosos fungos abstergem a orgânica de corpos
a carne fundida dum novo corpo em alucinação

***

BÁRATRO

a cair
os pulmões encharcam-se de vertigem
caveiras a arder
as cinzas dissolvem-se na escuma de mostrengos
despertos na cegueira negra
safiras dançam em rostos de cobiça alheia
e inflamado derrapo no ar
pulsos cadavéricos pedem auxílio
exânimes dedos ousam tocar em nódoas
de sangue ressequidas diante dos olhos
a melodia barroca invade o antro
aquando o transplante cerimonial do órgão anómalo

a cair
sempre a cair na devassidão com ardência rubra
atropelando fantasmas transluzentes
rasgam-se corpos num círculo de escarros
as gaivotas definham deprimidas no alcatrão defecado
a linfa congela e explode convulsiva no peito
dum estóico voluntário de voz rouca e balofa
coleópteros luzidios passeiam calmos
pelas teias de aranhas falecidas

ao fundo
a lava de canais ferve ininterruptamente
e anémico continuo
a cair

***

ANTÍDOTO

recordo as amoras que assassinaste com desdém antipático
ao disparar contra ti
frondosos bagos verdes ainda enrijecidos pelo ódio

a tua pele áspera repousa sobre lírios murchos
pela desolação acre de improvisos claudicados
reconheço esse teu arquear erudito
a agilidade exibida ao refreares ironias
a sagacidade irónica de palavras que sensual
temperas com cianeto

continuo a disparar até perfurar
o pálido coração que carregas apática
e o fruto amadurecerá até explodir
povoando de pigmentos o antro coronário
***
REGRESSO
as paredes caiadas o declive achamboado
do varal semimorto
mexo remexo o que há muito nem sequer movia

indago bandurreando pelas linhas
dum metal abstémio
toco em nostálgicas fotografias
sem espreitar
e o ranho salitroso babuja os dedos
tornando-os pegajosos

acendo paisagens amodorradas
revejo diapositivos para corroer
as túnicas de circunstância

nu diante do espelho
colmato lacunas do sorumbático exalar
retoco manchas espermáticas da alma ardente
e recito orações rumorosas das noites esdrúxulas

***

FILÁUCIA

esgaço sufrágios da cepa torta
os lábios a sangrar
é daqui que parto pelo mar fora
bebo sucos frases intemporais
os filósofos mijam sobre mim
beatas mecenas masturbam-se
com imagens mundanas banais
e matam discretamente bodes expiatórios

morro de nylon ao pescoço
na última vinheta da jornada grávida
registada na agenda
o corpo queixa-se
vítima da fugacidade pertinente
da noite

a quilha deteriorada padece de embaraço
mas enxovalho o pranto negando tudo
sangro ditadura para aspergir autoridade
numa baiúca velha que leprosa sobrevive
e dilacero ossos bolorentos intimidando
o rival doentio à minha imagem
zombeteando em memória de Sartre

***

INSTINTO NECRÓFILO

sobre o estrume débeis rosas
demolhadas na água onde conspurcados sais
se encontram dissolvidos
o esperma na panela ao lume
e virgens açambarcam-lhe o aroma
tentando adivinhar o paladar ansiosas
por sorvê-lo
o instinto é feérico
os corpos queimam para dentro
na límpida folha de papel para sempre
morará a urina de fragrância ímpar
alguns monges dizem-se infiéis
às ilhargas deleitadas na cama
dóceis despojos do amor confundido
na fundição de corpos em festa fúnebre
os sexos húmidos embevecidos num exasperar
de peripécias em contusão flamívoma
imperceptíveis egos amassam fezes de ritos
e repetem provérbios ao descerrar a cortina
das menstruações agendadas a perfilhar
nas cabeças dos proxenetas em constante masturbação
as imagens abrandam
um olor a sémen fermenta na ambiência
em remorso
nas janelas embaciadas desenham-se
– com a respiração de dedos ainda trémulos –
os destinos de cada um e a separação dói
em todos os músculos e são inúmeras as mazelas
apenas um sono restará
no qual os corpos dormirão
aconchegados e apaziguados no tempo que sobrou
da noite vigiada pelo tigre dos olhos de fogo
restará um sono como despedida
da fusão alienada e partilha de suor fumegante

***

REANIMAÇÃO

recuso-me a desnudar a elanguescente fábula
de seres em ascensão erótica
porque é imenso o labor no jardim
de vocábulos em flor

o perfume da terra empanzinada de húmus
dissolve qualquer pretensão
de esquadrinhar posições
e ressuscita a fala orgânica no corpo

espero pelo crepúsculo fecundo
pois a carne e a terra crepitam fulgurantes
e movendo-me placidamente aprecio
a solidão inanimada dos objectos ciosos

***

CARTA A RIMBAUD

escrevo-te sem saber a cor dos teus olhos feridos
limpa a terra dos ouvidos
pois lerei esta carta vezes sem conta

um dia em alucinação beberemos cervejas juntos
no inferno
trocaremos mágoas e queixumes
e na prancha de salto compararemos nossos umbigos
comichosos umbigos ainda acirrados

escrevo-te sabendo-te morto mas áureo
eras novo ainda e tão sofredor

quero que saibas isto:
os delírios que viveste são hoje realidade
os teus escritos sobrevivem ainda enuviados
alumio-os insulado ao lusco-fusco
no crepúsculo sangrento do dia agreste

há ainda um ténue olor a roupa suada
presente em cada frase em cada verso
e o pesaroso eco do esgrimir entre palavras
ensurdece aquele que experimenta o clarão afoito
das trevas

***

ELIXIR DA LONGA MORTE

o lamento vidra em surdina
todos respiram o fumo dúbio
– lúgubre dissipação de lágrimas –
todos a bordo todos sangram
ábditas células amontoam-se
fugidios ícones em feixes purpúreos
e atravessam-se silvados
os jardins de outros

recônditos gestos suspeitos
estranhos estranham o facto
dum estranho estranhar
o que de si vê à sua volta

todos choram silenciosos
no quarto de ossos
revestido de músculos e pele
em desassossego
todos a bordo todos sofrem
todos tragam o elixir da longa morte

***

LUTO FÚNGICO

o felino jaze na tromba-d’água
já não regressa às noites abochornadas
de pólen doentio
ergo a cabeça e enfrento o espelho indizível
a avidez sepulcral de vestígios acesos
pelo beijo da égua morta
em putrefacção nos baldios

onde se esconde hirto o esporângio?

subtraio-me à mímica dum sentinela
e no lago o peito inconsútil espelha cicatrizes

***

CONDIÇÃO

água escorre pelo corpo
e a cabeça sangra por dentro
o desplante palaciano substitui
por momentos
o frenesim de pólipos delirantes

centro o dia no suplício da carne
abundam escoriações obscuras
e farto de mundos embutidos noutros
fecho a porta e um tampo colossal
– cisma do não tampar airoso –
ameaça errático descendo lentamente
com irregulares pseudópodes coruscantes

o arfar da terra é contíguo ao corpo

***

RESSACA

fugas ao chover
o pesadelo rasteja
à volta do pináculo

desponta o sono
âncora de seda entre os livros

provo a ferrugem de carris
dum monólogo frustrado
– ternura de pó que se acumula –
engendro ódios no covil amado
e sem verter o suor do dia
visito o curral
de centauros valdevinos

sobram sóbrias imagens
em declínio cáustico

***

ALENTO

a mosca cai moribunda
não se esforça por voar
sobre a contagem irreal

o vento ver-te-á chorar
tenta ser o vácuo pois no fim
saberás cair até perderes tudo
e nada te correrá nas veias

quando longe negaste o berço
imóvel no nevoeiro que te abrigava
bradaste ao infinito lancinante?
no fim saberás que do calar macambúzio
houve um outro fim e nada te cairá nas mãos

confia no braço magoado do polvo
e crava as unhas na pele grossa
dum animal do câmbrico
– não verás lágrimas fosforescentes
na vegetação densa

por detrás do espelho arde a fuligem duma melodia
há um casulo carmim na denúncia resguardada

uiva aos testículos do medo
pois ele veio para ficar

quanta terra ficou sem proprietário?
elos dementes sobressaem
há demasiada pressão na palavra pranteada

saqueia o suor dos injustos
pois dele beberás para subsistires
***
SENSABORIA
a lápis a soberania de fortuitos mosquitos
que arregaçados intimidam a complacência atroz
dos beijos raquíticos num mesmo zumbir irado
como paisagem de morder nos ávidos minutos

elegante esta denúncia ensanguentada
por anfíbios da razão bíblica
testemunhada por um deus desempregado
acima de qualquer moldura castigada
nas reentrâncias imagísticas

o café das horas mortas em oposição ao alimento vital
vagas azuis masturbadas sob desígnios ambíguos dum ser
que se diz maior exibindo arrogante a sua mediocridade

quem és tu que vês a tua vida como alegoria
a bailar num papel incendiado dia após dia?
***
ESSÊNCIA

posterior avulso entre cabeças
a mãe chora e tu caída no regaço
de antigas fábulas sobre o cerco da lua
olho ferido vertendo o mar
decantado em póstuma tristeza
da convocação ríspida de arcanjos
que frágeis balouçam nos cavalos molestados

híbridas lágrimas de Antígona
murmúrios secos despojados
aquando a leviandade do sal
polvilhado nos versos húmidos
até quando? até quando o suspiro
o suspiro impuro entre os outros
que a pouco e pouco o tornam puro?

derramado o suco vital da mortandade legítima
os pigmentos afloram secundários
sob o flácido jugo sem jogos florais
e tudo o mais é o nada a menos
a pérfida monotonia da sangria objectal
prendida ao olhar múltiplo rendilhado
– do coral colorido rouba o mineral saber

***

SABOTAGEM

arranco o som de frestas cancerosas
estilhaçando mosaicos desgastos
bebo de rajada o cálice de adrenalina
e despojo-me do ridículo encenado
– castelos de mucosas em ruínas –
sussurrando alcunhas alvejadas

na vespertina tarde o impávido réptil patrulha cioso
o lodo macilento de estrias
da mão que maneja o compasso rente ao abdómen
a simetria lograda de recomeços falaciosos
de unguentos do degredo
de coimas empedernidas no avassalar cambaleante

como desprezo o sorriso atiçando a cal desabrida
a perpendicularidade insalubre da valsa pungente
a limpidez vingativa de lâminas cegas
a supremacia errónea de arcos córneos

e provando o vurmo indelével de feridas
construo uma cabana com os ossos traídos

***

DETERIORAMENTO

Golias morto na terra estrumada a quente
suores frios na cama
a desolação arde no cerne do peito
solene visita do irmão morto que todas as noites
altera a posição nostálgica dos castiçais de prata

o pedúnculo de carne definha
como qualquer coleóptero pálido
sobre a corola dum malmequer
leito de morte a salgar extremos
e o sonho forma a ponte
mas as margens continuam líquidas

o pesadelo paira na atmosfera de cobre
os objectos escumam por sentimento algum
castigos às avessas em cena
pudor em fúrias incorridas
e alguns farrapos de carne a instigarem o assunto

ao passear na praia dos agoniados
irrisórios planos convexos
– arrevessados para um plano maior
que por si só é desprezível –
coalham como universos concretos

os pássaros planam
sobre o borrão da paisagem alumiada
por amantes fosfóricos
seduzidos pelo ópio acalentado da sodomia
de animais sinceros cumpridores do ciclo a grafite

deste papel um outro
a celulose intacta para o sentido ou estilha inflamável
de tudo o arder e a morte
de nada serve a faca
e a existência animada a discorrer no pesadelo
de alguém que quer a sorte ácida do gume
para ninguém próprio mas que irrompe
pela madrugada cinzenta de mais um dia contrafeito

o demo paira sobre as cabeças
as línguas de fogo foram contaminadas e atrofiam secas
e morrem na planície árida do monólogo
articulado por quem se julga inocente

ouvir não do tu que é outro na mesma imagem
é como comer a terra que compõe o fruto inarrável
mas tamanha baixeza esgueira-se por ser pobre
de algo que se vê podre mas que se aglutina intocável
e prolifera para a prosperidade a ritmo de infecção

***

VIGÍLIA

apaziguei no regaço da estrela apagada
– desenho acrílico ao abandono –
atordoado conto as manchas negras no corpo
sacudo o pó desavindo do capote pardo
e agitando o cabelo neva cinza hodierna

apresento-me encenando o cavalgar espectral
do vulto sonâmbulo que rouba castiçais
e à luz de círios baptizo espermas inflamáveis

da lua herdo a limpidez
e exibo-a no rosto blasfemado
até ao enegrecimento dos frutos nomeados

das searas dançantes herdo o sorriso lacónico
repleto de amido alegórico
e a cravagem-do-centeio para mastigar sofrendo

apresento-me vigilante sorvendo a seiva elaborada
do monólogo exasperante
e contraindo os músculos afundo-me hirsuto
na devassidão agonizante da noite