quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O Bailado das Facas * Porfírio Al Brandão

CARTA À OUTRA FACE
para que saibas qual o sabor das pedras que rolam entre as sílabas do sofrimento dividido nas horas aguçadas. para que saibas qual o azulejo para onde deverás saltar e adivinhar o início vocal da canção que espremeste, anteontem, num momento de rumo perdido festejado a gemer. quero-te falar do afamado ouro, escondido na pronúncia vital do vil erro que à noite me visita:

derrière sa mère le jour s’étonne
l’or de ma nuit ne rayonne à personne

même si le feu royal embrasse l’étrange
j'attends sa douce mort – mon trésor change

derrière mon esprit tout est jaune et écœurant
l’or de ma nuit c’est mon seul petit chant

eu olhei; conheci escura a reflexão e por ter olhado reconheci o pecado que habitou puro todas as bocas. eu olhei e logo fui engolido nesse instante por aquilo que ignorava desde então. eu olhei... assisti à marcha do esqueleto por dentro da imagem até à sua desintegração total. olhei e ceguei de mentira...
je rentre pour redessiner la carte d’âme – la montagne a disparu

j’ouvrirai ma langue enflammée pour enterrer
le cœur vinaigrant de cette saison

le venin des affects circule dans les veines du corps abattu


dos escaparates do cérebro, vezes sem conta pisado, a maldição cobre os iluminados soldados que decifraram os virtuosos braços do cataclismo. sob a pirotecnia chauvinista – pressuposto ciclone festivo – os escritos encharcam-se de assombro humano... daí o planeamento estratégico de ressalva: providenciar peões de recarga; anotar possíveis pontos de fuga e esconderijos – em suma, o sonambulismo artificial para que se aloje o abençoado quisto social. «não ouves? parece-me uma flauta... olha!» – PARADA MILITAR: osmótica multidão na praça.

branca e curvilínea a estação na qual floresce a palma dos mortais que, ansiosos por cortejarem os arbustos carregados de bagos químicos letais, ignoram a húmida palha da sangria – fátuo manjar dos justos – remetida a um canto já fria, foco de poder e ameaça. as flores perdem cor no jardim da pioneira amargura e olhando com dor uma carcaça, a mãe retalha o vestido quebrando a jura. dos longos braços que a poesia ao homem confiou, estranhos cansaços e os olhos ainda baços do pouco que se incendiou.
escrevo-te para que conheças em diagonal o percurso da jornada:

compromisso – ir ao encontro do irrequieto rosto da
água

emboscada – ataque surpresa dos loucos karatecas do
gelo

repreensão – a monstruosa onda gulosa do sono de
papel

prémio – visita ao claustro dos profetas e um naco de
pão

... e a nova visão do espelho:

ce qu’on mord avant de plonger dans le miroir ne se raconte jamais sans qu’une vraie faim déflagre sur la peau. l’eau de ce miroir est flegmatique si on le regarde avec les yeux ouverts; il faut les fermer, il faut les sacrifier pour que l’épicentre éclate et qu’ainsi, l’eau des disparus puisse exprimer son mouvement tyrannique et vivre protégée grâce au verre renforcé par la magie des reflets.

dormem seis crianças junto à árvore que conta as fábulas dum mundo perdido – beijam sonhando as raízes. pelo carreiro do bosque um homem sem cabeça traz nas mãos uma caixa negra selada a lacre. o cometa – a terra ameaçada; alvoroço: a cor grita, o som cora, a caixa negra abre e desfaz-se de seguida – um cubo axadrezado nas mãos, perdido o resto do corpo. uma manada furiosa de cabeças selvagens estremece o solo – as crianças acordam. gemendo, a loba de úbere cheio atrai, piedosa, os cordeiros catecúmenos.

ô gorge où le rouge deviendra mortel
[un couteau]
ô vent malade goûteur de pauvres cueillettes
[un poireau]
ô cascade poissonneuse de la nymphette cruelle
[un ruisseau]
ô chevalier gitan du pays sans moulins
[un drapeau]
ô fantômes des femmes coquettes
[un tombeau]

«trago a chave da montanha escondida numa ruga» – assim se apresenta o velho de voz rouca, voz arrastada pela tosse seca. o traste que insinuando-se triste exibe a branca cabeleira como isco, cerca a presa na dança compassado e, por ser fosco desenha fusco, escorchando a pele dura da terra com sua bengala de ponta afiada. aproximando-se toca com o indicador na nervura saliente do peito do escolhido, intumescendo-a com movimentos circulares e é ao te aperceberes do sentido, que vês a seda ejectada de cada um dos dedos, alvejando-te desprevenido e envolvendo-te em sucessivas camadas de teia, onde amoleces com clichés digestivos – «vomitarás um músculo negro cheio de sementes».
le mot sera le fruit de l’ombre
en écoutant la voix profonde

«si la pomme pleure en tes mains
un nom s’agite chez tes plumons»
– c’est la voix de cet an
et des prochains

quel désert – j’ai soif et je ne veux plus des citrons
ô cheval du temps
viens me sauver promptement
espero que, entre os folhos das sete danças, possas recolher pétalas de carne para os teus mais recatados ritos, e, por encantamento, comungues o oráculo dos malditos.
O BAILADO DAS FACAS
auréolas de fumo coroam os pulsos: a questão
a estrela moveu-se
enquadra-se na cruz que divide o olho:
o brilho do Sete-Estrelo
¿boa-nova ou receio de enfrentar
o exército de plátanos?

deveras surpreendente
a assombrosa região
onde se respira com os pulmões
aos sobressaltos

deslizando
a sumptuosa forma regressa
ao grotesco bailado das facas
as mesmas que assistiram
o parto
¿partir?

subo um degrau
e um degrau é subtraído na escada homóloga
a esta que subo – a mesma ou outra?
reflexo desta mesma escada
só que vazia:
espelho glutão

a escada afigura-se móvel
forma o A ou o triângulo incompleto

a escada que subo e a inversa
sua irmã nas antípodas
a matéria e a anti-matéria
a escada e a outra escada
duas escadas ou nenhuma:
uma apaga a outra
¿a ressonância do reverso torna letal a ideia?

o vórtice encoberto
planalto da meditação

o cérebro invade libertino
com os seus tentáculos contrácteis
– o polvo axiomático:
suga factos
defeca sofismas
e arranca obsessivo
com hipocrisia inata
os tentáculos dos seus semelhantes

resumo:
borrões de tinta a vaguearem expressivos
no espaço e no tempo
¿porque não arde, agora, o papel?
adulto: adúltero enquanto esmaga vidrado
a essência; ler o manual
entrar na caixa e dançar organizado
percalço: trazer sempre na algibeira
um pequeno frasco de bílis
para eventuais situações indigestas
¿ninguém cala essa criança frágil
que berrando ordena?

ondas vulcânicas
cortinas de ar quente
na sala do mímico interrogatório
sozinho entre bocas torcidas
fui julgado ao estalarem dedos
coro
o sangue vacila como ordinário líquido
sujeito a fervura
diagnóstico: paralisia existencial
– averiguar urgentemente qual a causa
¿ensaio de matança ou anómala herança?

apercebo-me que não estou só
jamais ver-me-ei só
o Grão-Olho-Ubíquo espreita
e persegue os filhos do caldo primitivo

ninguém está livre enquanto respirar
a sombra do rosto ensanguentado
prevalecerá sobre a escrita
do húmus
– a culpa é a virtude dos que vivem
apresento-me de mãos desamparadas
num ímpeto agarro-me à parede lisa
as mãos sujas escorregam
e num rasgo
mancham de dor o branco glacial
– a ferida negra
novo ciclo em cada noite

mote da flagelação:
«o tempo passou
o bicho amou
o cérebro decantou
a morte assobiou
– quem sou?»

a carne é a única morada
seus folhos escondem a razão
dos espasmos
há que extrair energia cheirando a terra móbil
escutar o mundo
tocá-lo
agarrá-lo
e engoli-lo
vê-lo já dentro do estômago
[expansão apaixonada dos sentidos]

o corpo dança como ressurgimento
da génese planetária
¿como descrever a demanda doentia
de auscultar em todas as coisas
o solitário coração?
a flor nua empalidece
[arcaboiço suspenso]
um calafrio apaziguador ao visionar
o terno esqueleto da palavra

vértebras soltas organizam-se:
a mágica centopeia silábica desperta a carcaça
da ignorância
¿como elaborar um cartograma legível
para que alguém possa romper-me
a membrana invisível?

rebentaram as águas
dessa luz
que o objecto rejeita
– o mensageiro chega abrindo as asas

tu não reconheces o teu refúgio
sem que ouças o poema lamuriado que agudiza
o desgosto – tristemente o silêncio propaga-se
quando um punhal é apontado ao peito
¿roubas essa luz?

descalço-me à entrada do pinhal
os pés alertados para o sofrimento pontual
mãos à procura
as unhas ferem o dorso
dos pinheiros
com movimentos certeiros
corro:
o sangue a pingar dos dedos
ao sangrarem os pés tornam vermelha a caruma
à minha passagem

à saída
uma bacia de água limpa e uma toalha branca
esperam-me
mas lavo as feridas cuspindo
e esfrego o sangue por todo o corpo
até tornar rubra a minha condição
¿se denunciam o orgulho
qual a razão de defenderem
com certo zelo
o entulho?

para ir cabendo neste casulo de fibra
pronuncio alto a senha de guerra
preso ao zumbido sério
do zangão que ameaça
com seu ferrão venenoso

rendido ao licor pastoso que o relógio derrama
brinco com a criatura de barro
moldando-a ininterruptamente
até que o ser imponente se insurja
¿em que significado foram embebidas
as caricaturas?

amanheceu:
a cifra diferente
e hoje é maldito
o sol
o lápis de luz rabisca a escuridão
¿onde colhi o lídimo cereal da solidão?
aquele que me ataca é meu aliado
– estou contra mim
como ser eu se acordei com a pele vestida
às avessas?

ninguém conhecerá jamais
o turbilhão das sensações por que passa
quem escreve apaixonado
no peito duma rocha
com o sumo da romã esventrada
¿mas quem é digno da morte
dum fruto?

ali é o canteiro dos monstros que ainda
assombram o presente
o pedaço de terra que reanima
a saliva agressiva do que se vê brutal
enquanto sincero animal

ali é o canteiro das flores silvestres que verei
crescer e talvez morrer
mas que nunca desaparecerão
enquanto eu não libertar esta água
imprópria para beber
¿quem ousa disseminar as sementes do mal
sem se ver por um instante
como desorientado animal?
O ECLIPSE DO CÉREBRO
para cada eco há um ouvido sempre pronto
escutando o tambor apressado e tenaz
manipulo as sombras estuais do passado
faz muito frio nas passagens vocabulares
e a certa altura
todas as vozes se contradizem
– o que é mais construído é a destruição


MIRADOURO ALFA
o gato preto
em »===» fuga
o cão amarelo
: cal + cu * la –
o momento exacto
para detonar a bomba
presa à coleira vermelha
do gato preto

sobre os destroços de carne
o cão amarelo e o gato branco
fornicam noite adentro

sempre serei um ser desesperado
nesta terra de cima
[o barco nevrótico partiu em busca do sonho]
relance compulsivo
a estrada passeia-se-me nas veias
sobram apenas os mortos que detonam
a noite já túmulo do sono

início à peste
ou o início da peste antedita
com jorros de ferrugem
aparecem coisas mortas aferroadas
na camisola do filho protegido
pela imagem efémera mas cortante

desfiladeiro dos imprevistos
[a rígida mão morta
em queda
assaltou-me os bolsos]
a água outrora limpa é agora lama
e o choro sobrevive
através da vida que lá nasce:
algas rãs alguma flor brava
início à peste
ou o início da era da peste
na câmara de carne mais profunda

os vermes ressurgem com a boca suja
realçam a escuridão dos objectos
o amarelo extremo dos ornatos
geme no aroma reduzido a acenos cínicos
a fonte sugere leveza no viver pesado
devido à forja diligente
onde arde quem é novato
aquele que ociosamente tudo declara
para dentro de si
[linha irregular com múltiplas necroses]
aquele que esconde religiosamente o umbigo
em ferida

mágoa de sabor atrabiliário
gosto arrastado para a súplica dolorosa

beijo a cara mordaz e táctil
de polpa assustadora
e no corpo a glândula fatal busca
a palavra executada
suicido-me tantas vezes na mesmíssima tarde
e o que resta é doença


MIRADOURO BETA
um muro
esponjoso
ergue-se ameaçador

a caligrafia do medo
[roseiral a vindimar]

«os cavaleiros da noite triangular
empunham suas espadas

não escrevas no escuro»

grandes horas comerei iguais às que comi
assistindo a pequenos derrames de pó
saboreio o pão amassado pela alma anémica
reanimada por mãos de folha outonal
do lenho amarelo ou ar de mofo suspirado


MIRADOURO PI
alguém espreita-se dono de si
gerando ventania poeirenta

o ciclo irredutível
que a mão empena

o halo imundo do mundo reduzido a
paisagens hormonais amenas

ouço o grito do jarro
atirado contra a parede

alguém está na garagem
¿o ladrão de sonhos?

«sim
vi-lhe o capacete luminoso»

gota aliada ao destino
em cetim aliviado
o corvo tornado assassino
voltaram os assombros
gota amordaçada à beira dos lábios
tepidamente ridentes
o fantasma assalta a casa e masturba-se
defronte do busto de Freud

garganta seca
minúsculo demónio de saias
longo ditongo do pombo como assombro

alijo redes aleivosas
do polígono mental bifronte
e mensageiros da inverdade
indagam acerca da punhalada


MIRADOURO GAMA
gadanhas de osso
bailam perigosas
uma força inexorável
fustiga a pele
escapa-se à guilhotina
mas cai-se no poço
sem fundo

...............pausa...............

encostar o ouvido ao crânio
e escutar a cascata trovejante


entre a vida e a morte um passo
que ainda ninguém soletrou
entre a fragilidade amedrontada das palavras
e a sombra plantada no deserto
o hipotético equilíbrio das probabilidades
palavras tantas
tantas línguas e feridas
ouvem-se os sinos brincalhões no átrio coronário
esta é a música
a única música
tantas palavras como tantos homens

MIRADOURO LAMBDA
telescópio animal
ali mal
o fantasma encurralado
pela teia de artérias metálicas

renuncio o bife malfadado
negro e fedorento
temperado com o veneno
da víbora presunçosa


tareia em tremátodes
lupa incisiva entre seres
depressa nessa controversa revessa anexa
da luz convexa
doente
o invento de ser partícula
[não pensar]
um estalo
a nuca desfeita
e um beijo espúrio
ou abraço peçonhento entre inimigos
falsas lágrimas forçadas nos âmagos sulfúreos
amálgamas pusilânimes dançando contrariadas
só depois muito depois
o arrepio aquando o assobio do trio frio

o corpo curvo principia a dança
do cisne embusteado
a fraude célebre inculcada
no olho vidrado que com pedras se arranha
[tardio fermento]
pudera aceitar a tralhoada emocional
com a frívola ablação dos ícones entranhados

amenas holotúrias
drástico amar
sai demo do gesto
não do corpo-poema

MIRADOURO MICRON
pinheiros masturbam-se ao vento
esperma seco que salga

a língua

tempo de escoar a linfa
depois do tiro falso


bago de uva equilibrado na língua
crepita sangrando substância
franzino cruzar de pernas
fugidios espantos de maré silenciosa
gulosa caravela comandada por juizes
do inculpável manto imaterial
parto difícil
a cebola doa suas vestes

o luar cristalino acolhe o lago
cujo nome é desenhado por peixes
que sangram pelo ânus

o solo da infância remexido
recordações da gruta
do bocal
da aclamada boa hora
[o novilho sobre a palha
iluminada pela tocha pagã]
células esféricas amam espectros ocres

o quarto perpassado pelo olor a sangue frio
o corpo encolhido
e eis que surge o anelídeo de amianto
um galopar de sons hereges
ritmo convulso dogma incestuoso
no entanto
o animal dorme edificando vocábulos levianos
visitando o fogo intoxicado das usinas
deliciando-se com o ranger das máquinas
que molestadas afincam o sentido
da volúpia metálica

o gesto brando sobre a secura da arena
acaricio o deserto aceso
retábulo idiossincrático
derradeira manjedoura
e são robustos os ombros do muro
quando a mão apalpa o mundo
tipo solha atordoada


MIRADOURO OMEGA
tarefa:
riscar a parede
do cubo gelatinoso
frágil e transparente
e enfrentar a tempestade
com os pulsos garroteados
por tripas secas

¿o que é um relâmpago?
«é o arroto dos céus»


ávido movimento de cardumes febris
a triagem segue o padrão
de desintegração obsessiva
e o desacerto não demora
a favor duma oferenda

toalha nas mãos
sorriso indelével
cume das discrepâncias emergindo
da gula ciente do irmão
falácia da honra lancetada na hora frígida
estreita falésia entre confrades deturpadores

sonâmbulos atraiçoam a película visível
a mão vigilante sobre a adaga agasalhada
ao acaso
partir a telha outrora orquídea
despojada da organização de suas peças

flores e flores comi murchas
dentes rebeldes
energúmenos assassinos
a cintilante visão alimentada de cal

uma voz lancinante perdura
nas vísceras do coração

azeda o vinho no lagar da culpa
degredo ensaiado
minúsculo segredo
¿para quê explicar couraçadas evidências?
decantar as aberrações objectais
é o ofício da coruja que ao lusco-fusco oculta
o culminar dum trajecto indefinido
cumprido por finitos pés de acrimónia infinita

atrás da porta o túmulo
os dedos desagregam-se
olho fixamente para o vazio
detrás da porta
os olhos secam
[a onda engole-me]a realidade é-me mortal
A REVOLUÇÃO ESPERMATONUCLEAR
o engenho locomove-se libertando vapor de esperma
as batidas de caudas no pavimento
e o sol esventra a criatura
de rompante
tremendo-lhe as faces de terra hedionda
[terra de petróleo embriagada]
tórrido castigo
as mãos magras à procura
do trigo longínquo

chovem flechas atómicas
e a mulher grávida foge
com uma criança ao colo
deixando cair o biberão
de plutónio morno

ó rochas brancas que chorais ferrugem
ó rochas de polpa dura mas terna
na infância dividida em brincadeira
– a multiplicação honesta da areia
áspera aveia
para mastigar em peregrinação
as árvores de betão espezinham
os distraídos
são monstros na era do desperdício
feitiço dos bruxos
agora presos num frasco
por terem quebrado ensandecidos a cúpula da estufa
e enxotado os cavalos selvagens da ciência
apontando-lhes o céu
– o cérebro disforme expande-se
como húmus
para o ventre da terra

fórmula: absolvição por extermínio
o ar é água neste precipício
então
os pulmões afogam-se
ocorrem explosões rítmicas no tórax
e
surgem pústulas de adrenalina na cara do coração

dos sulcos risonhos florescem os espigos
de cloretos
os genes excêntricos cabalmente atordoados
pelo suor de nuvens electrónicas em confronto

convite para um mergulho no painel fluído
esse mar de químicos
possível dimensão sideral da libertinagem assassina
[artificial espelho colorido]
em que cada átomo entra em coma
perante o festival de estímulos eversivos
em fúria se assina o folclore inorgânico
entretenimento dos mutantes
e um ardor metálico caracteriza
a nova respiração

a estranha ave de rapina sobrevoa aturdida a praça
esfomeada esvoaça procurando um cume
onde possa construir o seu ninho com arame farpado

o eco distorcido do vírus
desdobra-se na sequência de imagens cítricas
[poliedro radioactivo]
corre líquido reatando postos de passagem
nódulos de afinidade selectiva

voo mental sobre a praça
acompanhado pelos ruídos do ADN contorcionista
o mercado da praça:
apregoam-se saldos de órgãos para transplante
as barracas cheias escorrendo ranho
enfeitadas com flores pulmonadas que cospem
para o chão

pontes de osso entre cadáveres a pilhas
esgotam-se de sedução no centro da penumbra
os olhos choram químicos
formando-se uma sombra em cada um dos sepulcros
das pálpebras
onde ferve a espuma da contrição revelada
– o fluxo de electrões corre
para o apaziguamento astral
o ser tracejado a força escutando
recriando trajectos soletrados
tão friamente
fiel à fome transumante
coleccionando rasgos de plantas
que a luz artificial propicia
através do incêndio em que o fogo se apresenta
como retornado
recusando-se a deflagrar a milagrosa deiscência
da cinza

as bolsas de pó mágico estão vazias
o pé de feijão abocanhando o céu apodrece de novo
aos quarenta pés de altitude
os rins desfazem-se
e o grito de urina estremunhece
com pedaços da mancha retocada pelos outros
qual dor qual sono
– gratos sucumbimos à benção orgânica da natureza

a escrita muscular descreve a guerra oxidativa
lémures organizados tecem
jornada a jornada
os esteios das trevas
e assobiam à noite evocando
antigos demónios

o prato giratório conserva os corpos em movimento
e a mímica provém da confusão dos vapores
emanados pela compota nuclear
do cântaro boquiaberto enraizado na terra deserta
cadeiras volantes ocupam o espaço
rompem a membrana do tempo coagulado

os homens lêem entre si os grunhidos
palavras toscas a formarem frases:
apenas uma quebrará o feitiço

os filhos gatinham nus brincando entretidos
junto ao lago das algas radioluminescentes
onde barbos de branca fluorescência
procuram agitados sedimentos de urânio

privilégio do sacrifício ou até
obrigação concêntrica
a insólita travessia do sonho químico
[hipnose experimental]
mirando o chapéu às cambalhotas no céu
cuspido pelo engenho avassalador
da (pro)criação humana

uma lança nasce do vale
entre os seios da excelsa mãe dos homens
senhores da guerra – ¿que tóxico esconde
o tão precioso leite?

os ovários escondidos limpos
cada qual no seu átrio de luz
espermatozóides rondam a armação
até entrarem pelo canal metálico
externo artifício distante do coração luminoso
da mátria
o cubo da amargura guardado fundo
sob a influência da supra-violência
de medusa encarcerada
– o ódio alimenta-lhe a insónia

o engenho encontra-se permanentemente refrigerado
dois arcanjos ventilam com suas asas negras
sem nunca imaginarem a cabeça que equilibra
toda a estrutura – a cegueira é a nascente
mais óbvia

a glande à espreita
e arrumada na prateleira
rente ao chão
uma barriga de aluguer
espera a sua vez

o murmurinho de vacas leiteiras em ruminação
contrabalança o negro peso da ambição
– os filhos montaram a tenda
e bebem regalados o sarcasmo iónico
no fontanário fumegante

saudades da erva verde
do seu sumo amargo mas estimulante
saudades do grandioso jardim
[mar de orvalho]
navega agora em pleno nevoeiro o espectro
da caravela – debruçada na proa a feiticeira raquítica
decifra diligentemente o futuro na sua bola de cristal
que o gás violeta escurece a partir do cerne
um rebento de avião brota
do pavimento quebradiço
balouçando o pelicano indígena
de estranha inteligência
estudado por uma bióloga
com um balofo coração
a substituir-lhe a cabeça

os filhos montam o papagaio com cartilagens secas
das aves ancestrais que morreram à fome e à sede
no ar
sempre voando amedrontadas
pelo tédio peganhento da superfície

atam juntos o fio
[comprida trança de veias
enrijecidas pelo desespero]
e lançam-no ao ar
à espera que o caldeirão dos espíritos ferva
dissolvendo as nuvens amareladas
adiando assim a tenebrosa chuva de enxofre

o céu ferido pelo gume luminoso
– pássaros mergulham cegos
unem os bicos de néon
[boca do sábio tempo decorrido]
para contarem a história do escultor
que numa tarde sangrou a sua obra
dando-lhe vida assassinando-a
AURORA

e agora saber de ti é trair a lembrança do que perdi

recordas agora roendo a maçã
acariciando o oportuno sorriso amargo que te iliba
as noites em que suportámos o peso da paixão
com os ácidos tendões da adolescência
¿recordas? vês passar em frente o desfile carnavalesco das identidades pueris
[máscaras do zoo romântico]
os animais que fomos em euforia sísmica?
– diz-me o que ainda lês
nas constelações florais dos teus sonhos
sufragados com o chá de ervas queimadas
no inverno nevoso cada vez mais presente

corríamos na rua liquefazendo
as montras e nelas a nossa imagem distorcida

o orvalho apressado mancha
de ciúme
a luminosa fruteira
estremecendo o combalido vagão cárneo
que tímido desfila à volta
é doloroso falar das nascentes do teu corpo:
a água quente correndo lentamente
formando um rendilhado de seda doce
– ó água que te quero mágoa no meu corpo

sei que ainda usas as tuas armas
pões à espreita os pequenos seres vegetais
dum sonho de qualquer noite
baldio onde a varejeira não suporta o cheiro
a carne morta
e põe os seus ovos no coração dum malmequer

¿onde estavas tu quando enraivecido
quebrei os braços a uma árvore?

anoitece
subo taciturno a nossa rua
e admiro um gato bêbado de amor
com os olhos fixos na luz dum candeeiro público
– lambe os dedos das patas
coça o peito comichoso
e procura a lua escondida por detrás das casas

relembro deitado todo o esplendor da prima imagem
saías do banho e uma floresta se abria
os teus pés realçados por pingos de chuva brilhantes
suavemente balançavas de encontro à noite

não brincas mais com o meu dolorido peito
nem ouvimos juntos
o estridor dos corações em dueto
ressoa agora o beijo afunilado da angústia
o amor às fatias ressalva a paixão limpa
dos fungos serôdios do prazer

o anel de vapor não nos circunda eternamente
sempre soube embora me deixasse seduzir
pelo emaranhado de pétalas perfumadas
pela dança das ninfas cuspidas dos tufos
de erva fresca
por debaixo da ponte
onde confessámos dúvidas e embaraços

arremesso ao chão todas as moedas de basalto
que arrecadei
já não preciso de comprar o mundo
e com as mãos livres faço música
entrelaçando as cortinas de aço

fujo dos momentos banhados a ouro e prata
pérfida condição de olhar a ausência
– talvez banhe tudo a cobre e bronze

enregelaram os diálogos na estação do frio
os lábios azuis murmuram ainda como facas
que insisto acariciar com os dedos negros
dum ódio cúmplice a morrer no açúcar
das recordações a desembrulhar no último suspiro

terror de te entrever na espuma do antedito fim
vergonha de sussurrar o que no sonho é confessado
aos gritos
arranquei os olhos ao peixe dourado que atento
nos sobrevoava
cego morrerá de tédio
e usarei sua espinha como amuleto

as fotografias ardem junto com as cartilagens
do malfadado peixe
mas não há exorcismo completo
antes que eu arda também

pensava que formado o casulo
a poeira branca toldasse as tentativas de fuga
o brilho das novas visões que vivem
com o sangue novo da ilusão
pensava que fechando as persianas
estávamos isolados do circo móvel
das criaturas ridiculamente vestidas
para o desmembramento de algo belo
que subsistia da sede do desejo
pensava que o casulo iria ganhar paredes carnudas
e cintilaria ao tom dos orgasmos em simultâneo

sobram as ruínas dum império construído
por falsos operários
com matéria frágil e transparente
como o vidro

resta olhar a neve: tudo é falso
a beleza dos cristais sugere a mentira salgada
e o sal cruel
esboroa o casulo gargalhando baixinho
danço com a armadura corroída
[a valsa do engate]

feliz de quem é engolido pelo amor
ou morto
quem conhece a colher do afecto

é tarde
nem chegámos a despir a carne dos nossos corpos
e jamais conheceremos juntos
o jardim das aves coloridas que se fundem
biblicamente
no protoplasma da aurora
O LABIRINTO DO FOGO
da velocidade do que arde resta a melancolia das cinzas
um rosto azulado espreita
«a vida vazia»
círculos de fumo pálido
marcam a presença do ser líquido

esqueletos dançam lampejantes
à volta da fogueira
[a música dos ossos]
dão braçadas a ritmo asfixiante
como se fossem lâminas afiadas
seccionando a labareda com precisão cirúrgica

imagens em movimento
[senhas de vida mordida]
«é preciso aprender a ler as vinhetas de fogo
para condenar o trago comum»

a boca cospe fome
enquanto essoutra
queima sempiterna
[a boca de lume]
corpos sanguíneos enegrecem enternecidos
a cada batida do tambor mole
que desmaia nas pregas do tempo
o chão estremece
surgem pequenas fissuras na pele de lodo
gigantescos pés vibráteis
lavram a planície do último sonho terrento
sacudindo como que desobrigados
a fúria do tímido basalto

martelos espinhosos fustigam a folha de ouro
arrancada à argamassa fibrosa
[células celulósicas semimortas
ou películas fotográficas enrijecidas pelo calor?]

ninguém chora preso às rochas da superfície do fogo
embora lágrimas de hélio celebrem a origem
de todos os corpos movidos pelo calor

envoltas pela fumaça
duas caveiras orbitam inebriadas
experimentam o beijo ósseo
como dissolução do casulo
como abertura para novo abismo

«finta as omoplatas da jornada
esfaqueia o céu vertical
alonga o golpe
rasga todo o azul:
verás o inferno»

a larva dorme em sua casa
o acaso intercepta o ciclo
«lenha para a fogueira»
e de súbito o arrepio
anéis contrácteis dactilografam o corolário
ondulam o brasão real tatuado
que luminoso engole sumptuosamente o medo
à boca da chama em forma de ovo

estes dedos estes ramos cansados
ardem em sentido inverso
na fogueira sobre o mármore azul

pequenas bolsas luminosas
cheias de brasas
[folhos caramelizados
pressupostos corações lancetados]
irredutíveis fogachos do indizível
«é preciso aprender a linguagem do fogo
usando seus ditongos
para renunciar ao gelo estéril»

o vidro derrete
instaurando o silêncio
¿como ouvir o fogo
nesta câmara escura?
os tímpanos embarcam no furacão de cinza
«fecha os olhos
não ouças os soluços da criança assustadiça
e enquanto ardes encurralado no infinito
permite que o fogo povoe o teu sangue»
a parede marcada pela teia de nicotina
ecrã:
músculos dum vermelho brilhante
entumecem ao olhar
o corpo sem a pele
«eis o animal verdadeiramente desnudado»
tudo o que o todo revigora
diluído no copo que o olho transforma
a serosa frágil toca o ar e ferve
[a imagem real sintetiza a mental subsistência]
o muco movimenta-se em direcção ao foco
rede:
minúsculos raios de soro incolor
aprisionam o observador

onde está a terra? porquê esta pólvora seca?
a fome ordena neste labirinto
não adianta compreender a ameaça
dos archotes acesos que alumiam ilusões
[pupilas artilhadas
pestanas queimadas
pálpebras flageladas]
«põe o dedo na minha chaga
recolhe o coágulo da afinidade
apaga esse borrão na labareda
verás que o sangue ressuscitado
se refugiará dentro da tua pele queimada
e esse teu dedo será o marco
do nosso novo estatuto:
seremos irmãos de sangue pelo fogo
e irmãos de fogo pelo sangue»
contemplar de novo
as folhas de outono em brasa
espalmadas entre as folhas do velho diário
que tem como marcador
uma fita de sangue corrente
[a escrita do degredo]
a língua podre
as nervuras dos olhos incham
[condensado mapa dum outro sentir]
são benzidas palavras paridas
e afastadas as que não seguram as letras

seguindo o rasto de gelo da lua
redemoinhos de espadas a quente
confluem de empatia
aparente sorvedouro complacente
é o trato cénico da voz umbrátil
a sós com as centelhas do sol
[coágulo de esperma inflamável]

a fogueira arde ainda sobre o mármore azul

«conta os seios das flores
junto à janela de fogo
é chegada a hora de amamentar
as almas penadas que se escondem
sob a epiderme dos objectos

reparte o leite perfumado
por aqueles que esgotaram as reservas
dos seus cofres de pólen»
o incêndio digere a árvore das árvores
[os pulmões secam]
«escuta o que o fogo tem para dizer»
ardem florestas inteiras cá dentro
é este o verdadeiro incêndio
que vive preso na caixa torácica
¿como cultivar de modo ordeiro
o elemento ígneo dentro do peito?

o tecto da casa assume-se líquido
desfocado aos olhos
debaixo enxerga-se
a face do lago que não espelha
[o portal]
um anjo desce com suas asas de alumínio
perpassa o tecido esponjoso
dum carmim submisso
mantendo hirta a postura
os olhos inflexíveis
e suas mãos firmes
exibem o esplendor do cálice de fogo

«não fujas
aproxima-te
bebe pela ferida do lado direito
[boca da redenção]
queima-te
não tocando

em nome do coração que alumia quando morto
cinjo-te com a vara angulosa da aurora»
os esqueletos caminham taciturnos
rumo ao cemitério
[a procissão das almas]
cada um com sua vela acesa
«eis a noite com linhas de giz entrecortadas
e gritos de luz no estômago»

a dança aconchegante de corpos
um estilete maduro ao rubro
e há fumo azedo
[azia do desejo]
«espreme as laranjas ácidas
da última paixão
e massaja o corpo teu
que em teu corpo se encaixa»

mãos esquecidas afagam
o rosto perdido da memória
«esquece a doce perfídia do desencanto
vê o sol nascer de novo
e visita teus irmãos de fogo
para nova reunião
na véspera das núpcias do gelo»

choros
uivos sincronizados
e depois o mórbido silêncio
[a lua trespassada pelo gume do icebergue]
jaulas de náusea com pálida luz
a esbofetear os rostos de lume
«entoemos cânticos de absolvição e de degelo»
partir à procura da flama
que o círio híbrido celebra
num barco com sua quilha
apontada à ferida do norte
[flecha de lava que oscilando desenha
no espelho d’água
o rosto queimado duma virgem em lágrimas]
partir à procura do pavio machucado da vida
num tapete chamuscado que sobrevoa
a praia de cinzas
cuja insígnia de ignição
foi bordada com linhas de neve coloridas

o ancião apresenta a marcha lunar
em torno da fogueira bravia
esconde o rosto com as mãos
como que por vergonha
e profere em surdina as sábias frases
do mestre que comungou
a volúpia do mármore enregelado

a labareda respira suspirando
e cada suspiro ecoa
nas cabeças dos atónitos discípulos
[a lição do fogo]
espera-se o lampejo do oráculo
o desabrochar da gema excêntrica
a noite como ouro negro
[genuína vigília em honra do miraculado feto]
«eis o solene baptismo na pia de fogo
onde se forja o coração»
a noiva palmilha a passadeira de centelhas
traz as mão cheias de cera
seu véu ondula
[vem suando sereníssima]
o vento assobia e aviva as rendas de fogo
arde o vestido assim como o corpo
ardem sem o nome imposto
«eis a tua esposa
celebra esta aliança com a erupção do beijo»

a insónia cavalga pela noite dentro
um arcanjo negro quebra a cápsula de néon
carrega nos braços uma criança morta
aspergindo luz doentia
sobre o luar circuncidado
que delineia buracos luzidios
[câmaras de cinza centrípeta]
onde óvulos e abortos foram incinerados
«acaricia os abrolhos desamparados
aqueles que secam ao primeiro contacto
com o mundo enxofrado
descarna-os depois e exibe as peças florais
que farão parte dum templo noutro sonho»

o calvário move-se enquadrado na dança
os esqueletos benzem-se com histeria
e depois um silêncio de fumo negro
«pinta as faces do rosto
com o negrume crepuscular do incêndio
e arranca as estalactites do queixo
pois essas lágrimas não te pertencem»
as giestas vestiram-se de luto
povoam o ermo
que lembra a pele dum braço suspenso

entra-se na gruta dos excomungados
protegida pelas cascatas de fogo

as mãos molhadas pelo medo
[oportuna miragem selvática no beco]
apalpam o rosto da rocha saliente
«lê os mapas do inferno
encontra o capcioso altar de anfiboloxisto
e ao ajoelhares-te
perante o magno olho de rubi
que refulge no peito
dum querubim em mármore azul
há muito adormecido
marca a palma da mão esquerda
com o carimbo oficial do purgatório»

o mal desenhado pelo bem desorientado
¿quantos são os sais culpados?
colisões de iões no corpo
o dedo apontado à estrela
[pirilampo do universo]
inflamada de choro

são falsas todas as sombras
que caminham à luz do dia
só à noite é que a sombra genuína
vagueia pelas ruas fugindo das outras
a verdade ensinada é mentira apregoada
pois na espada que se herda da lua
raia o sangue maldito que anima o ser
ameaçado pelo gume de gelo
cujo reflexo desloca o pensamento
atravessando fronteiras inimagináveis
¿de que cor serão os cactos da lua?

hexágonos a carvão definem o pedestal
[supedâneo concêntrico que se bebe do espelho]
quando só
uma pirueta explosiva
[o mergulho na noite]
esbracejando engolindo mágoas esperneando
e quando se dá o beijo
em profundidade
na testa febril do imo
a tertúlia de alucinações obtusas:
o duelo entre iguanas assassinas
o vinho arreganhando os dentes
a cançoneta amarelecendo os dedos da amante
um duende orquestrando estrelas-do-mar
com um fémur
o carrossel gigante lentamente movido
por escaravelhos mutantes

cheira-se o óleo da engrenagem mecânica
o coração perfura o colchão e aninha-se

uma geada miudinha
reata o monólogo de subsistência
reconstituir a casa
colando farrapos de húmus
com o gelatinoso muco de ossos quebrados
pelo ranger tenebroso
da carruagem dos mortos
reconstituir o espaço de cartilagens oscilantes
humidamente amadas
pelas mãos sujas dos outros
reconstituir a escrita da carne
escrevendo sangrando
sem saber como estancar o sangue
[o regresso ao jardim das estátuas de bronze]
resta lamber a tinta amarga
rasgar as páginas do martírio
e lançá-las à fogueira

o sémen luminoso escorre na ampulheta
[ferros em brasa como prelúdio
a mutilação mental dos sexos]
arde o tempo na fogueira doente
a branca alma navega nas chamas

um ente de fogo paira
acima da cabeça
respira ofegante na sua ampola intocável
morre e ressuscita em cada espasmo
de renúncia

«prepara-te para o derrame
não te esqueças nunca
do teu fantasma de gesso e arame»
errando no salto o símio é engolido
pelos pulmões de fogo
os pêlos queimados
segue-se a formação da crisálida
e passados os quarenta dias
uma mariposa de cristal voa
com suas asas pintalgadas de crateras
rumo à ilha dos regressos

o templo afigura-se cabalístico
porém o perigoso limiar aflora nítido
e a pele eriça
«bem-vindo ao museu das espécies extintas»
o espaço do passado reanima-se
e rompe as carapaças
de cada sufrágio metamórfico

uma bomba alojada no tórax
ameaça explodir em cada quadrícula de tempo
e os nervos são os cabos de aço
da máquina semimorta
[autómato arquitectónico assombrado
pela biomecânica emocional]
a multidão cala-se e cada um está só
o tempo pára
«escuta o choro sentido dos crisântemos
no adro das lamentações
e quando entreouvires a tua voz
abrigada no xaile que as outras ainda tecem
estremecer-te-ão os intestinos
como desmaiam as flores no inverno»
o olho fragilíssimo gira cristalino
e frágil
[ferramenta da irmandade]
planeta dos múltiplos espectros
que se interceptam ininterruptamente
gira até imobilizar-se de abrupto modo
e cair certeiro no ralo da fogueira

entra-se na casa do fogo
as entranhas do corpo assemelham-se agora
a cândidas flores de nenúfares em festa
«se olhares em profundidade o horizonte
acima dos ombros da criança
que aquece suas mãos de leite
junto à verdadeira face do fogo
verás que as sombras dos teus irmãos
são montanhas que se elevam irregulares
mas com a mesma pulsação»

a casa vazia
de tudo quanto enche
as paredes de lava fluida
[ondas assassinas beijam
fragmentos de icebergues]
e pelos corredores circulam
ventanias flamejantes que acalentam
o coração amordaçado
cativo no quarto escuro da casa
«entra de pés descalços neste templo
e empunhando a sarça ardente
purifica todo o teu corpo passando-a por ele»
o antiquíssimo fantasma das labaredas
[nobilíssimo gladiador vencido
na perpétua guerra das trevas]
surge pouquíssimas vezes
após um brevíssimo clarão laranja
de semblante fugaz e ilegível
com seu corpo coberto de pêlos em brasa

uma cobra amarela rasteja na planície lunar
seu olhar cego fere o mundo
reinventado pelo ser em novo dia
aos outros alheio
[a fogueira boceja]
arde o tempo
e tudo recomeça

para quando a visita aos bastidores?

horas de marasmo descomedido
minutos de sujar os dedos
com a tinta de paisagens instantâneas
segundos de equilíbrio na corda bamba
[apetrecho da grande farsa]
ensopada de adrenalina

recebe-se a frígida notícia
[um irmão de fogo
apagou-se na última noite]
um calvário ganha contornos
sete punhais trespassam o crânio
e o cérebro sangra azedando aforismos
o velório diurno
[última visita]
morrem por dentro os irmãos vivos
mordem as veias arranham o peito
vestem o luto
[túnica negra e cíngulo vermelho]
forma-se o círculo das pupilas de fogo
para última homenagem

aninhado sobre os pés do defunto
um mocho moribundo
as penas carcomidas
empestadas de suor frio
os olhos pardacentos
voltados para o nada absoluto

o mestre fecha a urna
com estampido ensurdecedor
e os irmãos iniciam a procissão fúnebre
até ao cemitério

«à terra tudo é devolvido
o que é jurado é esquecido
coração de carne é coração de lama
perdido está todo o tempo sofrido
aparta-te do teu fiel ouvido
pois viverás d’olvido na tua última cama»
PERTO DO CORAÇÃO
apesar da ambição sempre se vive perto do coração
a página incha
soro
palavras densas confessam o litígio
seiva num minuto – lugar
masmorra familiar ou o pátio das injúrias
garganta da árvore = casulo carbónico

«nasceu a espécie de morfologia rotativa»

agora réptil, rastejar em honra do graal
aliás cobra
[cobrar o ouro dos dias]
e depois olhar a lua
perder as escamas
– húmus

quero a culpa em botão
para aprender o gentil modo
de espicaçar o cacto
¿quem começou a linha?
que faço no meio?
«está aberta a caça aos animais do amor»

farol erecto
perdigueiros morrem afogados
beco
execução da separação
coração procura-se

lição:
se pára o coração
separa-se a cor
do que é são

procura-se o eremita que dá
pontapés nos astros

Eros morreu

o sopro devolvido
aqui
na angra do mal-estar
onde a dispersão é honesto fruto
do indizível senti(do)mento
com prurido doloroso
sob a pele

encantamento macambúzio
ou nova sessão do ritual lunar
já viciado
pirilampos esvaem-se em fogo
[presságio-pão]
«chegou a carruagem do pandemónio»

o fugitivo apresenta-se
entra na carruagem sofrendo espasmos de toda
a ordem
e ao deparar-se com o rosto do rapaz de cristal
é engolido pela titânica onda
do nojo

a fome desdobra-se
em cada esquina morre o alimento
à imagem do corpo docemente débil
a norte
brilha a esfera que o som sustenta
e desflora com azedume

a boca rasgada
os dedos cingem o território árido da sedução
a romã feminina sangra desleixada

canto integral todo o mal
a facécia do estômago em explosão
um bramido – canção
a mão como real sonido
– perdão

canto integral todo o mal
o riso do andrófobo funicular
revolta do lobo forçado a uivar
e na lua o arcanjo
receia pisar o arranjo por acabar
fixo ponto
dor aguda no peito
coração enlouquecido = semáforo intermitente
espreita-se à janela da flor triste
¿valerá a pena subir até ao cimo
pela corda de estames secos entrelaçados?
a teia do contrabaixo sustém a flauta que hipnotiza
o ovo oco
dúvida, dádiva da vida
dado da diva adormecida
flor selvagem
ou
onanismo subversivo

lavagem ao cérebro com detergente vulgar
reinventar o ser numa semana:

SEGUNDA-FEIRA
caio no útero da terra queimada
e envolvido pelos folhos duma placenta
renasço da prosa tubular ensanguentada

TERÇA-FEIRA
mergulho perdendo o ruído
na noite plácida irrigada
seduzindo a trompa d’água – gemido

QUARTA-FEIRA
distingo o solilóquio dissonante
da bravura imitada a partir do rochedo
escamoteando o diálogo agravante
QUINTA-FEIRA
inscrevo a noite no meu peito
sombra derradeira ou espelho
como prelúdio dum sonho desfeito

SEXTA-FEIRA
desafio a barganha miscigenada
e inalando a aragem retalhada pela abelha
ostento a centelha da palavra nomeada

SÁBADO
vejo a fome sobre a mesa
e desenho o estranho fruto latejante
que repousa no balaio da camponesa

DOMINGO
vivo no colo das algas negras – a hora vã;
nutro-me da celeuma do verso entoado
pelo poeta surdo que crê na lua órfã

regresso assistido
os ombros limpos após a viagem
cinema de sucção – película projectada
na parede do quarto
forrada pela pele extrasensorial expandida:
cromossomas abraçam-se comovidos
duas alforrecas apaixonadas brindam ao amor
valsando com as campânulas a arfarem
em simultâneo

coração marinho = coração solto do feto
a ventania orgânica nos corredores do corpo
[sístole]
a sombra devolvida renovada
com seu vestido de oxigénio
que se desintegra à sua passagem
por todas as igrejas do corpo
e quando nua esconde-se
repetindo a pequena escala
o Jardim do Éden
[diástole]
regresso de tudo quanto vive nos subúrbios
arrancam-se pecados celulares
sílabas do cancro e o mal gasoso

o grito subsiste – o azul
do vulcão enfurecido

sobreviver com os estigmas acesos
sobrepondo dolorosamente as paisagens
assegurando víveres para a dança
das vísceras
para que a bandeira negra da casa clandestina
seja hasteada na décima terceira lua cheia
em que os fantasmas descem navegando
[filamentos de leite translúcido]
terríficas ondas de enjoo
que delineiam os pulmões com as lâminas
doutro sentir vigiado pelo ouvido murcho
da câmara morrente

colónia de fantasmas = aorta pejada
as mãos imersas no mapa movediço
balouçam em sintonia
com o alarido da manhã em que colho
rebentos de topázio – desabrocham
virados para o tufão

a rosa tal como a pele rosada mancha
ao contacto frívolo
e o edema traz a morte roxa dos excessos
enquanto que a flor da dor vive
do sangue pisado
e purifica-se no silêncio dado entre os estilhaços

perímetro da flor = periferia do coração confuso

desmaiam as pétalas da agrura passional
a voz última suspende o cortejo
«olhai a flor engasgada»
O POMAR DOS MORTOS
último acto – sobe o pano – mortos todos os actores
a rocha magnânima deveras intocável
no entanto apunhalada à nascença
¿morta?
não
eternamente viva por nascer morta
– a vida é o outro que nos mata

¿como colher o cogumelo hemofílico
que se prende à rocha como a rocha
se prende à morte?

reconheço-me agora estranhamente
repetindo na retina dos olhos
o caos das coisas que se derretem
depois de olhadas

¿magia ou poder?
ver para ser?
ou então «nada»
mera ilusão?

à saída da feira dos fantoches
um visco grumoso arranha-me
a garganta

ao ser descoberto
liquefaço-me
e entro num sulco desconhecido

o arvoredo equilibrado na ponta do nariz
ouço passos
a sombra regressa
o trilho desaparece

pedaços de fadas espalhados pelo bosque
abantesmas aflitos entrelaçam-se confusos

o anão verde surge
protegido por uma
esfera transparente
brada:
«fujam depressa
refugiai-vos
na bola de cristal»

persigo a borboleta que rouba
a cor ao carvalho
até ao horto dos corvos vigários

pontos transversais
substituem ímpetos que somados
equivalem a zero
guio-me pelo eco poético
[bruma em sangue por chorar]
até ao cais do roxo acre
e despeço-me do que não vejo partir

volto para trás deambulando louco
e sem dar por isso
adormeço junto à fonte dos pecados

acordo ouvindo a cantata estéril
[a esfinge do medo]

canta o parvo sábio:
«cremado na circunferência
em jeito de absolvição
sorvo a exigência
o ácido ilegítimo do tendão
canto desafinado
o hino da criação
rodeado pelas arestas
do pesadelo
canto a orgânica da indefinição
o ritmo cardíaco
do enigmático flagelo»

e de seguida o sábio parvo:
«o arguto gesticular insípido
encrespa o tacto
em busca do segredo
não há paixão nem cupido
e a última palavra
o último degredo
da cinza ou corpo ressentido
é a resposta à esfinge do medo»

en-tarde-Ser
eis a hélice ensanguentada
do devir

a noite gulosa aproxima-se
rebuçados entopem os intestinos

o automóvel morreu de congestão
auto da pasmaceira
móbil arabesco
[o recreio]

tentilhões etílicos
debicam o cenário

[risos]

«sou um sobrevivente ferido
no matagal das sombras

apresento-vos a maldita terra dos espelhos»

trabalho incolor da alegria cósmica:
esculpir o gelo
sob a queda eminente
das estalactites que contornam a noite

procuro o buraco negro do silêncio
nuvens alinhadas
brancas vértebras móveis
doce calcário a pender no azul
benção ou
desejo de morder os cavalos do sol
que relincham cansados

dedos sequiosos remexem as pedras
libertam leite ósseo de suave aroma
mergulham no âmnio
e acariciam o feto que não nascerá

uma musa de luto bebe o chá
dum corpo a atingir o orgasmo
que solitário se despega de tudo
e se retrai culpado

o sangue juvenil é agridoce
[combinação de giesta e pólen]
resina espessa reservada
para a ressaca junto ao tampo

as notas musicais desconhecidas
aconchegam o sexo
bêbados perseguem à noite
borboletas narcotizadas que deambulam ansiosas por
beber a luz
que sobra da janela do quarto onde dança
a filha do semeador d’almas
dona e senhora dos homúnculos
é ela que guarda a máquina das sementes
o cerco criado a partir dos versos de jasmim
cânticos enegrecidos pela agonia
da minúscula criatura de cinza

¿onde perdi a pérola da imunidade
ao forjar alvéolos factuais?

não escapo à sogra da verdade
tragam-me a saltitante refeição ancestral
e o vinho sangrento

mórula de tecido a boiar no lago fumegante
¿nevoeiro como fim?
propósito de início ou halo perturbador
que arrebanha os corpos num só fôlego?
o fim?
quem sepultaram nas rochas?

raízes gigantes cercam-me
perdido no tempo
[jaula carbónica]
os lábios secos cheiram a maçã

«ó mãe do cataclismo subversivo
lava a culpa dos homens com o teu choro
e gera em teu ventre frutos já podres
imunes ao sofrimento»

¿quem ainda
por entrar?
às vezes
olhando uma cabeça em profundidade
quase perpassando-a
concentrado embora impaciente
consigo observar o bico mágico do andorinhão
sobressaído do ouvido
que rodopia incansável
namorando os insectos até comungá-los
num acto célere e subtil

alguém gemendo oferece talhadas de oxigénio
carrega nos dedos a preguiça de atender
o telefone que toca incessantemente
junto à cabeceira
segregando o muco da indiferença

d’ontem a pausa comestível
relançada no vagão da desonra entrecortada
[espasmos irregulares
pulsação esquizofrénica
vómitos doentios]
hoje
arrancadas as fibras coronárias
da estátua anoitecida no pensamento
beber-se-á a infusão de líquenes amargos
linfa do distúrbio suicida

eis a ascensão dos aracnídeos assassinos
que silenciosos bebem álcool
e segregam
o veneno vocabular
«ó tu que morres lentamente
ao longo das décadas
agarra-te ao alguidar
e concentra-te na cobra de sal
que lucidamente nada
pois ela irá te expurgar a azia
que mancha os pulmões

atravessa a moldura de água
que ondula na bacia»

lábios de cinza
beijando as paredes
do aquário de seda

peixes hipocondríacos
alimentam-se de algas nauseabundas

um feixe luminoso torna-se corda dorsal
da água

luz suja nas escarpas
gotas de chuva lodosa
[o sangue dos fantasmas]
a cidade corre para a loucura dos últimos dias

torna-se inútil desculpar
a agitação frenética da ignorância
turbilhão insalubre
ínfimo crepúsculo deglutido na escuridão
do lúmen da arquitectura cilíndrica
a muralha aflita cerca o boato
vendaval de serão
caras rendidas ao abismo personalizado
sucumbem infestadas de caroços
de betão

pés de talco deslizam nas lajes luzidias
que transpiram clorofórmio

estacas humanas dissecam órgãos frágeis
rasgam inadvertidamente serosas
bebem metodicamente fluidos corporais

a mulher feia abre os braços
plana sobre a noite
a lua escava-lhe o rosto
aterra na esplanada
resta-lhe ler a triste sina nas constelações
de grãos de café

o outono choroso amarelece os folhos de carne
breve instante de hesitação
à entrada do pomar dos mortos
[os frutos caídos]
e pesa tanto este capote bordado no silêncio
com fragmentos de vidro aguçados

se os mortos tivessem asas
o penoso olor desapareceria
e poderia saborear o genuíno perfume
dos limoeiros
cara negra enquadrada nos latidos
do violino branco
[identidade surda mergulhada
na caixa de sons]
ofício da indagação
viver a trincar o betão
diário de bordo escondido
entre o tórax e o abdómen
entre os pulmões o coração
e o fígado o estômago os intestinos
a multicolor solidão
resume-se à acumulação de calcário

impressões que se arrancam da dor
passos no pátio gélido
[uma pegada plangente
gravada na laje do impasse]
rajadas de dissonância
murmúrios
ouvi-los torna-se mutilação somática
a pele transparente mostrando o carácter
da carne
o silêncio rasgando a postura

a dor da criação é serva da imaginação

a lâmpada do remorso rouba luz
um veio de água fúnebre absorve energia
[estaleiro dos poetas sem cabeça]
sortilégio infindo amortizado
pelo solene artifício do desprazer crónico
batidas inebriantes cegam
o insofismável ensaio
¿será legítimo seduzir o conteúdo dos hiatos
para arrancá-lo com veemência desnecessária
omitindo o presságio nebuloso do equilíbrio?

sonolento embraveço esguio
oriento as mãos no interstício
entre a superfície do corpo
e o vácuo

o complexo ser de números
cria a infusão que conquista
o sono

se sorrio minto
como semente atrevida
esfrego os pulsos nos lençóis
pouso lentamente a cabeça
e extasiado pela vertigem
adormeço

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

boca do mundo * Porfírio Al Brandão



ANOTAÇÕES DO EXORCISTA DESEMPREGADO

“Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começam”

António Maria Lisboa


o luar sangra copioso enquanto uma ninfa dá à luz pudibunda. a pele derrete num sopro desfocado coleccionando fungos enjoados da acrílica sede. encostado ao parapeito aprecio a fúlgida maresia de elementos. embebo um casulo no álcool e coloco-o no crisol em chama para reforçar a sombra da alvorada de cordel. estrangeiro em casa, a ruína repetida em cada palavra – de que matéria são as nódoas na túnica luminosa? sumo de tulipas negras ou sangue pisado? o problema é despertar a sombra morta do que já é morto.

saboreio o doce verso da terra em cada circuito oval circunscrito, no álamo em que sobeja a dor póstuma dos gestos. saboreio o que de sabor fede – a injusta verdade dos gomos insubmissos – arranco o eco aprisionado e do soluço de cristal a voz retrai para que no êxtase sincrónico dual, um outro ser puro e imaterial surja.

perante a abscôndita sinceridade carbonizada rompi com o diabo das miudezas vis e espumei clorofórmio ensandecendo. vivo a loucura febril das tardes de escrutínio – as sarças ardem solenemente. o vidro ameaça a veia cardeal e cabeças negam propósitos. deste terreno apenas se herda o húmus e a névoa inevitável do supérfluo.

este novo antro
este apetite elíptico
ou estrada relançada
ou abismo ressentido
inspira expira e morre
ciclicamente – recicla
a terapia da fala

mergulho no mar marmóreo onde ressurge a fisionomia. o lodo verde apodera-se da pele. bebo as cores dos olhos que fugidios embatem nos meus. espremo um limão verde na fechadura do acaso. como expressar o desprezo encurralado em cada cópula? lento visco a escorrer entre rostos que num tempo a tempo tocam-se solitários – a espera reanima o falso vagar dos corpos.

teias de seda cegam e o murmúrio aquoso silencia os gestos. os ecos afunilam-se. recebi notícias da outra margem pelo mensageiro negro e agora despeço-me atirando asfódelos até ajaezar o ínvio nado-morto... adeus.

este novo ser
esta estátua de lama viva
ou agitação obscura
ou decalque mordido
inspira expira e exibe-se
doente – vomita o bolor
que o persegue à noite


irrompem apotegmas do algodão translúcido que limpa graciosamente o coração de vidro. preparo a mortalha para o almoço. para a entrada indigestas reflexões metafísicas abrem o apetite. o pulso frágil repousa na mesa onde o pão desabrocha para as bocas intimamente rosadas. súbita fome verbal – mastiga-se o pão, mastiga-se a opinião – à mesa curam-se feridas corrigem-se posturas num vislumbre ósseo. as frases desirmanadas do suco medular são a confissão nas entrelinhas e os choros em argola, encadeados nas lacunas do diálogo arquitectado sílaba a sílaba, recriam uma memória colectiva.

não repouso nessa neblina acoruchada. consumo poeiras obscuras dum silêncio reduzido à orla imediata e, se da mão envelhecida se celebrar a deiscência dos esporos com o fúnebre desalento da memória alegre das coisas, sairei ileso ao desabar o solo carcomido. abro os olhos e entro na tertúlia imagística da sala vazia. os naipes arrevessados ao chão depois da notícia, o cego jejum da solicitude mesquinha – longe, neste lugar, procuro repouso.

uma vez mais
a formiga verteu
ácido sobre as pétalas
manchando com luz negra
tudo à sua volta

a pronúncia secular da cinza retrai o que próximo se acende quando denotada a alígera fecundidade da boca que, morta de desespero, cala-se enclausurando segredos dum calcário ardente.

uma vez mais
outra pomba morreu
em pleno voo
quando um poeta cardíaco
selou o poema caindo sobre ele

não digo do palácio de cristal renegado no sonho enquanto sopro diário. não digo dos fungos que sós assombram qualquer regresso nos pedaços de jornais velhos. digo dos dedos arqueados, digo do vibrante arco metálico que regressa do exílio.

abro os braços à agitação dos ventos do sul. persigo os pássaros que outrora desenhei nas noites em que a insónia me ensinou a dormir de olhos abertos.

tento emitir a argola envolvente perante a prontidão canora do vampiro enraizado no sangue que teme a volúpia exasperante das cartas a escrever. reconheço a lua na noite aquática, rezo ajoelhado perante a ulva macia de prata e sigo com o olhar um peixe que foge a trote; os dedos negros de paixão, unidos em oração, pedindo a anulação de imagens no espelho universal. enganado pela viuvez da imagem, assisto cabisbaixo ao simulacro da vulva póstuma.

neste antro nocturno, aproxima-se de mim o tosco anão verde que tosse agoniado por ter folhas secas caídas do castanheiro senil entranhadas nas cavidades respiratórias, e, jocoso e sério, segreda-me ao ouvido: «engole o botão de rosa».

a parábola repousa
na corola da flor
que madruga
adoçando o ódio


não mais do que isto: a zaragatoa aperta, o inóspito campo é povoado por flores-de-lis, a ronda precoce entoa os caprichos e a madeixa de cabelo é moeda entre inimigos. não mais do que isto. rodo a maçaneta e já não nego o tesouro mas a sua forma. ninguém dissimula a logística entranhada e os glóbulos jamais apagarão as éclogas consolidadas no ínfimo recolher de espasmos coniventes até à estância libidinosa que o coração engrandecido pressente a todo o momento. que memória devo guardar dos dias sem semântica?

a parábola como punhal
exposto no regaço inquieto
– crianças adormecem
no quarto que fumega

a relíquia sob a plena colina, o áspero colar indemne no colo, o labor floral nos braços... remexendo os sais me devolvo. o desenlace do argumento forjado a um passo do fulgurado abraço entre iluminados e dançando à chuva o sabre do inócuo ressentir golpeia o grito náutico – eis o espaço mínimo entre flocos para blocos que contrariam os focos. daquela tarde lembro-me da caruma morena do verão, do cheiro a hortelã que benze os lábios. nesta tarde resta-me a sede... o unicórnio abandonou o vale dos espelhos e, agora, corre a morte no rio.

de novo a corda ensebada, o visco arrasta-se nas artérias do afecto. a distância contida no aperto propicia a revolta da saliva metafórica que faz com que as bocas soletrem mágoas e esqueçam o beijo, magno artifício do prazer. abro a janela e emerge uma linha curva no repentino solo. escavo derrapando no escárnio e vislumbro a raiz no brusco clarão que incide na aguarela.

voo picado
sono moroso – drena-se
o paulatino veneno


os lábios não estão completos ao dizerem a palavra, mas o simples ruir das margens completam o sentido infectado do corpo.

três versos três facas
ainda não morreste? – alguém
será teu provisório inferno
PRANTO PELO CORDÃO UMBILICAL
“As nuvens explodem. Estamos no Signo da
Cascata. Porque as mães sabem tudo. Aguardam
sentadas o vinho dos mortos.”

Fernando Grade

“Mãe: quem me dera dormir tanto que voltasse a nascer...”

Jorge Fragoso
neutrões assumem o comando da matéria
cabeças vazias clamam o nihil
perdidas cabeças na pele
farrapo de células
os apelidos da infância humilham
aqueles que deram braçadas
no mar de saturno
facas estelares
atravessam os pulmões
que beberam o ar e a geografia abissal
a repetir uma e outra vez nos pesadelos
inicia-se a combustão
os átomos dançam em torno do fogo

entra e sai da câmara
o que és?
soletra «frio»
o sono longe e certa a faca do dia
sintoniza a cara de luz na avalanche mental
ouve o grito da imagem
esfaqueia a sombra do que se diz frágil
mas intocável

esfregam-se mãos na parede pintada
com o sangue dos vermes intermitentes
desenhos a lápis fino nos olhos apontados ao sol
a sujidade do mundo é vertiginosa
a beleza é subjugada pela raiva
ó mundo dos acidentes hormonais
bombardeado com motorizadas cadentes
vindas da cordilheira de meteoros
apartai de mim o jarro de porcelana que parti
e colei peça a peça com a cola dos lábios que trinquei
nas absurdas noites da paixão adolescente
¿como esquecer as roupas sujas
de lama e verdume de giestas?
o fim em cada luar
areia mastigada com desdém e antipatia egocêntrica
[o mundo selvagem]
cai a música
o açúcar da doença rapta o sorriso hipócrita
entre pensamentos planetários
os dedos já navalhas ferem as faces do rosto

mãe
a orquídea está cansada do orgulho
que lhe corre na seiva
mãe
expurga-me o veneno
a obsessão visionária é negritude discursiva
¿como esquecer o coração da viagem?

e se fosse possível prever
a órbita
das auréolas voadoras?

e se depositássemos
as veias
no antro estomacal do mundo?

e se largássemos
as mágoas
que causam anemia?

e se já não houvessem
os espelhos
da alegoria social?

e se prevalecesse a intercepção desmesurada
dos olhos onzeneiros
que sedentos esperam o desabamento do tecto?

e se a negra cor do pano
alimentada de medo
deixasse de ser a cor do sono comum?

mãe
vi Cassandra desolada
subindo a rua com a túnica rasgada
os pulsos rodando brancos
os dedos tacteando francos
o ar que já não respira
os olhos repetindo o poço de sangue que vira
o rosto esculpido pelo ódio
dedicado à besta que subiu ao pódio
– Cassandra arrasta seus pés
seguindo o trilho do sol pela última vez
mãe
vi Orestes procurando a víbora viperina
e nem Pílades lhe esgueira a sina
nem Ifigénia o reconhece agora
cada facada em sua mãe é hora
que passa recordando seu pai
com estima cega – o coração trai
o materno colo que de carne o adornou –
por Hermíone Orestes Pirro matou
e Cassandra soltou um sorriso maquiavélico
– Orestes carrega nas veias o amor bélico

o andarilho humanóide
festeja ensonado
a sumarenta denúncia
chove
e há quem se molhe por dentro
parafusos de cobre enferrujam na carne mole
do sentimento que veste os órgãos
suados de existência
chuva contrária
chove
e há quem arda por fora

mãe
o bicho-da-seda
encontra-se rodeado de agulhas
contorce-se de dores
quer sair e sairá
mãe
tenho dores por todo o corpo

monto o palco
forro o cenário com a pele
o mundo entra-me pelos poros
declaro único o lugar
[o cérebro da cidade dos homens]
único é o primeiríssimo lugar
– com todas as ossadas encaixadas –
no qual assisto à dança dos mártires do novo tempo

estar aqui
mergulhado no muco
lendo o vermelho da imagem
o sangue
sempre o sangue
digo sangue escorre sangue
e ele dentro
anima o corpo explodindo nas veias
o sangue
estar aqui
à espera que as vozes presas na minha cabeça
se soltem desobrigadas
para que possa escutar a mirabolante fábula
e desenhar os esquemas nas paredes amarelecidas
pelo líquido amniótico

dentro quente me sinto
as duas metades roçam-se com desejo
dentro possesso articulo os selos ósseos da memória
fora arde-me o umbigo
a musa esbofeteia o ar acima da cabeça
fora solta-se-me o cavalo de bronze
que amarga a língua presa ao meio

mãe
quero adormecer de novo no teu ventre


TOOLBOX

ESPELHO
da superfície plana a imagem plena
eu e outrém frente a frente
paralelos ao vazio quedamos atentos


SANGUE

ângulos advertem perigos geométricos
vermelho o sangue mata


CORAÇÃO

cofre de mágoas guardado por espinhos
cofre de pólen guardado por ossos

BOCA

a caverna húmida ecoa – a boca – adúltera
encarcera o segredo libertando-o


MÃOS

iluminam o que tocam
movidas por escura razão
– soldados nus dançam atrevidos


PELE

movimento limitado ao círculo delineado
a tarde de horas vestida – a sombra mancha
a pele


CABELO

lianas descem a colina sinuosa
almejam envolver todo o corpo
para que do casulo um novo ser nasça

OLHOS

janelas móveis para o mundo
espelhos irredutíveis da realidade mutável
esferas cristalinas incrustadas no altar do corpo


OLFACTO

o aroma chama – tão secreto seduzir – à porta
do palácio polpudo é nosso dever sucumbir
aos desígnios egrégios de tão humilde condição


OSSOS

articulam-se comedidos dobrando a carne a pele
jamais roçam o perímetro frágil do afecto
– o esqueleto insinua bifurcações da vacuidade


ÓRGÃOS GENITAIS

Profusamente Ébrio Navega Injecta Sémen
Vulva Aberta Gritando Inspira Natividade Abjecta

OUVIDO

auscultando o movimento intrínseco ao vulto de terra
no laboratório isolado de brancas paredes mortas
o ouvido olvida a pulsação primordial que une
as vísceras do ser às entranhas da crosta terrestre


ROSTO

ninguém adivinha o rosto com o olhar
por mais profundo que seja
ninguém o desenha de modo fidedigno
com seu lápis mente ou deslumbramento
sem que lhe imponha traços de outros rostos
ninguém conhece o verdadeiro rosto
e se alguém julgar conhecê-lo torna-se ninguém
FLORILÉGIO DO SILÊNCIO OBLÍQUO

RECINTO MORTUÁRIO

acelero a cor do pinho na alvorada que se incendeia
escrevo como obsessão última
arauto vibro
penso e viro o leme no que é pleno
mas inconcebível – a agulha sobrevoa
a pele – defendo a farsa das terminações nervosas
como preâmbulo declamado pelo gago a apedrejar
enxergo a linfa no gume
procurando o gato persa fictício
e sacudindo a poeira de alucinações
adopto o léxico do corvo

sei que criaram a verdade a partir da rosa murcha
e agora as bocas esfomeadas comungam-na
em círculo – a lampreia não sabe o nome de cada um
dos seus filhos – não me cabe corrigir o silêncio
sabendo que o peixe foi criado para o dislate
e que o agrilhoado decesso singra
no encontro dissonante em que visto
um rosto de prata
a tarde torna-se crespa com o glutinoso silêncio
festejo a solidão comungando rochas brancas
e amêndoas amargas
enquanto a mulher de água doce caminha sobre
o mar

observo o meu corpo aliás estudo o corpo
em uníssono – será o corpo a herança a profanar
no pálido recinto mortuário? – o corpo fez-se a partir
do silêncio que ainda orvalha na pele
tão triste a água que sobra
quando a força do beijo ósseo se torna agreste
quem morre numa boca em corpo se transforma
vive-se mastigando o pão da culpa vive-se
da lenta morte que aglutina grãos de pólen sortidos

a gota de mel alastra-se pesarosa no copo de cristal
e só é mancha quando esfregada na pele
daquele que a repudia e enxovalha
quando decalca o pudor salino que bebeu
dos seios marmóreos das estátuas
há muito esquecidas na ilha longínqua
que se tornou ferida negra do oceano imenso


CIO

amancebam-se os bígamos pois é etéreo
o caminho da paixão roxa – irá o corpo enlanguescer
nas núpcias como logro? amante ou locatário?
eis a dúvida da nova praia – a cama enluarada
é o leito fúnebre de Platão

o maganão de olhos esverdeados solta a fúria
na espiral dum beijo
lava-se no lago sagrado agitando as águas
depois do banho reduz-se a um cadáver
manchado de néon que conserva no peito
um ninho de aves de sangue frio

o edifício de açúcar erigido em tempos
entre as árvores de betão foi demolido
e resta agora o regozijo pesaroso
aquando a despedida das aves migratórias – o cadáver
acena com sua mão construída de musgo
e líquen – adeus aves perfumadas

DUAS POMBAS VADIAS

“Pero tú vendrás
con la lengua quemada por la lluvia de sal.”

Federico García Lorca

vislumbro o suicídio ao longo das tuas pernas
de te tocar falhei ao fingir falecer
a silhueta púbere sobrevoa
o que me ataca por detrás
espera
quero que saibas que não perco o rasto
do que voa rente ao chão

vem pousar nesta noite escura
amanhã virá a mãe do que se move
liberta-te desta casa
os olhos agarram-se ao chão
liberta-me também
pois quero acordar no aquário teu
acalma-te
quebra a cabeça de água
o outro mundo é apenas
um outro dia que não chega a raiar

¿quantas vezes amarrados
à cama resguardada do frio criador?
não consigo ver nada lá fora
a erguer-se calvo e serenamente cruel
neste amontoado de lençóis impregnados de saliva

éramos pequenos deuses rasgados devagar
quando selvagens na cama
para terminarmos mortos no chão

a síndrome das algemas de vidro ataca de novo

tenho-te nas veias
num espaço de luz penetras em concentração
entras radiante
a vida como rocha
o amor tão devasso
e um fio de chuva corre nas palavras

perdi-me ao perder-te em mim
nas minhas coisas poucas
amarguradas de forma tal
que o singelo movimento é
a propaganda horrenda na rua

o lado agoirento emaranha as atrocidades
duas pombas vadias
apaziguadas pela enfadonha submissão às regras:
sem lábios carnudos para beijar
sem poder de escolha entre aberrações
de algo que ainda não se conhece

distanciados por um interstício
dois corpos suados – a nossa juventude estreitava-se
na conversação imaginária – tu dormias
e eu contemplava a sorumbática descida
do milhafre
ameaçando a sombra do barro feito homem

o que de mim recolho pelo olhar retido
é morgue absorta do abismo detido


persistíamos na súplica de chegar a qualquer lado
ajoelhámo-nos
gritámos
dissemos que um dia mataríamos a lua
e afundávamo-nos cada vez mais
na areia movediça

aflige-me o cansaço de cansaço
a maçã acidula torna-se azeda
como denúncia poética
dos que foram condenados à vida

fim em cada qual
exortação insatisfeita do animal


foste-te embora
sei que levaste lágrimas escondidas
nos punhos cerrados
aqui comigo ninguém
dispo o nada visto o nada
troco o nada acontecido
pelo nada sentido
mergulho no rio – uma urna
flutua ao meu lado

irregular esta navalha do céu oceânico
ataca-me de novo um mar de vidro
um anjo atravessa a nado as minhas costas

a navalha foi cravada fundo


FALSO FOGO

chego tarde e trago falso fogo nos lábios
falaram-me da maçã sem corpo
e inocentemente esperei a mãe dos ovários de ouro
para lhe dizer que já não é bem-vinda neste mundo
refugio-me no umbigo da laranja que pousa
para a luz residual
dragões de fogo bailam silenciosos
despertando subtilmente a dor – parte dum corpo
a partir – dor que se arrasta dormente na carne
ainda viva
o silêncio que a doa é ruído
e o ser a roer-se por dentro chega a temer o pior
desejando incrédulo o esvaziado sentir
da dor – parte dum corpo a partir

FILHOS DA AVE TRAÍDA

não me lembro mas é como se me lembrasse
um enorme chorão é o marco do subterfúgio lilás
sento-me na escadaria e estalo os ossos dos dedos
estabelecendo uma ordem de pequenos progressos
a anotar ao longo da insónia numa pauta desenhada
no peito suado – a maresia lunar anima soluços
de terra e há um volver astuto que resvala em toda
a armação orgânica – ninguém cala a cálida brisa
que ostenta a crise absurda das moléculas
a sombra áspera é território a perder de vista
onde se travam as mais ridículas batalhas
como artifício de decoro a coroar o corpo
nascido da furna humidamente quente

não me lembro mas é como se me lembrasse
junto a mim a segurança soturna de goivos
encurralados na jarra de vidro baço
os dias amassados no tabuleiro para fabrico de pão
que provoca a amnésia parcial garantindo
a sobrevivência num calculado mundo insalubre
¿terão frio as estátuas erguidas pelos filhos
da ave traída que mastigam a neve e o gelo
quando têm sede? – nenhuma sede é saciada
ter-se sede de vida é ter-se sede de morte – e sempre
que a fome ataca rasgam a carne uns aos outros
carne de cor roubada a uma outra carne
¿de que nos queixamos afinal?

palmilhando a estrada do silêncio
a voz sobrevive atravessando a nebulosa – ouve-se
um oco eco
o comedido fonema – neste mundo
tudo causa gangrena e há quem dê por dar
o poema

BOCA DE ONTEM
e no princípio era o nada que ainda hoje é
de tanto dividir o dia chego a ver mutilado o sonho
sorvo a luz do estranho astro que povoa sonâmbulo
o espaço que por não ser meu pertence-me
e as pegadas lembram-me coalhos de lágrimas
soros aflitos sobre as palavras precipitadas

espelho:
olhos olham o olhar de outros olhos
eu feito tu sou eu sem o ser

os ossos rasgam a seda dos dias
e
a boca de ontem exala um olor a morte
LE DERNIER TRAIN
Jacques Prévert

il pleut
le sang pleure
le plasma diminue
¿qui nous regarde?
les étrangers de la nuit roulent
la règle est simple:
ne jamais se rendre à l’espace pétrifiant
à la gare mes amis
à la gare
on mange les ossements des autres
on ferme les yeux en parlant
la folie est morte à la maison
les enfants sont pâles
ils ne connaissent pas la vraie chanson de ce monde
ni le mot fatal
à la gare mes amis
à la gare
on part à la recherche du foie noirci de la lune
elles ne me disent rien
ces fleurs découvertes à la lumière étranglée
elles ne me disent rien
ces feuilles sèches de l’arbre brûlé
ils ne me disent rien
ces appendices démasqués des multiples insectes
morts par le nectar d’or
on n’aperçoit aucun vêtement de la mort
qui danse autour de nous
mais tout est dit:
il n’y a rien à dire

l´eau mortelle sur ce plastique ridicule
¿où être pour réussir à attraper l’étoile obscure?
l’illusion à connaître sans effort
le délicieux pain corrompu par syllabes
de l’heureuse marionnette dansante
à la gare mes amis
à la gare
¿ne faut-il pas nous sauver?

les fluides d’un cristal fragile qui souffre
dans toute la constellation
descendent en à notre rêve
le plus grand rêve
écho de la vie derrière des conflits fugaces
qui troublent la dernière phrase
avant la décadence organique du corps

la soirée jaunie ressuscitera le père de la folie
à l'égard du séjour que brille euphémiquement
les images brûlent en passant
des peaux ressemblent à l´argile frétillante
desséchée sur le métal malade
à la gare mes amis
à la gare
protégez vos têtes

voici le poison atrocement inéluctable
l’image définitivement déflorée
avec la poussière de chaque jour seul
sur la nuit nue métalliquement ouverte

en pleurant la ville s’asphyxie
l’aigre air ressemble à l’antique refoulement
fermé dans le crâne solide par l’orgueil
¿qu’est-ce qu’on fait ici?
à la gare mes amis
à la gare
allons-y allons-y

A CIDADE DO ÓDIO

tubarão entre tubarões no útero da mãe
irmão entre irmãos
o canibalismo uterino é a prova
o vencedor mergulhará para fora
e tudo se desenrola sem ódio explícito
o ódio jamais habitou o útero
habita a cidade
autêntico baile de gadanhas
o turbilhão em cada um e na multidão
ninguém sai ileso deste chão estrepitoso
cá fora perde-se o que veio de dentro
outrora imaculado
o silêncio da legítima ignorância
uma outra morte mas que nada decepa

pouco se sabe sobre o que realmente nos magoa

“A process in the eye forwarns
The bones of blindness; and the womb
Drives in a death as life leaks out.”
Dylan Thomas


a árvore falou com suas raízes de cheiro
e no ano seguinte secou – eu sou onde estou
nada a antever por agora
um vento novo vagueia
de hora em hora
as mãos enterram-se no cabelo macio
adormecem calejadas resguardadas
do frio
a noite é longa – viajo deitado perpassando
o paralelepípedo enevoado – não durmo
a noite é labareda de gelo
ardo acumulando no interior o vurmo

a água morta cinge o peixe morto
por linhas direitas o desígnio torto


1 DE NOVEMBRO

ergue-se uma nova multidão no cemitério amplo
a terra cheia de rostos – que rosto limpo paira sobre
as cabeças dos vivos? – não passa dum choro
a mais pequena flor orvalha sem o sorriso
dos que já viveram – o gelo atacou – outrora houve
um coração arrancado a ferros da fornalha
não era um coração era um búzio de carne
que quando soprado entoava a música
do fraco ouro que a geração dos assassinos
perpetuou – os mortos ainda gritam
os sinos pararam de tocar – quem está vivo
é já morto se não ouvir o seu próprio coração

a terra sabe a amargura de corpos que deixaram
de respirar – a terra é sangue – as flores nascem
as árvores irrompem do solo crescem engrossam
pela força da terra que digere os corpos
¿quando descerá a palma dourada que concentra
toda a energia que outrora animou esses corpos
agora húmus?

à luz da lua fluorescente o cálice de prata
colocado no centro da mesa do jardim
arrecada gotas de chuva para que na nova manhã
dissolvam as lágrimas esféricas solidificadas
de espanto nos rostos cadavéricos
e eis que nasce o dia em que se celebram os mortos
o sol desponta imponente – abre-se a janela
para se ver a montanha a arfar com nova cor

hoje não se bebe o orvalho de todos os dias
hoje e só hoje bebe-se o cálice de lágrimas

ORQUESTRA SEM MAESTRO

os tambores apelam à secura flagrante do crepúsculo
a cítara hipnotiza renunciando ao verso que cheira
a terra molhada
guitarras eléctricas galgam a montanha
e a descer violinos choram irritando a pele
a harmónica hostiliza o espaço pisado cautelosamente
saxofones esfaqueiam na escuridão – cegos
vingam-se robustos
o metal refina o sangue extorquindo a ferrugem
acumulada na jornada – os gemidos são dissimulados
pelo contrabaixo de voz grave e paternal

por fim o descanso
o piano ensina a ordem de todas as coisas
e depois o isolamento parcial para auscultar
a música do corpo desapegado da fala

LÁGRIMAS DE SANGUE

transfiguro o rosto com lágrimas de sal tatuadas
na mão aperto com força o gargalo de vidro baço
um queixo de luz esvai-se acima
dum outro rosto reflectido
com lágrimas de sangue vivo a escorrer
pelas faces abaixo

suculentas borboletas planam no espaço livre
do sótão
ao canto um baú de castanho por abrir
desmaiado sob o olhar da roda secular
saio fechando a porta e sei que as borboletas
se despenharão inanimadas
transformando todo o espaço num cemitério
de pedaços de cartolina recortados
em forma de borboleta
e minúsculas peças de madeira

há uma continuidade entre o corpo animado de vida
e o vácuo doentio que nos transcende
tudo se reduz a um sopro limpo
uma aragem filosofal que transforma em vida
tudo o que toca

da realidade frugal uma outra realidade abscôndita
o caos recomeça no ponto cardeal minúsculo
da afinidade conjugal de todos os corpos
adormecidos na paisagem interior do sonho
tornado carne focada de modo abstraído

o diafragma invisível trabalha
rodeado por músculos que formam o pericarpo
dum fruto que incha fuliginoso

a luz gera-se no interior
e é conduzida por um canal estreito
até ao ostíolo – porta selectiva – de lábios
morbidamente encarnados quando fechados
mas que abrem diáfanos
deixando transparecer o sangue vivo em apoteose
quando algo emerge da paisagem externa
e navega subtilmente através do fruto
transformando-se em nova paisagem interior
outra luz

a terra dissipa o vapor enamorado
pela força dos astros montanhosos
a música das esferas anima esculturas vulcânicas
e a orquídea respira com dificuldade
tem sucessivos ataques de asma
perante plantas demoníacas e ervas guerreiras
que banidas do reino floral colorido
respiram arquejantes e dominadoras

as pétalas do lado negro
vivem manchadas pelo orvalho contrafeito
as pétalas do lado imaculado
vivem manchadas por lágrimas de sangue vivo
que escorrem lentamente para a terra
habitando-a definitivamente

o hálito da terra é acre
assim como o paladar do sangue na boca
que pulsa ainda vivo pelo remorso

“Estalaram os botões dos salgueiros.
Um bafo húmido-lilás turba e perturba.
A primavera toca mais fundo na loucura, revolve
os vivos e os mortos.
– Todos deitam flor.”
Herberto Helder
não adianta renunciar à dádiva comum
dos anos alinhados pelo espaço húmido
que nos dilacera – boca do mundo – a nascente
de saliva
caldeia as enigmáticas esculturas aprisionadas

¿será o jardim a súmula da fantasia empoeirada?
o contrapeso das jornadas manchadas de sangue
e suor?

visão alucinante quando se espreita a primavera
estação na qual plantas desossadas florescem
rendidas ao bailado dos insectos que zoam em coro
e o jardim
é ele próprio um oceano
as ondas foram substituídas por corolas
que abrem sincronizadas durante o dia

uma tarde sob uma outra
os olhos comprometem a terra
cintilam tremores nas pétalas das açucenas
as peónias abafam a papoula solitária
mas eis que a hera rasteja cautelosamente
serpente vegetal enrolando-se nas peónias
sacudindo-as até cuspirem as ninfas envergonhadas
para o chão que se mancha dum pó dourado

nesta tarde as lágrimas têm cheiro
Apolo chora ainda
chora desprezando o atento girassol
que cresce opulento no solo empanturrado
de melancólicos desgostos e sussurra repetidamente
o nome duma ninfa da água
Apolo chora com um jacinto cor de sangue
a roçar-se-lhe no peito – as dedaleiras
dançam sarcásticas e acusam Zéfiro
uivando com suas inúmeras bocas

todas as flores têm tatuadas nas suas pétalas
um rosto divino ou humano
e cada uma tem o seu sangue em que o plasma
é composto pelas lágrimas derramadas de quem ficou
e viu partir quem amava

tudo é construído pela dor escorregadia
(o navio de cristal cavalga na alucinação
breve emaranhado de sombras indescritíveis)
denunciar o rebento que a todo o instante se altera
torna-se manobra da paixão quebradiça
a falecer nesta enseada doentia
e que
ao apagar-se na sombra da mulher que vestiu
as pétalas das flores murchas
o navio de cristal esquecido entre a relva embacia
esse mesmo navio que limpo
amplia a flor que repousa no chão
flor cruelmente decepada que ainda
não partiu deste mundo

quando o dia se reduz ao crepúsculo
o sol não é mais do que uma ciranda de brasa
que anuncia o fim de tudo

ENIGMA

saia o último clarão do vidro fusco para que vingue
a tarântula sensual morta no ventre da página
os cômoros são falsos assim como o olhar húmido
do estrangeiro em nossa casa de fluídos e cartilagens
de parte em parte a dívida pelo comum
não há palavra com o equânime valor do gesto
mas a semântica dos afectos não acorda os mortos
um mastro de cristal condena os espectros
ondulam anjos de sal na intempérie pardacenta

adoeço à chuva procurando o lírio
que outrora cresceu com o meu choro sofrido
entro no portal de vapor e de súbito
a opção como ameaça: o texto ou o fruto
o fruto do texto ou o texto do fruto
e depois o enigma: as sílabas dos frutos eleitos
cruzadas ao acaso – escapam fantasmas
pelos meatos – ainda não eclodiu o cisne das nuvens

concluída a criogénese gigantescas crianças de gelo
apressam-se pelo corredor armadilhado: géiseres
vulcões em erupção
chuva ininterrupta de bólides pungentes

o corredor é estreito como lâmina do presente
com inúmeras portas de mármore róseo trancadas
escondidos nas esquinas de marfim
os esqueletos de animais extintos
surpreendem as crianças e elas gritam e esquivam-se
à luz dos olhos de quartzo das estátuas plúmbeas
encostadas às paredes do corredor que humedecem
com o sangue das crianças
e estas derretem progressivamente diminuindo
de tamanho até se evaporarem por completo

outras crianças abrem seus gélidos pulmões
à aragem de morte devolvida por sucção
da outra margem – negro e trémulo círculo
ao fundo do corredor

IMPÉRIO DE CAL

estás sentado – lês – uma tulipa nasce-te
entre os dedos do pé esquerdo
magoada acende-se roxa para ti
continuas a ler para não confessares ter visto
ergues o império de cal no cérebro desprezando-a
e a tulipa explode

sabes-te culpado
soltas uma pequena gargalhada cruel
que engoles ávido sem transparecer
qualquer sentimento de culpa
ninguém te olha mas é como se estivesses
entre a multidão que te julga a cada suspiro
não lhe tocaste nem tão pouco a viste
sentiste-a entre os dedos do pé esquerdo

agora
entras na cave dos excessos onde escondes
o que mais de visível apresentas na tua conduta
experimentas um silêncio corrosivo
e tal silêncio é dor morrente

sentes fome
e só te lembras dum pólen que não provaste
tentas adivinhar-lhe o sabor
mas nenhuma boca adivinha o paladar do sémen
duma flor

nessa tua cave tens um frasco onde em menino
colocavas as corolas arrancadas às flores
com inocência eversiva
mas como foste gastando o que angariaste
nesses teus verdes anos
o frasco encontra-se agora vazio

já não regas os teus dias
com o pólen da tolerância unânime
e vives amedrontado
rodeado por paredes de vidro

SONOLÊNCIA
“Não somos nós quem dorme
não somos nós quem morre
quando as pálpebras pesam
é o sono que morre
é a morte que dorme
quando dormimos nela”
Gastão Cruz

o alvoroço infernal governa a planície do medo
e seus herdeiros não degeneram
cumprem o ciclo
cada um por si neste jardim de espelhos
corroídos pelo ácido solto
entre breves olhares disparados
em ofensiva
bípedes esbracejam ritualmente
neste salão pavimentado de azulejos negros
em que a medida do vazio
é a medida do frio
enquanto decalque sobre o nada
os bípedes dançam
orbitam aturdidos em elipse
o que os segura é o medo
esse líquido que corre nas artérias da ignorância
a viagem
a derradeira viagem inesperada rasga a noite
descansar é substituir angústias
conquistar velhos castelos em ruínas
abandonados na infância
o fôlego é maior na solidão
a moldura gira em torno
das mãos
e verte-se o líquido azul
sobre a pele – essa manta gelatinosa
que se veste à justa – sussurrando
a última palavra da frase ossificada
à beira dos lábios

¿que afecto o sono
prende?

fungos guerreiros do sono assemelham-se
a constelações
e o escárnio cru de seres irreconhecíveis
compõe a partitura que acompanha
o desmoronamento do corpo
até restar apenas lodo que lento se move
e respira dissonante
sob a égide das quatro paredes
do quarto escuro trancado

abrindo as mãos
o corpo entorpece
como paga do que se apaga
nos olhos cansados
e depois um leve sopro coincide
com a brusca
queda
do tampo

¿que confissão o sono
prende?

TERRA A TERRA

as mãos nuas carregam o trigo dourado
e o rosto não é acaso
é essência figurada – ardem as vestes
mas a feição é implacável e crua

o coração soluça na terra
vivo sol a sol sobre a cinza
respiro e morro em cada suspiro
as mãos ardem por dentro
mesmo antes de serem mergulhadas no fogo

olho a terra sinto o sangue
sorvo o elixir de tão invisível condição
soletro a palavra «terra»
T-E-R-R-A
Temendo Esconjuros Ressuscito Raízes Antigas

grato labor nos dá o labirinto
a colheita negra é nosso orgulho
deste chão ergueremos nossa face

uma voz sussurra:
«recebe o cordeiro de ouro em tua casa
cinge-o com a luz da lamparina acesa
e quando sentires que é carne à tua imagem
carrega-o nos braços até ao altar»

um muro branco se adivinha
ao se medir metro a metro a estampa
do que se vive pisando
e quando às mãos descem o pão o vinho
mastiga-se solenemente a renúncia à seara à vinha

meço com as mãos os frutos do sol
caio
a queda em flor
do que digo sobra-me a tesoura
os dedos circundam o umbigo
é o tempo é a hora
terno é o mando embora ilusório
PERIGOS GEOMÉTRICOS
OBRA
...............quadrado...dado...quadro
...............u....................................s
...............e....................................t
...............b....................................e
...............r....................................n
...............a....................................s
...............n....................................i
...............t....................................v
...............obra...exposta...a....cobro
PAIXÃO
...............o.....c..o..r..a..ç..ão....e..m.....a..p..e..r..t..o
.................d.........................................................i
....................a...................................................c
.......................r..............................................r
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...........................ombreia.a.asfixia..a..dois

CASA
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MEDO
...............................o
.........................m........d
...................e.....................e
.............d................................z

.........o......n......d.......u.......l.......a

CICATRIZ
.........................não .se .ouve .o .coração
......................a.......................................n
..................d.............................................d
...............a....................................................e
.................v...............................................d
....................e..........................................i
......................restos: ..legítima..cicatriz

ÁRVORE DOS SOLUÇOS
“If the lost word is lost, if the spent word is spent
If the unheard, unspoken
Word is unspoken, unheard;
Still is the unspoken word, the Word unheard,
The Word without a word, the Word within
The world and for the world;
And the light shone in darkness and
Against the Word the unstilled world still whirled
About the centre of the silent Word.”

T. S. Eliot

“olha em redor dos bosques as veredas destruídas
pela explosão devastadora das minas e ouve
as vozes límpidas morrerem no poema”

Al Berto

eu vi o terror
entranhado nos olhos que matam
silenciosamente
vi a carpa gigante cortar o muco
às postas
calculei por palavras
réplicas da cidade destruída
vi corvos em reunião
com etiquetas suicidas
nas garras

abriu-se uma fenda
no paraíso de betão
os culpados serão punidos
cada um a seu tempo

cabras com cornos de aço
perseguem agora o desertor
que executou as tarefas macabras
– a cidade dizimada

a eira ao abandono
regresso despedindo-me de tudo
quanto foi alegria lilás
as velhas portas apodrecem
como eu apodreço
a cada rotação da terra
foi-se tudo
o tempo róseo dum eixo
que hoje é cicatriz no queixo

carrego a carapaça de calcário
deste tempo
bebo desconfiado o delírio fecundo da noite
enquanto ouço o ziguezague oriental do zinco

dou por mim às avessas
os órgãos expostos
espio-me a mim próprio
¿brilhará a nobreza
do belíssimo fruto cínico
acariciado pelas egoístas mãos?
ou será o brilho a desonra
a fugacidade rediviva que cega
esbranquiçando os olhos polidos
a cada imagem que passa rente
com sua acidez?

abro uma laranja rasgando com as unhas
a pele grossa
leio o texto humedecendo os lábios
com o sumo dos seus gomos violados
gostaria de sentir o mais pequeno remorso
ao beber o sangue deste fruto
ao ler os seus versos

secam as fontes
a alcateia à espreita
bocas tão bocas
os sons da garganta estragam palatos
morrem animais

eis que chegam os narizes de sangue azul
– as grades sujas de esterco
e sangue amarelado

¿quando vingar a cor do dia?

a rua
nua
a noite
noutra rua
o dia

se um som
se um mesmo som ouvisse
sem a voracidade mental
se fosse quem fosse a própria pessoa
escorregando no som
e se nesse mesmo som
eu ouvisse a ouvir-me fingindo silêncio
repetindo o som com os lábios feridos
a língua exausta
os dentes a corroerem-se progressivamente
se nesse mesmo som eu me ouvisse tanto
que me deixasse de ouvir
poderia gritar
– rasgando o véu desse limpo som –
a fórmula do novo silêncio

ao descer descalço a montanha
a alma do alcatrão surgiu-me disparando
seu olhar como bala obstinada
e outras também o fizeram no mesmo segundo

após o tiroteio negro
desenhei a face escavada do estranho eleito
entre muitos que agora habitam o corpo
e senti o corpo a seu corpo
outro corpo apartado do corpo legítimo
mas dentro – nada nem ninguém
se apodera do sangue

extraio o ácido da árvore dos soluços
na camisa uma nódoa de sangue fermenta
como dístico na amputação do sonho
antigos demónios tatuados no peito
são o único testemunho da catástrofe do inverno
relembrado com o incenso das manhãs de nevoeiro
sorvo a luz
a cabeça húmida de suor e perdido o bulício
encolho-me: esqueci-me dum nome
que me beijou junto à cama
esqueci-me das três sílabas
o nome da mulher vestida de lua

cito a perícia da plebe gemebunda sito no mundo
[as mãos cosem as tiras de carne uma a uma]
cito a frase que os pulmões golfam
a ventania oblíqua encolhe-me a cada momento
dedilho os ossos fictícios que arqueiam
debruço-me cansado sobre a terra frágil
que à meia-noite se alimenta de folhas de videira
e galhos secos que estalam como dedos nervosos

a pele queimada
o sol raia louco empobrecendo a luta
– não se vê a armação de metal –
o prazer é ilegítimo
o cardume silencia a lagoa
a rosa murcha no berço do vácuo
e num milímetro visual
olhando em frente
um abismo de decalque
sobre o esvoaçar de andorinhas
tíbio disparo sanguíneo

a trágica açucena ergue-se entre as patas
do quadrúpede unicórnio
[a enxada assina o declínio da abóbada cinábria]
e espreitando pela janela armadilhada
meço a força da água no horizonte
– esquecida a terra do elo semântico
as vicissitudes dum outro tempo
tornam-se estranhas à razão

um novo arco de cal e a epiderme retrai
parcimoniosamente
as linhas ósseas intersectam-se em movimento

– assim vivo com os lábios negros de beijar à pressa

A REGIÃO DO FANTASMA

TRÊS DEDOS

a orla engessada
os pés criam musgo
na meia o brinquedo
a lua atinge o medo
SENHOR
quero três dedos a apontar a vitrine
mora lá a minha voz de criança
a retinir o passado
que as geladas mãos adultas amarrotam
FREAK
gaguejo sagrando sob influência solar
oriento as mãos para o gesto luciferino
KILL THE ROSE
eis que venho denunciar a rosa
queimando saliva
a memória em tornado
a genética dita a cadência dos enigmas
ADN
não quero acordar o peixe de fogo
que há muito habita o arco-íris do ódio


OFERENDA

treze virgens menstruadas
festejam com as luas
poças de sangue
rolas desordeiras
suam na opaca noite
ÁMEN
eis a vítima do ópio sagrado
mulher trasladada para o sepulcro
CAMA
as pernas estremecem
as coxas apertadas esfregam o sexo
os corpos olham-se
o corpo sobre o corpo
corpos
untos derretidos
FUSÃO
guelras para respirar entre lençóis
as orelhas mordidas por impulso carnívoro
ALVOROÇO
os ouvidos morrem
os corpos apagam-se com gemidos
ORGASMO


INVENTÁRIO PARA...

UNHA
negra
OSSO
branco
ISCO
infalível
bando de abutres calculistas
herança de fundamentalistas
da terra à água
da boca ao ânus
estrume nos lábios podres
janela de hálito ogro
pesado mistério tão sério
como a gaivota comendo alcatrão
iluminação precoce do abléfara
eis a lição
do
PARA

TROVA DE ATRIÇÃO

AI DE MIM
disse
ou brinco
com os teus cabelos
queimaste-me
e eu rasguei-te a saia
a noite não te come
quando assim estás vestida
AI DE MIM
disseste
ou evaporas
sem deixares qualquer rasto
não passas dum espectro
então
não te escuto
escreve a tua presença no espelho
com os dedos suados
eu espero
AI DE NÓS
disse
ou disseste tu?


EXPIAÇÃO

a cavalo cintilo ausente
saqueio fermento às musas
CULPADO
falo por sílabas de luz suja
a mão direita bate duas vezes
no peito
ABSOLVIDO
mantenho a pose surda
uma onda de sangue
resvala sobre o cérebro
digo o que está dito
quando muito não dizer
é imunizar a palavra
dizendo-a em silêncio absoluto
sem abrir a boca
SINAL DA CRUZ
perdoai querubins
a indecisão do ser menor


VAU

eis a incumbência basilar
dum luto planeado
ONDE ESTÁ O CADÁVER?
anteontem a terra
sorveu-o desabrida
esguichando
sua linfa venenosa
instituído o sobral pontiagudo
o verso estaca
e a charrua indaga díspar
QUEM MORREU?
cadáver anónimo
a constar nos autos
cadáver anónimo deambulando
entre pesadelos húmidos
QUEM ÉS TU?
surdo
caminha na passadeira de sangue
até ao interruptor
OFF


VÍRUS

demarco a tatuagem
interstício da linha agridoce
as línguas em euforia
AGORA
um olho de vidro
a doença
MAIS LOGO
o silvo de bronze a morrer
na garganta do irmão terráqueo
AMANHÃ
a cura descrita num papel amarrotado
receita milagrosa ilegível
os destroços mutilam a consciência
JAMAIS
assistiremos à cabal destruição do vírus
a palavra o gesto a paisagem o homem
tantos vírus ou apenas um
nenhum
[é este o vírus]

CHÁ DE CINZAS

sobre o que sob o néon
sobreveio no escaldante serão
lamento o rodapé da charada
vinho a escorrer nas paredes caiadas
palma contra palma
PALMAS
o avejão baila na rua
com a cabeça na mão
baila bêbado
nem sequer sabe que não existe
[existe portanto]
agora grita assobia geme
STOP
a cicatriz em sangue
num lado da boca
as malvas guardadas
no outro lado da boca
o calor a brasa a chama
convido-vos a beber
o meu chá de cinzas
SILÊNCIO

ENTRELINHAS

(!)

verde
de cair
a boca

(...)

outra
margem

(...)

o leão
indisposto
como tapete
dormente

(...)

a sirene
soa


(...)

os lençóis
no chão

(...)

tarde
o arrepio
a tempo

(...)

a tábua
resinosa
intoxica

(...)

o suor
[água
com sal
mordente]
o licor
sufragado
do corpo

(...)

o cérebro
alcooliza
o humor

(...)

o corpo
sonâmbulo
pisa
a passadeira
de flores
secas

(...)

a esquina
reluz
[ainda é
tempo]
a fome
aperta
os espelhos
movem-se
na sala

(...)

o vício
da ferrugem

(...)

dor nos
membros

(...)

a poesia
(le)prosa
ensombra
o quarto

(...)

o cadeado
esquecido
entre dobras
de papel
a chave
desenhada
no crânio

(...)

elo iludido
sem os
cem vocábulos
do fuzilamento

(...)

dança
a vespa
entre
as capas

(...)

jejuando
o ser
suicida-se
a mastigar

(...)

a floresta
dos sais
negros

(...)

a sirene
soa
novamente

(...)

o vento
maligno

(...)

as bocas
denunciam
tudo

(...)

a valsa
de fogo

(...)

tudo escurece
ao contacto
(...)

a floresta
dos sais
negros
único refúgio

(...)

não tarda
o coração
enegrecer
por completo

(?)

CUBICULUM

“Silos de prosélitos como fruta podre
que eu avisto da minha colina rachada pelo meio.
Desço, plano e pico
voraz,
é o meu farrapo de carne narrativa...”

Paulo da Costa Domingos


“Às vezes, entranhando-me num espelho, consigo dar
nele duas ou três braçadas sucessivas.”

Luís Miguel Nava

persigo a alta onda serpenteada
finto as lâminas recordando Ícaro
enveredo pela espuma decantada
percorrendo toda a casa onde pícaro
objecto procuro enquanto isento
lutando contra paredes que invento

um sismo no corpo, fluido mosaico
esperando que um rosto boquiaberto
saia como vareja vil do estio arcaico
planando a flora do coração em aperto;
o corpo arde por dentro e treme por fora
espera o sopro criador cavalgando na hora

incrédulo peço morosamente a mão
a mão povoada por líquenes cinzentos
que sombrios desafiam o cogumelo são
cujo talo é pétreo pelo som dos ventos
mas oco e frígido e de sangue vazio
escondendo bem fundo o nó bravio

a mão pousada convida os insectos
o desleixo é seu eixo, doce morrer à sede
enquanto a água oculta ditongos secretos
o monstro torna-se escravo; e o sol? vede
como desperta a cor da inaugural mistura
de sonhos e límpido sangue que perdura

impunemente a cortesia para a inimizade
porque no lacre tudo provoca a erosão
e eu peço a pegajosa demora na assiduidade
o refluxo hábil entre o estômago e o coração
para que as imagens elegidas pelo tacto doentio
aflorem selectivamente nos sonhos à beira do rio

embraveço mirando o pescoço cuidado
temendo os cactos letais da face ingrata
foi porque falaste, ó tu com ar de danado
que vestes o luto e enrolas a luz na gravata
ó tu que és sola da noite e tampo do sol
não cantarás inocente no meu secreto atol

onde vislumbrar a estrela cinzelada
nesga de luz a caiar ou morder vocal?
onde achar o filho pródigo da alvorada
quando a memória inspira cuidado tal
que a álea entre o passado e o presente
torna-se casa incendiada pelo poente

os famigerados cadeados riem-se calados
o que sobra? réstia de sangue como lágrima
de monstro marinho para sonhos estereotipados
e o lado sangra o tu real, a cova após a esgrima
o tampo abeira-se em alucinações como simulacro
efígie sublimada sob a língua crua e o paladar acro

palatos confundidos com úmeros, o sono da criança
apressada para o célebre abismo célere e a corrente
enfreia a ânsia atrevida na sintomática esperança;
nascer aleijão com gomos capciosos, dócil doente
é ser laranja azeda num pomar ominado mas vivo
ou vã elite causticando num cerco familiar estivo

terreando sabendo do nó brusco que padece ao frio
longe do ventre tem o vento o ar a água morta
terreando sem que a maré suba com sábio estrio
sem que a longa palma pronuncie a sentença absorta
de modo subtil mas com a força bárbara permitida
exalando um olor lauto no hexágono cerrado da vida

jorra a fonte e eu, só, em plácida noite refugiado
guardo minúsculas pedras frias para um colar
algo para alguém ressuscitar ao manejar o cajado
alguém ausente, perdido no meu corpo a chorar;
o abrigo é único regozijo fiel à traição viável
e nesse antro, o nada sentido é o tudo inefável

trauteio a culpa na viela arrojada em pleno olhar
minha fracção vítrea resplandece inquieta e voraz
húmida sobre a imagem, atenta no insólito vibrar;
a luz sob inflexões aquosas e depois o soar mor traz
sílabas cheias intactas por desbravar e enaltecer
até ao clarão negro até ao branco atónito até morrer

entre rostos a distância do enigma em pensamento
a corola ausente e um punhado de pólen surripiado
galhos em vez de dedos e uma fogueira arde, o vento
ousa desvirginar os negros cabelos da mulher ao lado
o paul escuro seca perante as montanhas do alvor
até cobiçar a água dos vis olhos improfícuos da dor

a brasa acesa do infortúnio, intermitente, o sono
ambígua vontade sobre o côncavo lacre inseminado
longa vai a tarde nesta praia de areia sem patrono
onde recito a exígua culpa soletrando-a queimado
os lábios a arder e a estrela comovendo-se solidária
– o probo queimor torna cativa a condecorada área

ardor no cubículo amestrado em tempo de guerra
sei do campo de flores regado pelo fluxo enjeitado
traduzo-o em movimento lendo a boca de terra
protegida por árvores guerreiras cumprindo o voto;
por não caber na forma do outro que sempre analiso
não confio no nome escrito na doce neve que piso

o nome sujo por simpatia esbelta, erro do costume
platinar o medo amolecendo a ardósia do pericárdio
para ter sede no vale irrigado pelo osmótico lume
da paixão de dois gumes aquando o beijo precário
e o nicho ofegante da enigmática sombra bendita
não supera o vulto sublime que sofrendo crepita

uma concisa nota menor no dorso e escuto
o imaculado ditongo onde a obnóxia lava
assume a contrapartida inibitória do arguto
manancial de retrocessos nos quais a clava
perpassa domínios intrínsecos à abjecta falácia
minguada no sorver aleivoso, na dual eficácia

deteriorando o difuso tapete, o chão já sublimado
a súplica racha quando se dá a desova de lampreias
e a mórbida elipse da denúncia aceite como achado
arrecada o livre suco desamparado de efémeras veias;
o semblante serena com o exotismo megalomaníaco
enquanto se limpa parte do cinismo hipocondríaco

meditabundo na dor, envolto na cíclica nuvem
claustro perene intacto e nem sequer uma fracção
de incenso ardida remando contra o que se tem
proferindo à terra o monólogo da reivindicação
– rei sendo escravo de si próprio quando chora
homem de não saber a palavra que só ancora

um naco da árvore, sóbria dissolução da azáfama
ravina escarpada, serosa do eminente arquitrave
e largando de antemão as redes na água da chama
uno as mãos imbuídas de nácar trazido por uma ave
permitindo o silencioso denegrir da grafite herdada
e beijo, prudentemente, a extensa fronte inflamada

outra foz, labaredas no vazio sepulcral
cinzas confundem o autêntico paladar
nem prato nem talher, o axioma do mal
apenas um púlpito antecedendo o cessar
a reunião de elementos como certo mando
dum líder só, entre muitos de si, chamando

iões amargos na boca alugada, o de dentro brada
não se acende, a sumptuosa amada não se evapora
e eu, bicho entre bichos, aflito por ser espúrio nada
nego a própria negação e a locução é grito no agora:
a única realidade neste desperdício de terra e fantasia
o único pão que corta como espada ao olhar a fasquia

ouvi dizer que a fera soltou-se e não encontra o dono
derramado nos lençóis tento falecer de novo na noite
a fera espera no outro lado para atacar-me no sono
dançando sedutora ao som metálico do aéreo açoite
– o pautado corpo fulgura num assaz faiscar errático
longe da fera comum que abalroa o mundo prático

enfrento ansioso a lua manchada de urina celestial
sintonizo a maré nocturna, cometas como peixes
ajoelho-me e relembro a água salgada e a areia dual
arqueio-me abraçando o cadáver suspenso – os feixes
de energia no mínimo e a secura invade a garganta –
o negror ostenta a luz aspergida que dócil me levanta

rara, a erva verde na cal da boca e tu a um passo
não falo de amor, falo de corpos em combustão
das cartas amo mais as cinzas e o terno embaraço
ridículos são os néscios madrugadores da paixão;
prefiro a alvorada como temporário leito de morte
e a fusão de lágrimas como ouro matinal da corte

caindo na imensidão dos múltiplos ícones flagrantes
traio-me impaciente observando a compulsividade
dos elementos cúmplices na entropia, mui cintilantes
– convexos adversos desconexos – presos à afinidade
o vácuo como premissa da frenética criatura vassala
alfa e ómega no cerne do lume, ínfimo clarão da fala

ter o túmulo como cobertor, a vanglória de poder
cheirar os mortos, dádiva ao conhecê-los na esculca
após a viragem ou conversão química, puro morrer;
o beijo fica deixando-se ir, antro respiratório da culpa
dissolvida no rubro charco das tácitas diatomáceas
– tudo escrito na tábua, coeso turbilhão de hemáceas

necessito de chuva nestas palavras e o céu azul
nostalgia indigente, voz no vazio vácuo musical
era pressuposto entrar o coro – frenesim do paul –
acompanhado pela cavernosa guitarra do vitral;
os amantes suicidam-se e cai lento o áqueo pano
escusados são os berbicachos ao redor do engano

uivo à claridade duma fictícia lua ainda alucinada
não espero nada em troca de silvos desenxabidos
clamo e nada mais a morrer nos braços da enseada
agonizo perante o arder do enxofre de cabelos tidos
como fósforos a acender na fiel madrugada algente
– gaguejar perante a estátua falante é ser inclemente

prevejo a tertúlia cerebral e trincolejo sarcasticamente
medusas dançam à volta e largo as rédeas já cobras
espreito pelo orifício esgravatado quando só, doente
não arrecado estilhaços de saliva nem ásperas sobras
escondo-me aquando os bocejos, almofado os ossos
e faço parémias crivando punhados de terra de Cnossos

o cão e a pulga de O’Neill acordam-me, o orvalho pende
colchão frio: ardósia da noite de improvisações canhestras
arrepio-me por não saber os truques do desabrido duende
e atordoado pelo assobio da flecha enxoto moscas destras;
pecados geram o tumulto que forma o diamante a entrever
à janela da palavra-flor escrita no ventre luzidio da mulher

pressinto a gula subindo a escada até ao sótão dos gritos
rei sem reino num mundo limitado mas infinito colossal
os juízos enferrujados recordam o sangue insidioso de mitos
a loucura eremita de novecentos, a mestria a fugir do sal;
debruço-me e cheiro o pó até se tornar licor para o beber
estendo o sorriso e recito antiquados sonetos ao entardecer

vagueio com o purpúreo manto apaziguado pelo uno coalho
a poesia povoa a pele como escama despertando os répteis
danço asfixiado no antro cheirando o que morre no soalho;
durante o sono os avisos dos profetas servidos por azeméis
estremeço só de saber a errância maligna da vã carnificina
– talvez subestime o olor das noites com lua purpurina

ergo a taça sabendo que dela não beberei e lamento
o valor das balas fundidas, sangue metálico, ardor
de vítimas por todo o mundo a curar num tempo
purpúreo tempo das imaculadas feridas sem dor;
receando a ruína da alçada repito as palavras ardidas
crendo na sombra omnipresente de peles sofridas

em surdina devolvo o arrebatado divagar
a lembrança como precoce estímulo tardio
mães choram no cais com derradeiro vagar
e os gestos do poeta no crepúsculo sombrio
salgam as lágrimas da rota com flores estiadas
– álgido é o leito amargurado de glosas recitadas

vou deixar gerânios sobre a mesa, depor a casta mão
que afaga estes versos banidos do solo, estes versos
manchados de fúria desavinda tão real como a canção
que chega aos ouvidos de alguém a errar nos reversos
da nervura folicular colhida a frio no átrio da alegoria
vigiado pelo guardião que vive a noite temendo o dia