segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

LÁGRIMAS UMBILICAIS

[Rui Rodrigues]

dentro de momentos virá a boa sirene inquietar os corações das pequenas criaturas. O ESPAÇO. os seios da SERENÍSSIMA MÃE pingam na bainha do tempo que o PAI DA FOME limita em louvor de OFÉLIA.

louca sirene, diz-me quem irá enxugar as lágrimas ao SOLUÇANTE FAROL das pequenas praias, esse menino uivante no raiar da escadaria; diz-me SENHORA MADRE UMBILICAL tantos filhos como gemidos e como magoa este torpor MADRE SOROR! venha o espaço num balbucio dissolver o que de nós sobejou, dor e mais dor a fervilhar em bica, ó MADRE DOLOR que me escutas: de nós sobejou o enigma, o umbigo a roçar a noção de lugar.
GÓLGOTA ardente ● GÓLGOTA morrente

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

SONETO DO OPERÁRIO VINDIMADOR



sombras chinesas ● vou beber

não importuno o cálice
– ele descansa na mesa
de pés moles

num dos muitos combros deixei esquecido
um cacho de uvas gordo

um copo de culpa ● vazio

porque vagueiam perdidas na parede
estas duas
máscaras de outono
livres de maleita no dúbio escuro
perdidas duas vagas sem sono?

à dupla passagem entre as sombras, minha sede
cairá a seringa no súbito despegar dos lábios

sombras chinesas ● vou rever vindimas

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

FEBRE TIPÓIDE



alguém anda enganado neste mundo
tipo eu ou um outro talvez não sei
sinto-me mal tipo vou-me embora
apanhem-me as sandálias e por favor
mergulhem as bolachas no leite fresco
e dêem-nas ao gatinho a miar desalmadamente
perdido da mãe tipo na extremidade do carril
agora percebo o brilho da madeira no livro
viajar tipo correr as páginas até à exaustão
e miar feito gato à espera das bolachas
com medo dos cães tipo polícias do futuro
alguém enganado? todos tipo humanidade inteira
agora compreendo céline e a sua inquietação
azedume tipo ácido sulfúrico aspergido
venham julgar-me neste estado debilitado
estou doente tipo quarenta e dois graus de febre

terça-feira, 18 de novembro de 2008

UM PÉ NO PAPEL






















[Painting, Francis Bacon, 1978]



sob a hora translúcida
no ar um dia
a flor revelará a animalidade do sonho
nos seus órgãos, na sua escabrosa essência
amedrontando o ser de espuma
a fugir da saliva

uma nuvem amarela nesta hora o ar intacto
ar que o pânico meridional enrijeceu
avesso aos brônquios duma manhã crepuscular
uma nuvem como longa-metragem ionizada

se um homem decide clarificar a sangria do sol
experimentando visões do grande incêndio
sabe à partida que deverá amar o escuro
e libertar-se nele incondicionalmente

«uma floresta resplandecente sobre o cinzeiro»

ao vê-la desdobra-se na ascensão rápida da ideia
músculo do sonho e corola da flor
também o fumo se criva pelo crepúsculo

um pé no papel ● a página pelos joelhos

designa «floresta» o que vê este homem
de vento os gestos e o porquê das mãos
experimenta o exílio gasoso da palavra
o pé soluça e verbaliza a vontade
o corpo cai e instrumentaliza o sonho

porque a palavra trará nova seiva
e essa seiva invadirá velhas raízes
porque essas raízes irrigarão outras vontades
que se acenderão no mesmo bolbo

ele veste o silêncio ● a flor abre-se no escuro

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

ENCANTATÓRIA DO OSSO

«buscar-te até ao osso»
: mentira
porque a carne

só a tua carne me alimenta
o osso é uma desculpa
e quando digo: «amar-te até ao osso»
é porque tenho redondel na garganta seca
farto de te procurar no falso espectro da carcaça

enlouquecem as gengivas enroscadas na tua carne
quero-te num beber triunfal
enunciar múltiplos afogamentos no sangue esplêndido
esquadrinhar anatomias
irritar sílabas do corpo nossos corpos
domesticar a boca na planície
o mais selvagem possível
convidar sonos e adormecer na sangria dócil
da natureza

mas também ouvir-te falar do osso filosofal que perfuma
a mais vermelha das muitas carnes
e aí sim
recupero sentidos da limpidez mineral do osso
e procuro-o como coisa última que levo para a cama
com os dentes já enxutos

da tua linfa

domingo, 26 de outubro de 2008

ELOGIO À TURBULÊNCIA


as horas serpentiformes pesam na herança do caruncho bebedor
flashes libidinosos a inflamarem o círculo que contráctil
demora a disseminação cancerígena de palpitações petrolíferas

[o sifão escondido na espinhenta areia]

amadurecem os sons no armário enxuto
ouro possível na frágil desidratação da memória
mal-empregado metal se no borrão encontrasse o seu cofre
assim o gatafunhar da vida
pois as alforrecas ainda se movimentam por estas bandas
espampanantes de bar em bar no imenso reduto
[o que quer que isso seja]
à procura dum acender perto da gota a trabalhar
como objectiva circunstancial
da vastidão


como é bem-vinda esta turbulência de estilos no armário
retorna o mar ao mistério da concepção
indubitavelmente azul em todos os seus tecidos
em todas as faces imprevisíveis da solitária gota

e nisto
..........................a fenda
.......................................................a fricção

e nisto
..........................a fractura
.......................................................a ondulação

tristes os peixes na penúria oxidativa
na vagabundagem programática do pensamento
porque não se conformam com a recente ordem de despejo
decretada por um sósia de neptuno
obcessivamente lunático
[entre as marés que o afligem]
determinado em aplicar a louca mas estrutural ideia
de povoar os oceanos
com cavacos

esta turbulência não dá azo à arquitectura ou explicação
fica-se pela gratuidade das escamas
um senso emergente da fúria pela vermelhidão dos aspectos
crendo amadurecer massas gravitacionais comunicantes
contra o castigo do vácuo mudo

[gestação: o grande silêncio]

uma carraça a explorar os nós
– feieza
que de minúscula
se torna bela


há um humor cáustico a revitalizar a vista
uma praga na vitrina giratória
doença decerto, não a escolhi
arrasta
comichão manifesta na irresponsabilidade dos braços
intróito comestível pela benevolência craniana
posse inconfessa de irreversível atrocidade

no olhar pequenino
enfim, há bondade
partilhar uma técnica na arte maior
que é beijar

e na periferia dos nós a carraça prossegue com a sua labuta
escarafuncha um equilíbrio que estremece um outro
não a escolhi, no entanto
sublima-se a vontade de renegar a sensibilidade
vontade de desatar os fios às cegas
cortá-los até, de flagrante
em última estância


um homem medita e é porca a sua insubordinação à tarde
com flagrante desordem copulada no espelho
calcorreia a espuma amarelecida do mar
sob a guarda do alcatraz, pobre druida

ele avista a pena na quadrangulação da duna
apanha-a e empunha-a como arma branca
[luz dada para o voo]
vê o mar como velho proxeneta que se masturba a seus pés
– hilariante isto de tão subcutâneo húmus: amolecer

o belo ramalhete de esporângios

cabisbaixo o homem olha para o chão com medo do satélite
é a alma desta turbulência sem preliminares
é o armário esquecido num qualquer canto do planeta
é-lhe reservada a podridão dos víveres
entrelaçados num som ainda não audível
e o mar à volta
a sua nostalgia longínqua
abjecta aos peixes negligenciados
também eles a braços com a pouca sorte

há sempre a promessa de se construir uma estufa
onde se modele o grito
para que caiba em qualquer faringe do ecossistema
[imenso reduto]
uma chave-mestra para o futuro

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O futuro de Xavier descendo «O Anel de Polícrates» de Machado de Assis

[Gustav Klimt]


lá conhece um rico.
bebia papel e mulheres... ideia romana de harém!
Xavier cortava o cristal de repouso
e com capricho esquisito teve fortuna
escreve
porque é só!
fala especulativo – explicação dele
quando há tempo,
um derramado discurso... poema
vertigens, às vezes.
acordou o povo com arte
ouro realmente impagável
benigno
"expôs-me os vasos,
doido",
apenas citando comparava,
redonda mesa
entretanto amava
"é um ser d'água"... esquecera-se
"sangue, miséria..." ele ainda sofria,
varria cousas,
borbotavam páginas admiráveis
vigília-mãos-cheias
[sementes como paixão]
árvore-mãe
fruto-pródigo
a imaginação e sol... moeda gasta.
come chocho, enfim
justamente, pois adeus
negócio a minutos
– dou-lhe passagem Xavier
interessantíssimo, é estéril
jantares de hipocondríaco...
chegado o chão teima,
luta, marcha!
cavaleiro Xavier...
pareceu-lhe ora, depois
sonhou:
montava triste o anel, mas governava.
anel-fortuna-engolido voltou!
quem contou?
carta:
cavalo estrambótico, experimentemos
o bucho que, ora
o caiporismo acabou!
cavaleiro Xavier, o peixe amigo
foi natural... seja!
ele resignou-se.
celebrava o grupo do pasmo cavalo!
"vida excelente" disse Polícrates
"um dia jurou-me a página e o sorriso honorário"
conto três minutos...
Xavier, enfim, leu que não é... exclamou: não!
vestígio sombrio
teatro-coração
comédia de irmão
o cavalo que espiava o anel, o último, cai doente.
infeliz olhar do Xavier cavaleiro...
esvoaçou faiscando,
fugiu ali defunto

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

SONETO TÁCTIL


redonda e inacessível
a luz tantas vezes perigosa

um dedo sozinho a rodopiar espanto
navega indeciso na ambiência aquosa
ingénua e subtilmente carrega
o poder da interrupção:

dedo dado
dado dedo
engraçado
mete medo
desgraçado
dedo dado
dado dedo
apagado

[fotografia de Pedro Câmara]

sábado, 11 de outubro de 2008

NOITE IMOLADA

Paul Klee



as copas das árvores incendeiam escura
a lua – quer-se digno
quem entre poucos escreva o sangue
sem esquecer a essência da água
porque é difícil respirar debaixo dele
chega-se a bramir com um lobo morto
ao colo
porque eles estragam o choro
amontoando rasgados risos peçonhentos
frágeis irrompem nas vésperas do sonho
que se quer limpo
sobre a folha que trespassa
a madrugada
virão no último tracejado do halo lunar
para sujar a água
da boca à hemoglobina

não esqueçamos a tinta preta
com que se escreve a palavra «morte»
a entusiasmante vida do lobo cinzento
ainda a sangrar tinta no declive
ao colo
façamos homenagem aos seus caninos apagados
instante áureo acima dos que o desrespeitam
porque o ruído é a faca
sem gume visível
é um ardor de dentro por explorar
nas mais assombrosas vertentes
pelo contra-fogo possível da folha perfurante
sombra aureolar do icebergue indecifrável – a lua
escura afoga as inocentes copas das árvores

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O VERBO SER * André Breton

Eu conheço o desespero nas suas grandes linhas. O desespero não tem asas, não surge necessariamente ao levantar a mesa no terraço, pela tarde, à beira-mar. É o desespero e não o retorno de uma quantidade de pequenos feitos como sementes que ao cair da noite abandonam um sulco por outro. Não é a espuma sobre a pedra ou o copo a beber. É um barco crivado de neve, se desejais, como pássaros que se despenham e deles o sangue sem a mínima espessura. Eu conheço o desespero nas suas grandes linhas. Uma forma pequenina, delimitada por uma jóia de cabelo. É o desespero. Um colar de pérolas no qual não se saberia encontrar o fecho, nem mesmo o fio da existência, eis o desespero. O resto, não falamos. Ainda não acabámos de desesperar, se é que já começámos. Eu desespero na clarabóia até às quatro horas, eu desespero na ventarola até à meia-noite, desespero pelo cigarro dos condenados. Eu conheço o desespero nas suas grandes linhas. O desespero não tem coração, a mão sobrevive sempre ao desespero fora da respiração, a um desespero gélido que nunca nos confessará a sua morte. Eu vivo deste desespero que me encanta. Gosto desta mosca azul que voa no céu à hora do cantarolar das estrelas. Eu conheço nestas grandes linhas o desespero da longa saraivada de espanto, o desespero do orgulho, o desespero da cólera. Levanto-me cada dia como toda a gente e estiro os braços sobre o papel florido, não me lembro de nada e é sempre com o desespero que eu descubro as belas árvores desenraizadas da noite. O ar do quarto é bom como baquetas de tambor. Faz um tempo de tempos. Eu conheço o desespero nas suas grandes linhas. É como o vento do cortinado que me estica a vara. Tem ideia de um desespero semelhante! À fogueira! Ah! eles ainda hão-de vir... E os anúncios de jornal, reclamos luminosos ao longo do canal. Monte de areia, espécie de monte de areia! Nas suas grandes linhas o desespero não tem importância. É uma escravatura de árvores a tempo de fazerem uma floresta, uma escravatura de estrelas a tempo de fazerem um dia a menos, uma escravatura dos dias a menos a tempo de fazerem a minha vida.


LE VERBE ÊTRE

Je connais le désespoir dans ses grandes lignes. Le désespoir n'a pas d'ailes, il ne se tient pas nécessairement à une table desservie sur une terrasse, le soir, au bord de la mer. C'est le désespoir et ce n'est pas le retour d'une quantité de petits faits comme des graines qui quittent à la nuit tombante un sillon pour un autre. Ce n'est pas la mousse sur une pierre ou le verre à boire. C'est un bateau criblé de neige, si vous voulez, comme les oiseaux qui tombent et leur sang n'a pas la moindre épaisseur. Je connais le désespoir dans ses grandes lignes. Une forme très petite, délimitée par un bijou de cheveux. C'est le désespoir. Un collier de perles pour lequel on ne saurait trouver de fermoir et dont l'existence ne tient pas même à un fil, voilà le désespoir. Le reste, nous n'en parlons pas. Nous n'avons pas fini de deséspérer, si nous commençons. Moi je désespère de l'abat-jour vers quatre heures, je désespère de l'éventail vers minuit, je désespère de la cigarette des condamnés. Je connais le désespoir dans ses grandes lignes. Le désespoir n'a pas de coeur, la main reste toujours au désespoir hors d'haleine, au désespoir dont les glaces ne nous disent jamais s'il est mort. Je vis de ce désespoir qui m'enchante. J'aime cette mouche bleue qui vole dans le ciel à l'heure où les étoiles chantonnent. Je connais dans ses grandes lignes le désespoir aux longs étonnements grêles, le désespoir de la fierté, le désespoir de la colère. Je me lève chaque jour comme tout le monde et je détends les bras sur un papier à fleurs, je ne me souviens de rien, et c'est toujours avec désespoir que je découvre les beaux arbres déracinés de la nuit. L'air de la chambre est beau comme des baguettes de tambour. Il fait un temps de temps. Je connais le désespoir dans ses grandes lignes. C'est comme le vent du rideau qui me tend la perche. A-t-on idée d'un désespoir pareil! Au feu! Ah! ils vont encore venir... Et les annonces de journal, et les réclames lumineuses le long du canal. Tas de sable, espèce de tas de sable! Dans ses grandes lignes le désespoir n'a pas d'importance. C'est une corvée d'arbres qui va encore faire une forêt, c'est une corvée d'étoiles qui va encore faire un jour de moins, c'est une corvée de jours de moins qui va encore faire ma vie.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

OVO MÁGICO

Mário Cesariny

acordar no verde
e descer o ontem
contado à montanha
à espera que ela desboque
a sabedoria natural
das árvores

mágica maneira de aprender
a traduzir em sinais
o cruzamento dos troncos
a dimensão variável
dos triângulos quase rostos
recipientes falsos de vento
doado na veleidade do cuspo

venho das duras lições
de trigonometria
procuro sonhar com
a perna defeituosa do bronze
regressar esta noite
à espuma sufocante
dos frutos perdidos no chá
prostrar-me aos pés da imperatriz
do grande carrossel
mãe-de-pedra adormecida
na floresta

– reapareceu o ovo
junto à palmeira de lume

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Isabel Mendes Ferreira




escrever para que a alma escute o seu respirar. reclamar o amargo e o
maravilhoso. o insólito rugido de um corpo sempre floresta.
entrar às escuras no sangue fervente que tanto é raiz como fruto.
ser excessivo e espartano. vago e objectivo. anel e árvore. escrever para
ninguém. como quem compõe um adágio solitário e carinhoso. orquestra de
sílabas e de carne. a matéria de um violino a ser cárcere e prado . tudo na
mesma delicada sombra onde se perde a vida.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Fiama Hasse Pais Brandão



EPÍSTOLA PARA OS MEUS MEDOS

Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.

in Epístolas e Memorandos, Relógio d'Água, 1996

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

domingo, 28 de setembro de 2008

Epistolário Micrófilo



Daqui não me espera o caracol perturbado nem qualquer redondel diário como serviço inacabado da língua, porque se assim fosse, inutilmente me arrastaria neste cascalho trabalhado aos confins da reestruturação duma parábola ensimesmada de hálito sempre tido como estranho, mas de certo fulcral condimento da especiaria que se torna esse buliçoso pão que os pulmões tentam mastigar.



Pudera ser riso acidental num grotesco espectro sem desarmar a poeira laminar da certeza esférica dos dias; ou talvez perder-me entre as páginas ácidas [essa língua primitiva fatiada a frio] cozidas por vermes pontiagudos numa terra residual que as mãos beijam.

O fruto-chorão gatinha na pétala do som e ainda não se quer plausível o escrutínio enervante da sirene a julgar-se polpa tenra para o desastre. o cu no chão – epitáfio carnívoro em prole da tábua morta estancada nos olhos; que é bom saber o lugar dos objectos boiantes com o simples manejo dos apêndices dum escaravelho envenenado na lateral e operar maravilhas nessa mesa de quitina.



Uma espécie de dor; uma paleta de frequências a encenar qualquer devassidão arco-íris, ou simples fúria sensitiva a ressoar na pele; viva, aí, nesse bulir de mão regada de dedos, diria que ela ocorre num breve lusco-fusco sibilino a conter recusado manancial e me transporta ao poder absoluto de deslizar dentro do translúcido peixe por escamar como diabrura em súbita esquina.



Antes torturar árvores centenárias para que elas confessem carbono visual; e como é fantástico assistir ao parto da árvore: ao entrar em erupção, a musculada vagina celulósica soluça contracções avassaladoras repicadas pelos nós [até então secularmente contemplativos] narrando lendas imemoriais por meio de flashes onde se mesclam livremente seivas e sangue de outros tactos à laia de sucessão, com preservada nudez do futurismo infractor – é declaradamente secundária uma possível humilhação sofrida pela mais sofisticada máquina fotográfica que vai coleccionando ridículos cadáveres à força, estampas num entusiasmo ulceroso consentidas por milimétricos intervalos de putrefacção.



Dirão: «sopro lhe dá o vento» – passatempo para quem rói perguntas repletas de ácido sem que se denuncie casta plástica do aforismo ambulatório, nem se abafe a compleição do polímero sujeito a polimento cerebral que lhe confere momentânea suculência.
Poluída e vibrátil se espera a atabalhoada herança que em ricochete premiará a ascensão do osso filosofal, a manifestar-se num ritmo celebrativo do sempre imprevisível mosaico das mil e uma quimeras; daí o brilho pressuposto, a nitidez vertebral de novíssima estética recém-nascida por isolada retina.



Dou pequena mordidela na névoa placentária dum souto; ressurgem folhas secas, desdentadas palram novamente pelos cotovelos um tanto ao quanto calejados de escalarem formigueiros fonéticos que o vento atraiçoa fortuitamente, numa espécie de amnésia ou sulco germinativo.



Um choque térmico entre mosaicos paralelos e eu sob o seio gotejante a fabricar compassos de reformulação da esfera a recolocar num ímpeto frívolo [escorregam mãos no metal ensaboado] tal súmula do pseudosonho.



Não consinto que se dispa impune esse caracol tectónico no intuito subversivo de forjar amarelos [escusa de selectiva cegueira] enquanto se armam ninhos na protuberância mais alta do cérebro.



É preciso vasculhar o estrume com alguma frequência; encontram-se por vezes laranjas de casca luzidia, para não falar das asas brancas no meio dessa tralha, quando voar é o único remédio depois da chuva amoniacal desfigurar benzidos pertences fúteis, aliviando repentinamente os ombros dalgum ritmo cardíaco por osmose emprestado a esses objectos cuja luz me ofusca e contrai compactação ao sumo, estádio favorável a futuros voos.
A intrusão de novo recurso melódico a desenfrear os nervos, representado pelo sapateado de martelos cuspidos directamente de egrégios collants nalgum pedestal elitista, ressalva inevitável esterilidade da marcha até ao alvo, continente na iminência de explosão hormonal.



Esta endémica e voraz indústria química, timidamente embrulhada com a pele possível, vitaliza parte do degredo institucional de reinserção pela prática do comércio dito clandestino ou tráfico negro, e assinala berços aos herdeiros num baralho de dentes que à diurna luz falsamente se contempla.



Fio a fio alinho de comoção o cravo exótico, se me é dado o sucedâneo mover do pó a cumprir-se como aragem acústica numa cumplicidade de multíplices ecos, sem denunciar excentricidade nem transplantar agreste canela que incensa permanentemente as pautas, com o privilégio de ver mantido respectivo aroma mesmo selando a boca e sentir remorso nesse fechar inato ao ponto de o julgar prepúcio recapitulativo – ainda secreto esse flavour trauteado na solidão com a abrupta cadência do mármore.



Esbracejar novamente no sumo e senti-lo cromatina, convicto de que o movimento exuma a demência paúlica numa tentativa de sufragar o invisível epistolário a conjugar-se num corpo de mulher, será amputar uma parcela do código para refazê-lo com a ignorância primitiva, obrigando o cabelo da fêmea consubstanciada a proporcionar fita métrica para análise sistemática de inúmeros cometas incrustados nos corpos.


Porfírio Al Brandão
Setembro de 2008

Narsad Suite

à Natércia Oliveira Cidra
à Sandra Santos Martins

[DIA D]
que praia miraculosa meu coração não vê?
aonde a foz da estepe pressentida pelo chocalho?
que vento ousa esculpir minhas sete formas?

Assim murmura Narsad, na mais alta duna do deserto. Hoje é o primeiro dia vindo da cinza. Narsad dispersa as mãos no parto do sol, desejando que este sangre como a mãe dos povos e, lhe traga em fuga a aurora dada a ver numa boca, onde se entrançam milhentas linhas por remorso. O deserto é o seu país. Roça o ventre na areia. Perdeu algures a cartilha da serpente mais sábia, esconde o rosto com o lenço mais velho. Narsad, princesa de pé descalço num devaneio oriental, à mercê das agulhas dum marfim leitoso que, em rigoroso voo orquestram os lábios, ensinando-lhes a dança inebriante do gosto como plantam pólen no dorso do escorpião.
[MESES DE ENCANTAMENTO]
Eis que se alongam as noites – mede-as Narsad, braço a braço. As entranhas em absoluto desencontro. Sobram-lhe os pentes e os parentes. A lua mais perto – grande e azul encostada. Narsad em tremendo alvoroço no que olha enamorada, prevendo a seda que antecede a vontade do corpo. Passam os meses e mais lhe pesa o alimento; levado à boca não leveda o mesmo pão, embora se alastre a levedura como praga amena e insinuadora na redonda face da lua – onde o azul excede o desejo. Sempre presente o seu maior medo: ver apodrecer as uvas, colhidas no divertimento entregue ao lobo solitário e faminto, na sua ronda.


[CONFISSÃO]

Narsad assina em confissão cada rasgo na roupa que lhe esconde o ventre. Sente-se só – princesa sem umbigo. Chora uma mãe que nunca pôde ter tido, apesar de sempre viva uma memória de esperança a correr firme em cada veio da terra como útero abençoado que jurou amar. Ao luar deitada, mais próxima da adoptiva mãe, alisando-lhe curvilínea barriga, traça na areia repentino plano para cobiçar um umbigo nascido do seu sangue, e dar-lhe assim todo o amor que à terra pediu emprestado. As lágrimas cristalizam o esboço.
O império será erigido sobre as águas do Sado
– pensa –
O sangue planará à linha d’água
Narsad decide por fim abandonar o Palácio das Divindades Bastardas, sacudindo o luxo e a falsa protecção, dando início à sua verdadeira demanda.

[NARSAD]
Pondo a galope o seu fiel Três-Áspides, velocíssimo cavalo lusitano, Narsad lança ao céu a Nona-Graça, águia de penugem dourada que lhe coube de herança na morte do seu tutor; e sob o eflúvio mágico dos sete véus que em branco milagre brincam nas barbas dum vendaval ameaçador, presta juramento:
Eu sou Narsad, princesa sem umbigo
filha secreta de Narciso
violentamente cuspida pelas águas do Sado
generosamente viva para erguer nova lei
e acenderei meu sangue
ver-me-ão parir sobre as mesmas águas
um filho que roubando beleza ao avô
calará meu choro com um sorriso



[PAIXÃO]
Em fuga, um coração alarmado na treva. Pétalas cortadas ao vento seco. Relincha ávido, Três-Áspides de olho rápido na finta à flecha envenenada. Inclinada, Narsad bebe o ar de poço profundo, perseguida pelo batalhão do Sado. Nona-Graça talha luz no epicentro do céu, sinais de penas ao Três-Áspides. Firme na rédea Narsad fere as mãos no couro, roça a cara no sangue brotado procurando na guerra a sua máscara. Entra a trindade no labirinto do lago gasoso, camuflando-se na vegetação aquática. Narsad enrodilha algas nas feridas e, despistado o batalhão, ela emerge aprumada no Três-Áspides. Dirigem-se para uma caverna indicada pela Nona-Graça. Noite escura, Narsad descobre uma rocha de estranha saliência, venera uma barriga de pedra, alumia-a bem com a sua tocha, olha-a de perto, encosta o ouvido e algo move-se dentro, pressente vida; então, abraça a rocha e esta fende deixando cair um jovem rapaz, Tahir encarcerado por feitiço pela bruxa-mãe dos Kimohjad, a vil pedido do irmão mais novo com fome de trono. Narsad e Tahir olham-se frente a frente colados pelo silêncio, cada um ouve bater contrário o seu coração e, confusos na matéria e no tempo, fundem-se com um beijo.

[PRECE]
Tahir debruçado, abrindo um longo lenço de renda branca, acalmando Narsad de amor pejada, com um beijo suave numa das coxas – assim se cumpre o juramento, sobre as águas do rio Sado. Celebra-se o desejado império numa cabana de vime presa ao leito do rio, ajudada pela força da terra que as raízes enlaçam. Três-Áspides à porta, Nona-Graça no vértice mais alto da cabana. Entre ferozes contracções, a dor escorrega nos olhos de Narsad. Ouve-se um berro – nasce Irina; e ao abrir os seus pequenos pulmões ao mundo, os peixes do rio sacodem luz na escuridão da água, deixando entrever no leito o sorriso de Narciso.
Porfírio Al Brandão
Maio de 2007
[Deste opúsculo, inspirado no álbum «Narsad Suite» de Luís Lapa [2006], foram feitos 77 exemplares numerados e assinados pelo autor]

Itinerário Trágico-Lírico





ILHÉU BÍBLICO

a mãe traz no ventre
o capataz da paz.

a pomba d’ouro debica
o besouro do tesouro.

o senhor do vento assina isento
a morte em juramento.

o corvo de prata pousa uma pata
no ombro de quem mata.

o animal na arca terminal
preserva o mal natural.

a serpente se calça sapatos apaga
os factos e o mundo em três actos.

o crucifixo oxida submisso
aos beijos do pecador prolixo.



CAMPO IDÍLICO

ó esposa dos abismos
que irradias aforismos
associa os algarismos
que soltos derivam
macabros harmonizam
e nosso arfar escravizam
– aponta
essa conta
tonta
mulher
e se a colher
vier
cheia
semeia
a teia
de ranho
no banho
tamanho
que é o cio
servido frio
como balbucio.
vens temerária
bolha literária
mortuária
de assombro
tendo o ombro
como escombro
se alguém cede
quando pede
e com ossos mede
o raio diminuidor
sendo com dor
da morte amador.
entra à força o cirro
espirro
e embirro
de hora em hora
perdida a espora
– chora
floresta-virgem do sol
que drogas o caracol
com mentol.
então
sem razão
nem brasão
o ácido láctico
galáctico
de si já problemático
abomina
a vitamina
matutina
– inchaço
de cansaço:
crasso embaraço.
eu sou o rei do pó
o negro do dominó...
uma mó
trabalha
rude ralha
reduz o corpo a palha
– no terreiro
anda o carniceiro
fantasma corriqueiro
das sobras de espaço
e eu rei temo o aço
torno-me palhaço
afogo-me na poeira
sem eira nem beira
desço a estrumeira.
vivem pirilampos
nestes campos
comem grampos
são predadores
do metal roedores
dadores
de electrões
embora mui glutões
efeminados leões
mas felizes
estes petizes
e em deslizes
cagam lume
pleno ciúme
beijo do cume.
nesta choça
com lodo de troça
há a carroça
que os insectos
predilectos
puxam rectos
elipticamente voando
os narizes fungando
eis o bando
dos endrominados
que querem calados
os cardos malfadados
protegidos pela manha
da mamã montanha.
porque se estranha
a microchuva
na planície da uva?
o pulgão com sua luva...
roda-a com a mão da sina
– hélice na neblina
da fruta purpurina.
fala-me verdade
bruxa da herdade
mesmo sem alarde
tenho o passado
enforcado
na garganta entoado
fala-me da bala
que embala
a vazia mala
das suas máscaras
para mim tão caras
esbranquiçadas taras.
flutuam os colibris
coloridos e febris
sonâmbulos hostis
no pântano de rotativo
rosto distorcido
no reflexo assistido
sinistro por investida
a marulhar a ida
espicaçando a partida
negando o regresso.
mapa falso no ingresso
esqueleto possesso
nas traseiras
das tripas poedeiras
e as larvas traiçoeiras
somam açúcar branco
num recatado flanco
do hospedeiro franco.
amniótica brisa suave
com o alento da ave
– seu canto grave
sobre o vital fedor
ornamenta o andor
que os anjos do torpor
sustêm de madrugada
nesta enseada
agreste e desamparada.
inclinando o cálice real
verte-se o sol capital
e dança o mortal
exibindo a carne rósea
de ardósia em ardósia.
e a memória? coze-a
a fraqueza perdura
dentes na corda dura
mastigam a armadura
que ano a ano
se fortificou sem dano.
objectos de propano
declaram comedidos
a silhueta dos perdidos
papéis talvez comidos
com ávida aspereza
a delinear a tristeza
que a criatura enfeza.
engulo o somatório...
este corpo migratório
já entrou no sanatório
rãs cruzadas no chão
buscam até à exaustão
o braço do pulmão.
tanta candura...
carnaval de fervura
não é bravura
mas crepitante medo
que quebra ledo
o imponente dedo.
um campo de rugas
onde crescem verrugas
em vez de leitugas
e dormem esses pães
– os seios das mães –
junto aos cães
com tanta luz
que a virtude conduz
a queimar-lhes a cruz
do olhar mineral
criando ao calar a cal
o fontanário de sal.
apresento-vos sério
o perfumado cemitério
das flores do adultério
bem-vindos sejais
peregrinos que beijais
as campas florais
olhai o horizonte, são
as vacas de betão
a mugirem pela razão
dum outro morder
preso à terra do ser.
o império é para se ver
e não para alimentar
o fantasma salutar
que se vai humectar
na noite enferma.
leitosa alma... comer-ma?
a espiral de esperma
dilacera filamentos
dóceis excrementos
nutre tétricos rebentos
e reduz uma a uma
as cidades em espuma.
é esta a lição da pluma
ó esposa dos vulcões:
«perdões por tostões
não salvam corações».



OÁSIS VINÍLICO

azeda aurora febril
os dedos desta senil
vontade estão feridos
até se abrem ardidos
nesta estepe poluída
cada vez mais dolorida.

carne em flor
esgoto de dor!

não encontro cactos
pelo menos exactos
deveras adjectivados
como esses bastardos
que abalam o árctico.
brinquedos de plástico
enterrados na areia
que tudo incendeia
adquirem novo sentido
confirmado o gemido.

fronteira curta
a ciência furta!


quartzos de sofrimento
a substituir o cimento
enluarado tórax-teclado
ainda não desmascarado
neste amplíssimo deserto.
suado coração em aperto
que quer fécula de batata
nem que seja da barata
misturada com o oxigénio
cão seguro pelo hidrogénio
quando água que não há
agora nesta estância má.

corpo com fome
o tempo come!


vem serpente das plumas d´ouro
baptiza-me com o teu vil agouro
enrola-te em mim dá-me a beber
o teu veneno para que possa ver
esse mundo dos mortos delirantes
com os olhos ainda tão brilhantes.

falta um passo
nervos de aço!


ora atarefadas mãos pintam
em cada pormenor hesitam
ao reanimar o oásis artificial
consultando o idoso jogral
que bebeu das nove fontes
resguardadas pelos montes
tuteladas por nove duendes.
vida apenas quando acendes
as tintas arqueadas com tento
melodia vinda do sacro vento
– dança dos ditongos: alma d’ar
a grotesca úlcera não vai sarar.

só um sopro fecundo
ressuscita novo mundo!


jogo da cabra-cega com os lacraus
com leve aroma do catarro das naus.
ligado o prato giratório das ilhas
tangam os camelos nas duras milhas
e há a espera dos cães pelo negro pão
de ossos caramelizados pelo escaldão.

minga a pança
sobra a dança!


gota a gota na cabeça mede-se além
a fúria árabe seca na face de ninguém
com choro comedido pela biologia
que se estica à míngua sem hemorragia.
reconstituir a dita lenda a espernear
desenhando a carvão os sinais do mar
teatro que ameno soletra a avessa morte
que se vislumbra um pouco mais a norte.

o pobre doido faz e desfaz
por favor tragam as pás!


Porfírio Al Brandão
Agosto de 2005
[Deste opúsculo foram feitos 150 exemplares numerados e assinados pelo autor]

sábado, 27 de setembro de 2008

Infracarnália * Porfírio Al Brandão


O mundo é um grandecíssimo cadáver
com moscas de vaivém para abrilhantar.


José Cardoso Pires
in Balada da Praia dos Cães




I – O CÓRTEX








Cuspir a carne por ser nauseabundo
o seu odor bloco a bloco encaixado
já limbo sonoro onde se acama
OUTRÉM-GRITO a roer a casca
e encontrando branco o subterfúgio
disfarçado dizer subterrâneo pois
maldita e insurrecta a garganta engravida
de viscos e soberbas testamentárias
EU-QUEM a abocanhar o êxodo
à cauda da laranja morta
ainda amamentando a cobra
que desliza verde entre os gomos





De romper cadências da chuva – a testa
fulminante arabesco a sonhar demónios de saias


o útero da chaminé abre-se com
fugazes melodias de insectos despromovidos
em cada clareira
um mural
em cada haste em L vertendo
céus de demasia líquida
e instaura-se o centro da maternidade do cacto
de maternidade arbórea a luzir em qualquer sonho
sem que morra a ânsia de acordar


e na cabine homem e mulher olham a estrada
olham-na
engolem-na no limite visual
sob o alcatrão
flashes contínuos da contínua improbabilidade
da viagem


para lá do vidro algo espreita
acima das cabeças
alcatrão volátil
incolor acima das cabeças – a latência eminente
dum beijo de morte
homem e mulher impávidos
agrestes beijam esquinas
mantêm a expressão inicial do rosto
em acrílico tempo de menos a menos vivido
e largam cinzas do embrião sonhado
voam
queimam-se na névoa do alcatrão volátil


homem e mulher na cabine
olham
desovam tristeza
esparramada na chapa crua cruel inabitável
do alcatrão espasmado


– duas árvores secas






Ele vê-se a decifrar o arrojo sanguíneo – pensar
emergência do vermelho como
turbulência cerebral por fantasma estéril


e ele fala aos cães gemendo com um
em si adentro feroz cão negro


a esses que não teme fala de silêncio roedor
brusco inicia um retiro discursivo
pinga solidão intuitiva
verte violência muda
ginga entre balaústres do passado
aponta à esfera ladrares compulsivos


desce falando aos cães que o temem
gemendo sempre fugindo
do cão negro ainda em si dentro





Ignição: um carro rumo às barbas do céu
sufocado pelo arco-íris que um aceno
subscreveu – cinto é com tapetes diurnos
a suplantar escadas e ele bem apertado
extravasando cor em bolhas queimadas


o condutor sujeito à cruz enevoada
de curva próxima a amolecer-lhe o peito
e rasga ele a estrada pleno de apetite
atraído pelo pó que as nuvens mascam
a convite da mulher sorridente


um pé-de-feijão arrastando borda fora
o carro gripa e não, ele não se chama joão





Rumo à linha onde precipício me engulo
pulsam vértices orgânicos
de tossir picadas
e alinhá-las segundo a estirpe


figuro comida num ágil apodrecimento
orbitam mazelas que encaixam húmus
peso abominável ao mapa de grelhas


uma carcaça à terra se liberta


entro neste lento naufrágio
a pele derrete e amo degraus de cera
nos quais me ajoelho para rezar
à lâmina que as esponjas limpam





De beber o lençol julga-se morto
exposto num túmulo tenro
do alto à cegueira nega as pálpebras descidas
cume onde come bolor negro


debita suor abafando animais com as costas
cúpula do estábulo onde focinhos comentam
como se escavassem o sono colchão abaixo


o sonho é a gazela aos pinotes
no prado onde as flores sorriem decotes





Ouvi vivo no ar duros selos
e neles brindei em relevo
ao gume que talha venoso
os dados a ditarem
novo vestuário


segue-os atrás aquele nadar-de-orelhas
de rapina outro voar ainda ar denso
já outro corpo noutro agreste
enquanto entre eles cai uma porta
com dobradiças ósseas


vi e vim eu abrir vivo e sei: um pôs o pé
na sombra que se fez poça aspirante a espelho
onde outro mergulhará tintas expurgadas
a esquissos ambulantes em roda-morta
junto ao calvário





Olharam o dente como se
abocanhassem a orla dalgum cabo principesco
com a pressa de pentearem sonhos que no pestanejo
se escangalham ao redor desse defunto castrador
à distância fóssil duma nova ilha intocável


entrassem elas docemente pela raiz esbatida
na onda doutro sangue já envelhecido
doando curvas a um bolbo maior entre os eleitos
sonhos de morder almofada ou viajar fundo
em sono cru


vissem elas o poder das naus nesse mesmo dente
o grande caldo calcário onde se lavam as estepes
com direito à marcha fúnebre de bonecos pomposos
quando na ladeira esmaltada não se roça o linguado
saído da torneira a pingar-lhes nas cabeças
e soubessem elas que os pingos são soldados
mortos por tecelagem burocrática e que
em selada idade irão sacudir os brincos em fúria
com ambas as mãos no peito


– o dente – perguntei-lhes porque veneram
de manhã as gemas de sal
e elas responderam-me que o sal todo é da manhã





A vespa vem matar


asas nupciais às cócegas
quase me lancetam
a garganta


sou pelas lâmpadas doidas
da negra água brotam poldras
teclas húmidas a serem esculpidas
por trutas fluorescentes


ninhos ardem à conta do gás venenoso
suspiro da mãe-hematoma
neste dia feliz


chega de encobrir pevides em vítrea lamela
da colossal gravidez
que é a língua






Contar extinção por contágio
ascensão hormonal à escadaria
do homo sapiens recolocado
no distrito (i)mundo
lavando as mãos no ranho
que as cristaliza criminosas
para nos comparsas dar
palmadinhas nas costas e lhes
almoçar timos fígados e baços
regados de adrenalina
sim, este é o souvenir de cristal:
multiplicam-se ridículos os infectados
e o vírus engorda dentro deles
esticando-lhes o sorriso





Às costas minha banheira trémula
carapaça às avessas explica-a
certo fumo encarnado que algum fungo verteu
eu no aconchego da água quente
feto em volta da barbatana
que por sórdido umbilical lhe bebo
grossa gelatina para bom crossing-over


minha trémula banheira ao deus-dará
raso arranha-céus fumegante no qual
alforrecas se armadilham muito janotas


pelo som coso velocidades a objectos enquanto
caracol brincando à boca dum canhão de sal
e lá longe junto ao bidé
jaz uma tartaruga duas vezes morta
exibindo na sua podre carapaça
o rosto redimensionado de tristan tzara





Bêbado o profeta escoa salivas
as alucina por algemas barbudas
no habitat do verme – tricota o hábito
das algemas desfiando seda
descendo a outro salivar
que alcoólico se insinua a mucos perfeitos


profeta enquanto ossos
equilibrados no sopé do precipício
e espera, fica à espera e
tampouco desespera
espera o parto da manhã de aço
lendo o leite emulsionado
no espaço – gotas de luz
grafismos de sémen
sílabas rasantes à vista


venera a soberba mancha lenta da abóbada
pressupõe que alguém será a voz da sarça
num minuto assim estranho como exacto
ao redor duma cratera ensanguentada





O escuro. inseguro ventila cartilagens
irós já não lhe mordem. rói unhas
noite-azia. horário fracturado
espreita o guarda-roupa de lucífer. e assobia
agora verme. tremem-lhe anéis intestinais
de abraçar o frio espera recompensa. cubos
jogo-de-pés. sentidos em borrão na face
pânico diluído por mirones. um pano
digere os clones. ribalta metamórfica
em sintonia com os faróis. iró-de-prumo
conta 11. entra hidráulico no autocarro





Rasgar garagem num sabugo
por ouvir nervoso meia dúzia de pinhas
simpaticamente prenhas
de choverem hélices traz-me fricção
ó relâmpagos
caruma mágica nas mãos
arde amarga giesta quando
se esborracham olhos
errados na almofada
outrora cerejas frescas no topo
da plasticina


trampolim este sabugo fundo
algures dentro de mim a encorajar
janelas em fieitos de segredar à pele
daquele pequeno corpo
a arrancar membros às árvores
espadas depois
desembainhadas à claridade da manhã
vê-lo saltar dono e senhor de animais
bolindo nos micronichos dum oásis mudo
e o sol aprisionado em volta
pela cortina de pinheiros





É o rumor ósseo que lhes leva
o leite à boca
crescem do tronco expandido da mãe
a acalentá-los em sobressalto
e bem lhe serve o deserdado xaile
esse acordeão de renda onde se somarão
enganos doces


os pulmões enrodilham-lhe
os filhos
ela sabe-os perdidos
contudo enrijesse-lhes
os ossos


num estremecido fôlego
fortes foles filiam-se
aveludados no colo


são as bodas dum voo maior





Um aproximar surdo resvala
gaseificado enjoo neste terço minguante
permanecerão tábuas do enleio submarino
esboroada geografia humedecida na vertical


ouço-lhe estalos pulmonares
sei o esforço que as mós pleurais fazem para
não esmigalharem bolhas no contrabalanço líquido


quero dormir no incêndio do crepúsculo
ferido a vinte e um metros de profundidade
afogar os olhos e desmaiar nesse exercício
de afundar cabelos





Desço o limbo de isaac
cruz da cavalgaria assassina
disseram-me «o amor lava melhor
que qualquer sabão em agonia»
– estão mortos, mortos todos
subtraídos às esquinas do globo


há festim no jardim dos reis comuns
reis à procura da coroa
atolados na copa fértil
fundo víneo marulhando
fólios ascendendo a animais
vagabundos bebem-lhes a seiva encarnada
que lhes chaga o rosto
e o veneno trará boa ressaca narcísica


vénus calou a filha derramando-lhe ácido
na língua tenramente rosada
bem espremidas suas bolsas
caídas maduras da constelação movente
– festejemos a mortandade higiénica
dos que nus pingam ranho
no epicentro do templo
com cor esfomeada de incenso


hoje vi voar minha sombra esbracejando
diante dum espelho, não vou estar só
e cuspirei nesse machado vindo a lume
borbulhante na espiral virulenta dos olhos





Gira o cordão umbilical no microondas
futuro-tômbola para a plateia de estômagos


ao atolar-se um pé na passadeira
toda a dicotomia evapora tracejante com
contrafluxo das gentes em grosso tempero


quem arrisca estatelar-se branco quer beber
petróleo no poço escuro do tímpano
que não tem por poltrona
e cisma de camaleão-intempérie
a icebergue educado


passeia escorreito vento intentando fellatios
num xadrês citadino: embalsamam-se peões
por sonharem paralelepípedos contrariados





À luz ressurgem os cornos da bicicleta
e fico no que se camufla
pois retumbam exageros de sangue
numa camisa às riscas
que a avó apertou ao peito
e beijou


clareia-se-me a berma da estrada
pelo choro estilhaçado que o ranger comove
tal lasca do mundo ou folha granítica
intermitente de irmão a irmão
onde se desdobrou vida aos jorros
aliada ao musgo e à terra


presente ainda essa camisa
das nódoas só as dos beijos permanecem
e martelam
na minha cabeça





É o vento que me convoca, é o vento que me provoca
e a cadeira balouça: o velho
estirado completo na sua demência obscura
no seu passar igual dos anos
com a maresia dum louco cérebro à solta


balouça digerindo música seu diminuendo
da única alegria bebendo fluidos
planam pássaros
dolorosos cansaços vistos ao espelho
todo o dia toda a noite
e durante o sono masca aquele grão de loucura
obstipado na glândula
que à tarde amena se subtrai


ele repica passos, envolve-os em geleia crispada
e há migalhas na mesa
e há cadeiras fixas na memória
desmaiadas no pensamento
e há a ardência indolor dos olhos
água que jamais ressuscitará


irá de novo lançar redes para embrulhar peixes
e embalá-los num sono de alcofa
nunca mais dirá o seu nome
nem acariciará a fotografia
e o álbum há muito que é uma sepultura
há muito que alberga apenas traça
na sua vida minúscula
com vivência alegre da sua minúscula memória
mas que vive
vive
mesmo que minúscula a sua alegria


o velho arderá na planície
e nunca mais se ouvirá nele o eco da montanha
que algum dia lhe haviam falado





NOITEMÃE grito-te ó claustro fundente
secam as horas brilham os minutos
e num segundo fervo éguas brancas
espasmos de vísceras salpicados neste
pão branco que parto à mesa
alumiando vultos que colhi na clareira estelar
por desarmarem-me a pele
ANTESONHO minha estação motriz
cordilheira surda dos sete degelos
canto-te ó neblina óssea que
com incenso fecundo envolves
beijos podres do sol
a marinarem-se baços: bagas serôdias
balas soporíferas ocupando as câmaras
do revólver fálico que ferirá de luz
a vulva lunar





De esperanças o clarão descendente chama a criança
ela pega na medula peganhosa do objecto pensante
e confunde-se com o estímulo vermelho por mínimos
circuitos convulsivos das fibras deslizantes
não esquecida assume o músculo-betão ascendente
por um núcleo renascida no inseguro desfile
das imagens – pequeno soluço, arfa e curva os pés
como se agora segurasse o chão remanescente
dos edifícios; ouve falar por cima e sustém a respiração:
sabe que lhe sujam os vidros





Antes bem: uma última parcela de escuridão vertida
pela porta a transumar-se em continente
bem que respiro num sobrevoo
do grito a refazer
dúbio semblante do escultor que o perdeu


antes do carimbar de ouvido me vem
esse pétreo interesse por um
olho-búzio trazido pelo bruxo das boas-noites
e explica-me agulhas num amarelo vibrante
desculpa pesadelos mas


as pálpebras são corpulentas
pesadas cosem atalhos
nomeiam-me náufrago bolorento
com livre trespasse do âmnio
e assim reentro




II – OS VASOS









Porque íris de passagem
iria envolver paralisia e sombra
em crasso porquê da imagem
que à paragem do arco
um estridente quê
lhe ferisse os pés?





Disse-me o nome
e eu o disse ao de leve
pois que a sobra
circunscreve a moda dum
pronome ao telefone
ébrio letreiro que
incomoda a febre
do cone cavalheiro





A pseudomão empesta-me
nódulos nutridos com o suco medular
do caroço freático sangrante
núcleo duro da viagem
mas efervescente aonde
transbordante se me assiste
a velocidade





Boca em flecha ou
agulha abrindo
ao insecto a
janela do estame
que entulha vida
áspera quanto baste
neste certame





Dito homem assina
sangue ardendo à flor
perdendo rigor na pele
pelo dito não consumado


de ver-se queimado descrê
o vinho balbuciante
no copo


– raspas de água à superfície –


prevê vulcão rosáceo de
caprichosa lava-sangue
a desmantelar palavras





Derrubado escuta
a lei do microscópico
vento
sob a lisura ensan-

de[s]cida do granito
endospérmico
e lê a bivalve cor a rasgar-se
violenta sobre seu rosto
de papiros apodrecidos





Cómico isto de
subir a haste
duma deixa sem
manchar a mínima
renda na gotícula
isto de roubar sonhos
ao soar o orvalho
e entre as palavras
tão só e desprecavido
a roubá-los de novo
cómico isto de
imolar uma boca





De vê-las refaço-as
mãos invaginadas na
paisagem peristáltica


ramificam-se possessivas
machucam vozes





Um infinito cru aquece-lhes
o prato
que de olhar comove
bem resguardadas
as entranhas


mentem neve como pisam
o rosto da farinha
acusam oportuna cabeça
faz-de-conta


assim o perdoar visto
no borrão de seda
o bicho





Essoutro lugar retém
ouro de bissectriz cicatrizada
a diluir sob manhas
de querer adoptar
uma estrela





Soa pé ao búzio
carrancudo chupa
placentas e
nele suspira
o mar


mulheres em palco
mães suas mãos escoam
bílis agreste e
esfregam olhos
em terreno cabeludo


curvam línguas
botões carnais
o baile sulcando
nos braços
timbre hipnótico


e cresce um
veio roxo
escurece-se cavilha
dum coração
comedor de sal





Assim olho fibra a fibra
desflorados os clarões


gotejo partituras
e planam nelas naves auriculares
antenas ao tacto hipersensíveis


meço intenções na força cromática
a fixar aroma e textura no esqueleto
da tela espontaneamente fluida





O alvoroço lhe dá a fuga


adivinhando pegadas
ali mesmo renasce


e desfia silvos por chutar
penteados aos arbustos





À barriga da árvore acorrem
assombrados dentes
e suplicam rangentes
musicam doentes
sempre crentes
no rebento que ela há-de parir





A galope invadem-me
são víveres em metamorfose
animais verdes a perderem
pernas
que ao rastejarem
animam-me o corpo
e eu danço: são víboras





Esfolha-me

fole a fole


olhas-me


folhas e
medo





Um dia preso ao
nojo de pedir
azul estéril
para o
animal


por saber, a
portentosa cláusula


a cabeça aberta
e os dedos
muito sujos





Amadurecerá
o crânio na
bandeja


chorará
a gota pelo
chifre de luz


acorrerá
enamorado
o minotauro


[eixo a eixo
os olhos repetem
o mundo]


madrugará
uma canção







III – A MEDULA






A primeira imagem é o bebé ver
desaparecido o brinquedo debaixo do tapete
para desconhecida dimensão do universo


depois surgem esboço a esboço as paredes
comem área cada vez mais paredes
fortificam-se pelo tempo
mais baças do que verdes


ainda presas aos pés as raízes de todas
as plantas
ainda viva a sabedoria das árvores
no espírito
ainda intacto o contorcionismo das heras e madressilvas
nos músculos


os reinos beijam-se
a herança dissimula-se
profunda e invisível prevalece
até que o homem cansado e velho
abraçado à rocha e dela já parente
confesse o berço vegetal
nos primeiros nós da carne





Humanidade – o passeio
por tantas asneiras
cheira sempre a sangue
em todas as palavras
fora e dentro do corpo
e na valeta


humanidade – duas pernas ao lado
um lado nunca cicatrizado
para neste branco lugar
olhar de longe um gato
– cresce gato preto
pelos teus olhos de pantera
que eu me fico a tocar o tórax
a ponto de julgá-lo fruta
e justificar ar em falta
com arranhada tosse
grisalho e lento fosse o líquen
enrodilhado no coração


humanidade – pintar o pão
para morrer espumando tinta
jamais desabrochar noutros ouvidos
ouvir antes quebrarem-se pétalas ou vidros


humanidade – repensá-la
como quem se maquilha
há sempre guerra e tudo é mato
– morrer e oferecer à morte
um queijo azul muito velho





Se casco o pericarpo ao som
racho a pele em invasão dissecante


penso se li na lagoa espiga
o remoinho dos trompetes
a rodarem dedos suados
digo respigo aliás perdido no se
sopram tempo como miam
metal derretido e eu embalado
a doar órgãos ao vácuo feminino


então ver-se luz é regar enxertos





Que dizer da folia dum aguilhão aguçado
se me doem enxames no pescoço?


antes vê-lo executar viúvas de cera
com a fome de muitos lobos
um sem número de halos radiais
duma fria sensaboria tentacular
tê-lo mesmo como condão nidificador
coberto de plumas pairando sobre
velhos livros acossados pelo pó
manejá-lo aquecido no perímetro da voz
estimada catapulta contra o vasilhame
venerá-lo mastreá-lo aguçá-lo


talvez me desunhe à bica da flama
ou crave o aguilhão no céu da boca





Aproveitando na boda o jardim de espelhos para
o ensino da arte singular que é engolir
retoquemos a cobertura tóxica do bolo no centro
contráctil à música que varre as mesas
e sejamos feitos do brilho sujo da dança
da pobreza pura de relâmpagos faiscando contrastes
fragmentos de vídeo nesse sumo nauseado
demais o quanto sabemos que o é esta carne mutante
desmedida sempre e tanta saliva o comprova
sejamos par meu amor neste salão monstruoso
entre os que quebraram a flauta
sentindo ratos-bisturi galgarem-nos coluna acima
para apodrecerem nos lábios digna pergunta:
beber-se-á na arena destilado suor
como chuva cozinhada na atmosfera?
dancemos apenas e a sós dancemos
como se jamais tropeçássemos na variz purulenta
pela qual medram os sapatos em cada lance rítmico
e substitui o miocárdio deste salão
pleno de carícias urticantes que lubrificam a janela
por onde entrará o rinoceronte de luz
farejando-nos os ossos





«Dar água às grades»


mote corrente quando
se aprisiona uma nascente astral
de antedito pó
a tragar-se amargo ao redor do holograma


cambaleio mordiscando o púbis à nau do dia
descem panos curvos com nervos rubros
a alisarem o olho perfurante
que ainda desenha a bigorna


de ungir se esmaga
e beijar esgota
que vida se esvai
se estaca a boca?


«gradear as águas»





Ela sorriu às avessas e despiu a cidade
dizimou formigueiros soprando auréolas de fumo
– veio ridiculenraizar o amor


viaja num vagão azul
com a cadência solta das vértebras encharcadas
de quotidiano
massaja barro traduzindo assobios de flores
e estrangula lírios depois de os amamentar


perco-a em tantas faces
e ela nas escadas das nuvens de tão meu
céu confidente
tão meu refúgio quão
ecrã mutilador


sigo-lhe o arabesco mágico do cheiro
a pique num amor fatiado
mordo-me por doar açúcar mercantil


ao mínimo malabarismo com ovários
aquele sorriso apodrece
e explodem-lhe vilosidades numa cartolina
enfeitiçada igreja dos gnomos de barro





Escrevo a cear-te os átomos por saudade curva
doem-me as mãos de procurar granadas mínimas


a língua viaja pelo
mármore azedo – amêndoa
… desejo-a nos dedos


ouço turbinas no arcabouço veloz
ao lamber mucosas
e leio fundo nos tendões o verbo frígido
a engrandecer esse coito salivante das canoas febris
sob o artifício nascente de casulos luminosos


refazer-me-te praia daquela tarde
garças garganteiam-te o umbigo eruptivo
onde se aninha o precipitado coágulo violáceo
das marés inconfessas


abre-me válvulas
reata-me pérolas forradas a carne


e pensar que o coração é uma noz
um pedaço de mar aberto
à boca da cama


flutuante se me soluça o corpo
ao colher sementes na rouquidão nocturna
localizar-te nesse instante
em que a maré alta se confunde com o pólen
roubado à infância


os peixes beijarão a guilhotina
e não morderás a culpa que me veste de mar
nem tresloucarás a sede dos olhos que trespassam
o coração do cardume





Químico sol a tempo de arquear o caule
erguido a nós quebrado em dois
um beijo no orvalho crescente
entre narizes que a luz adensa e inebria
pela estéril doçura a trilhar no dorso


ouves eu dentro a consertar raízes
ampliando a vegetação
colhendo frutos sonoros numa nave de âmbar
engordando o caule com barriga televisiva


renasceremos mudos no tráfico de sementes





Tilinta o arco e a noite mera campânula
estrelas sobram atrás dos guindastes
sob o braço polar murcham lábios
como sujas palavras de sapatearem dentes


afio a agulha no pêndulo e costuro a casa
à febre estridente da última vinheta
alumiando ressonância indomável
tecto vulcânico à velocidade dum fósforo


e quando cintilam palpites a pulso
entrevejo-me inteiro redobrado
abrindo um bilhar de amoras





Uma colmeia gorda por candeeiro
estirando opacos seios gorgolejantes
do capim crescido nos nós dos dedos


hei-de acender favos líquidos quando
o cavalo de néon se quebrar no
entroncamento da frase a mim entupida


recém-chegado da tigela feia às voltas com
estranha alcateia de alcachofras cor-de-rosa
a segredarem-me morse por mil capas aos beiços


que redondos e curvos os seios enchem
de mel os favos e estes adoçam o leite
pela paixão em ângulo bem debaixo da lua





Abranda hesita pára: a caveira perfumada
ir no ir que alcança o chão e em frente
o vidro não perdoa paredes por transparência
ir à procura do til à demão da língua
esconder a couraça num galanteio de mentol
até ao mil se apedreja com rebuçados
quem surfa ondas do etanol desparasitado


que o amor vem dos bolsos aprendeu
a mais ter o poder de tocar e correr
o fecho éclair do peito às vezes movediço
outras pista de dança delas no corropio
a não esticar para não romper os bolsos
tornar-se invertebrado pregado aos mamilos
numa interrupção voluntária de lucidez





Muito rocha apetrechada de amar folhas
decalques sim: feijões proeminentes
de quem me ata cotilédones dependurado
muito qualquer coisa última num toque
de lianas e escorre um milímetro de arrozal
sobram amidos na confusão das bocas
muito papoila andante de malas feitas
um dia luzindo morte à escaravelho
cedo comparando mordeduras de alface
muito trinado compulsivo a abrir
corolas ao quadro estriado sobre retinas
cansa-me a guerrilha vegetal no pulso
muito tesoura dançarina numa paleta
e amputa sexo à tinta chorando óleo





Aí. só: ela no wc
por medicamentos no coldre me engane
com a capa onde prega
fivelas cromáticas da descabelada noite
e eu me dobre fintando-lhe o trote
donos dum chão a florir côncavo
abraçados para bocejar trevos
aos azulejos transpirados
junto aos alicerces das louças donde
face contra face
sóbrio borbotar da copa
nos irá acordar





Eu nos circuitos empapado com mangas
como se esperasse um esguicho para celebrar
o agonizante amarelo neste tapete binário
onde electrificado me sorteio com a pressa
de selar cáries e cálculos de enxofre
para rir-me como um tolo abraçado de bêbado
aos meus gigantescos rins e apontar-lhes ranho
olhando de soslaio a homeostasia de bonecos
com críticos órgãos amontoados nas lisas
cabeças unidas em cone quasi religioso
à procura do polímero-mor no foco ensandecido
dum palhaço a desejar melhoras espirrando laçarotes





Lembrar ânimo de sucção na cervical
e um arrepio leva a cor em frente


acorrem estilhaços junto à fava coronária
formigo enraivecido estranhando o balouço
e traz memórias dentadas a dois na pele
extensível a um quarto conservado pela saliva
numa súplica do capitel à vertebra fracturada
mas longínqua luz dura sustém o dente-de-leão
com tensões de explodir carruagens
num súbito big bang fraudulento


a mão assina a data no beiral cicatrizado
lambo-lhe o suor que intumesce os espinhos
há um turbilhão quente a envolver surdez
dum sangue descorado à força doente


à janela dói a grande superfície





Uma lágrima quente sem que a náusea ao de leve
me arrebate
por incompleto me seja eu mesmo
com vírgula aborrecida e
contando tê-la como alimento
à entrada dum matadouro


porque difícil é adivinhar dissonância nasal
espatifado em esponjosa contrição mamária
nunca sabendo se
lâminas labiais irão trabalhar
com grossos riachos a sucumbirem ao clorídrico suor
dada a serventia acrilírica de corpos submersos
no carvão nocturno – assim
avivasse ele mais negro destoantes pregas na cama
seguindo carícias dos anéis no parágrafo madalénico
da cobra
empalada já num receptáculo arbóreo deste dia mau





Enoja-me o verdete entusiasmado das notícias
mais o cheiro a bâton
cruzado com o do grave charuto
amarelado verbete me pareça
alérgico sim ao tumor-champanhe do beberete
porque minha casa envelhece
ela é de esferovite
enegrece ao tom eufórico do jornal
viveiro onde o vírus se replica
como se masturbasse nas barbas da célula cutânea
muito embora fechado nela
porém colossal quando prensado por colunas esguias
que lhe trazem a peçonha
fechado sim mas alongando pus por excitação
e os espigos musicais esburacam uma cozinha
julgada útero num sussurro digital





Venho atrás do lanho violeta que me dá o alfabeto
ideia curva de deuses anões esperando a trombeta
para verterem os bagos maduros do céu


porque se pintam podres as estrelas telecomandadas
numa atrapalhação pagã das mãos?


desfeitas as roupas em melaço
experimento a ousadia de provar chuva com o seu
travo a ferrugem sanguinolenta
e o prazer de afiar os dedos na trovoada






O fruto morreu há meia hora portanto
são horas de demolhar o calendário


acusar solstícios imprevisíveis nos músculos
numa intermitência de cores secundárias


não adianta sufragar a escorrência da polpa
nem tanto rever ópticas de leitura genética
em subcamadas do olho germinativo


é do dedo fixo o lugar envolvente
resta só
chegar por precisão a um derrame





As plantas são os mais belos mamíferos que um dia
abmorto conheci. intriga-me se é desordem
o desorvalhar das folhas
creio que sobredesenvolvimento mamário
ao micronível dos estomas; fundamento é
a própria gota que progressivo mamilo na queda
se goteja e aleija o tempo como espelha leites
por aguar num antebranco dominical. isto sem falar
da extravagância sexual e púbicos consentimentos
pois verde a tocar-se verde refulge toda a matéria
e os olhos são dois alvéolos do anormal pulmão
do mundo





Bendiga-se verde a folha nova
com os cegos cloroplastos da fortuna


olhai-a encurvar ampla planície
trazendo sossego do caule
que o sopro minoritário estende a domínio duplo
duas cores: uma clara-marialva por ressalva
a outra escura-grávida de grave sanguinidade


todo o pedúnculo refaz a voz do rio
e ouve-se o rebolar miudinho
dos ovos no cálice mas
cá fora um barco estridente
rasga águas à procura de novo amanhecer


que lagarta beijará ao contrário o amor
espelhado nos alicerces do casulo?

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Moral Canibal * Porfírio Al Brandão

PRELÚDIO QUARESMAL
OU
MONÓLOGO DO CORDEIRO MORTO
PELA LANÇA VOCABULAR



ó de mim...
tanta culpa na constelação dos membros.
a lâmina dos beijos decepa, em órbita, figurações espontâneas
que amaria eternizar.

olhai para mim...
eu sou o cordeiro abençoado que abre o peito diante de vós,
o excelso exemplo de quem realmente despe músculo a músculo
a razão monumental do encharcamento pulmonar.

preparai-vos...
prometidos estão os meus restos para a vossa ceia festiva,
orgulho preliminar antes do mergulho da coroa a ensanguentar, o azul na
devassidão das vossas vísceras compulsivamente arredadas
do antro luzente por um bocejar matinal.

depois do sono a amnésia...
visitar a fábrica dos horrores suavizados, apreciar os rostos
estampados nos rótulos do produto moralizador empacotado,
estudar a genealogia dos monstros de lodo artificial
que habitarão o futuro.

concentrai-vos na rotação dos meus olhos inchados de sangue...
vereis três éguas a parir ferrugem no fogo emudecido.

aposto os meus intestinos que na vossa endiabrada cabeça,
vive somente o emparcelado mundo da probabilidade dedutiva;
sei que ocorrem constantes mutações no vosso crânio e que
a cada rotação da máscara cárnea surge um novo padrão colorido
que mais não é do que um elementar truque de ilusionismo óptico...
eu à vossa imagem ou melhor, o meu rosto de cordeiro mal morto
reflectido na mesa das apostas.

projectai a minha súmula genética na vossa indisposição; apraz-me até,
relembram-me velhos tempos... eram doze a comer-me
e eu gostava... ainda gosto.

e os textos? queimai-os, assim como o sonho da erva
que apesar de fresca era amarga, e enterrai vivo o calendário das lendas
na pele caramelizada ainda a soletrar o deserto.

conto-vos que
o urso imperador deu ordens queimando a pele rochosa
ao vento do norte.

jangadas de cinza descem a garganta, cravando na carne
o gosto repelente pela irmandade dos arbustos que se reúne
todas as noites na planície enfeitada com cestos de fruta podre
brotados da terra – o pequeno-almoço do monstro
da nova manhã.

confesso, há muito que o beijo dos triângulos incendiou
a trilogia dos espíritos, e o fumo será o perfume dos que condenam
as leis da ampola do tempo.

qual sacrilégio em cada degrau...
o monstro da nova manhã sozinho canta e brinca
com o seu rouco eco.

de vez em quando, torna-se necessário ler o rebanho das gotas de água
no vidro baço da melancolia,
puzzle de trevos verdes para todo o sempre pisado
– aqui tens a tua terra!

todo o meu interior exposto às moscas e aos homens...
mas a minha dor deve-se ao nojo inócuo das palavras,
ao tédio corrosivo do discurso que desliza entre os mosaicos de saliva
perpetuados nas saias do tempo.

assim morro com esta lança cravada no peito... e da ferida apenas escorre
a seiva de detritos que desisti compreender, vurmo baptismal indiciador
da condensação do pecado e não da sua suposta absolvição.

em verdade vos digo, no próximo mundo o crocodilo será vegetariano.

nesta mesa onde vos espero me confesso... aqui me acuso
e me calo.





[a rapariga verde]

sabes-te, olhas ensonado a rapariga verde que pisa
descalça
os intestinos caramelizados da máquina de escrever
há muito explodida num dos cantos do quarto.
aranhas húmidas saem das brechas imperceptíveis
do tecto,
atacam-te enquanto observas as formigas negras
a funcionarem como agrafos no ventre da rapariga verde.
um suspiro a soar como tardio alvorecer e é então
que percebes
porque azedam os sonhos.
abre a janela a porta o peito os pulsos...
reclama a legítima herança da claridade – o país de
papel
onde deslizam as lagartas.
***
[electrocensura]

porque curva a ideia sem que lhe caiba o cansaço? comer? sim,
ridículo trauma a emborcar gaiolas de pau preto.
a realidade privativa enriquece a primitiva alcunha
a servir de lantejoula – quente pensamento
afagando o áspero pêlo do
jumento.
zoológica natividade do prête a porter... e ninguém explica
a função gráfica do surro quotidiano,
nem o virtuosismo sintético do seu significado. aspas que
porta?
acento circunflexo que telhado? ponto de exclamação que
chaminé?
quem dobra a esquina do estéril ermo? mal dúbio sem perito
de reforço – doidice das farpas que as fadas
costuram feias, enquanto rotina do desencanto.
escrever um nome no fundo basilar do estômago e
instalar-lhe um eléctrodo: ladainha das sete
escadarias controversas.
espero o meu par no epicentro do
gira-discos
que acaba de ter alta das urgências hospitalares.
agulha grossa na fenda germinativa das cabeças
unidas – romântico extorquir de senhas
da revolução interior.
***
[o bicho-da-modéstia]

ao que
vieste?
mordeu-te o bicho-da-modéstia... ninguém te desata os nós do
esófago
e o trevo não funciona como senha na sala de tortura.
ao que
vieste?
trazes escrito nas costas que foste traído por quem mais te
elogiou
– o touro branco só te ataca se o deixares à solta.
foste mordido pelo bicho-da-modéstia...
esfrega o inchaço com álcool e goza a ressaca,
és parede de embate, sabes que
estás vivo e
acaricias os cornos que te trespassam
friamente.
ao que
vieste?
ris-te do mal que acaba por te atingir;
descobres tarde que aquele que vês sofrer és tu afinal,
um espécime doente, decerto canibal.
***
[alerta geral]

movimenta-se esfomeado farejando entre os
arbustos,
observa apaixonado os obstáculos em que tropeça
– fujam, ele é humano... tem os olhos vermelhos dum ódio
ilegível
e garras afiadas a saírem-lhe da boca.
ele vê os órgãos da presa
a contraírem-se
de temor
– fujam, não subestimem a agilidade deste predador,
ele é humano, fujam... conhece todas as tocas ou supõe
conhecer,
por isso é perigoso
– fujam
e afastem-se de todos os espelhos.
ele é humano,
o mano.
***
[a besta]


a besta sobre o tapete no lado de lá... roçando-se na cortina
vermelha,
floresce-lhe o nariz as faces os olhos escavados as mãos
de veias grossas sobrelotadas – surge
sem a noção de surgir.
baba a cortina, rosna e insurge-se violenta numa pose
a suster a gargalhada que ridiculariza o caldeirão
de rostos fálicos subdivididos por um visco dourado.
a besta do lado de quem a pressente a cada esquina
mas que não a vê, nem lhe adivinha o ataque.
porém, a besta gulosa humedece o alvo róseo a penetrar
com a impensável falácia de potencial ensurdecedor.
o monstro a monte no lado de lá, morando para lá
do que ainda quente se transforma
do lado de fora, asfixiado pelos raios acrílicos
das vítimas: brancura cuspida – a traqueia picotada.
correm mulheres dentro da besta, cardos no peito,
vinagre na alma.
e quando no prado medular da história a besta morre,
resta a coroação. rumores... sabe-os todos
o vento – para sempre viva a auréola de pólen
que lha dá a natureza.
***
[desmame]

experimento como se pela primeira vez o voo uterino
apalpando as mucosas, docilmente vacilando
colado à imagem
quase
sem respirar – o halo.
viagem à terra perdida da utopia,
quimera do deleite desfolhado.
vou nadar sobre a montanha despida
como se voasse de facto
e mamar no cume do pinheiro mais alto o precioso leite
dos cones primaveris.
vou denunciar as medalhas de plástico verde
que bóiam concêntricas
no rio douro – pressuposta película
dum segredo tão profundo.
pudera eu conhecer as vísceras do rio como as que sinto
mover incomodadas
cá dentro.
***
[nenúfar espacial]

nenúfar movediço... a casa. estar, os pés acesos... balouçar
ter o medo a salgar os músculos intermitentes,
buzinas em vez de ouvidos.
a dança do ventre com archotes de lava volátil.
vem beijar-me que eu mordo-te com a vontade dum javali
de perna amputada...
«ao que parece, ele veio das outras bandas...
não lhe sei o nome, parece que não come nem bebe. de tarde,
brinca com as flores silvestres que abafam os arredores
da cabana» – vai, vês de certo, o gume do som
libertado pela teimosia estática dos objectos,
aquando os mínimos precipícios
assazmente escrupulosos
pela intersecção de vertigens, outrora ritmicamente
paralelas.
agora... saltar!
manter o verbo sem comer o naco de insecto
parado no código de barras
do tempo.
e ouvir de novo os passos... «vêm buscar-me!»
embriagam-te o corpo nesta cúpula de gases turvos...
deixa ecoar o grito da
tua carne
líquida,
pois futuramente a sentirás disseminada na rochosa
planície acrílica,
como que limpa de todo o pecado amordaçado.
os revólveres são grossos resíduos de carvão
em erosão
no terreno alisado da tertúlia masoquista.
ó encruzilhadas de estradas onde pulgões drogados
passeiam à mercê dos vírus vegetais pontiagudos.
ai que a seiva mata... escreveste, portanto, inscreveste
no dorso do cavalo selvagem
de três patas.
sentes pulsar a culpa... e detrás do cepo choras
vinagre,
és e serás assassino – a vigília dos nervos por traição, florido
o nó resinento.
pântano recauchutado do devir, pântano onde brincam
os animáculos do cuspo mantidos a glicose...
ó pântano masturbatório,
viveiro de fantasmas enfeitiçados pelo pó de alecrim a ser
queimado – brincamos nós?
nenúfar espacial... movediço ainda – a casa. estar,
os pés apagados.
***
[nós nox noz]

a carne acesa a rodar o cálice – esqueces as fibras vegetais
que te torneiam.
dormente te insinuas; quem vês chegar para além da casca?
sobras na tua solidão, sabes-te objecto muscular...
a noz.
o peito acelerado desapega-se da espinha que afiada
corta os pulsos da lua a morrer pálida
sobre a tua cabeça.
ninguém quer ler a tua carne... aqueloutro quer antes
mastigá-la
para decifrar a sua própria carne, embebida em saliva morna
que enche vagarosamente o cálice de latão.
gravados estão os agouros pelas mãos da suprema ignorância.
***
[carrossel]

ah o carrossel, uma volta,
senhores e senhoras, meninos e meninas:
apresento-vos o fantástico carrossel de carne podre!
fechem os olhos,
apreciem o passeio turístico na cabine das sombras;
oportunidade única de ver a cores buracos negros
em vez de olhos inchados
e o tão grande campo de espantalhos espetados
a gesticularem indefesos.
inspirem o fedor da renúncia, bebam
o sangue do cacto órfão perfurando o coração do pão negro,
apalpem o estigma espinhoso da flor tenra
que amarela
abre para dentro.
ah o carrossel dos assentos com ventosas que sugam pútridas
ideias e imagens
do mundano torpor recíproco – o digno carrossel das fezes
copiosas,
reservatório grotesco de vurmo.
bem-vindos!
próxima paragem: o mesmo lugar.
***
[o manequim]

quem roubou os órgãos ao manequim? sanguessugas
operam
no corpo gessoso,
condenado à posição infernal de serventia.
faltam-lhe os cornos do ódio, o vermelho do choro a
proclamar vingança;
faltam-lhe as algas cinzentas
como lâminas de machados em pé
de guerra.
nu,
secamente nu, vítima de bruxedo, reduzido ao puro escárnio
– roubaram-lhe a visceral expressão do rosto.
talvez virá quem lhe faça justiça, quebrando-lhe a
pseudocabeça
e exibindo bem alto
a caverna rugosa do rosto escavado para dentro.
***
[a refeição]

aberta a boca enorme
[lábios frios sem almofadas]
come o vício.
COMÍCIO – o ovo estrelado arrasta-se pelo mundo,
voo atrelado que se castra;
surriada de ondas viscosas da clara mal cozinhada.
a cara enfadonha discursa – o peixe
nada
sobre a planície irritável da fome
no mundo cujo estômago ajusta a seu bel-prazer
a coroa de espinhos.
nuvem negra da peste sobre a frigideira;
CARCINOMA – coágulo de sangue falso
a vaguear lento.
peixe cozido com ovo estrelado: meu lado sangra...
***
[fantoglobalização]

arcadas relembradas pelo som montanhoso até à foz
do arvoredo.
quem viu? porquê tanta acidez? assim se delineou o
julgamento:
«sou ser que se ergue como erva ontem pisada».
garras ossificadas salvaguardam a estrutura anelar
da memória – a cruz velha da face.
guache nas caras muitas caras,
gárgulas acrílicas sobrevoam o curral das bogas,
lago onde o mensageiro negro sangrou estanho.
crivo fermentos, aparentes sílabas mortas, com estas grades
que atravessam-me a garganta.
escadarias tubulares metálicas frequentadas por fantasmas que
teimam em vestir calças de ganga azul e t-shirt branca.
confuso mapa da sucata – mastigo as côdeas da ausência
e saboreio a gelatina dos pequenos seres de geada.
crise de soluços no centro da girândola ardente
e depois tusso
descobrindo solta a mágoa.
a espinal não passa duma coluna de gelo...
***
[zero]

nunca tocarás em nenhum retalho da folha branca
sobre a qual caminhas e desfolhas o teu bolbo – nem lhe
sentirás o verdadeiro cheiro
sequer.
sentes as bifurcações dos vasos capilares,
experimentas só a vertigem do salto, medida em cada
um
dos retábulos do movimento fluido das cores mais ocres
em intersecção,
atingindo o número real da tua monografia: o inigualável
zero.
zero, zero colossal, zero mirado da rua,
próximo da devoção agiota.
zero ínfimo mais do que tudo...
mais do que a casa que guarda o sangue daqueles que
penhoram o frágil órgão de explosão
para perfumarem objectos com o sufragado óleo
das paixões.
***
[o farol]

a manhã entreaberta – correria branca do sonho em
curso.
doce bafo do menino à passagem dos
dedos maternos.
os olhos ainda cerrados vêem tudo
[TRANSLAÇÃO DAS
PLACAS CÁRNEAS]
o suor leitoso liberta um suave aroma. mão fechada,
a predilecta mão fechada, ocultando
carvão brilhante – uma mosca
assassinada.
o menino dorme... calada, a mãe zela com ternura
a sossegada concha – a mão aperta
mar dentro.
***
[de costas apostas?]

cruz credo... que desacato crer na cruz do medo,
sintoma do grito caduco – o beato mede a pança do mole
penedo,
e farto do muco
arrebanha as folhas douradas com suja sede
[quasi maluco]
folhas por vermes mastigadas.
cruz credo... qual oração ou promessa a favor do vento,
sintoma da carne plastificada – o vilão
ou serpente agricultora rastejando no cimento
da acusação,
que cansada suicida-se santa
com uma pérola no vértice da língua rasgada.
onde morre o espectro, sopro que desditosa poeira levanta
em nome da verde boca do ceptro?
***
[vénia]

vénia... membranas interdigitais ao vento.
voa o xaile rendilhado por onde se vê a truta bailarina
a fazer olhinhos mansos.
o horror da notícia é motivo de vómito sob os arcos
musculares
dos membros sadios em contracção mórbida.
esperar a garganta e delinear destinos na cinza com os quatro
dentes do garfo encontrado à beira-rio;
olhar de longe as penas defeituosas da leveza hostil
sugerida pela frieza atmosférica do desejo.
o anel
trabalhado no esquecimento fecundo,
desencontro fiel da dicotomia genealógica vista
do macro ao micro
infinito
surdo – todos os nomes passeando
na linha rarefeita da importância conjugal de nuvens
importadas dum limiar baldio.
vénia... que entardece; partiram-me falanges,
estes queridos estranhos, em si perdidos, vagabundos
procriados pela batuta da proveta.
felinos acordes a banharem a praia do dia... acordar
desenhando na tábua a aurora oral infecta
com ouro de doloroso brilho alojado nas
unhas.
***
[o coleccionador]

ó carcaça que te esquivas dos pingos de vitríolo...
escuta-me
andarilho sofredor,
coleccionador fanático de cicatrizes.
vira-te para mim,
atenta meus lábios, lê as vibrações do que te digo...
sangram-te os olhos?
mostra-me o álbum das feridas – quero lamber o
pranto rejubilado
nessas páginas de lenho nervoso.
crescem-te fungos verdes no cólon?
cede-me esses farrapos de pele velha que já não usas
para melhor forrar este casulo
donde te espreito.
despe-te cruamente que eu beijarei
as chagas.
***
[inferno]

«isto é o inferno» – queimando a asa esquerda.
encandeado, o rapaz emociona-se confuso, o mundo
embaciado: vapor oriundo da fervura
de pseudolágrimas.
como que a virgem borboleta violácea
se compadece,
tanto que inicia a postura letal dos ovos no colo
duma folha-mão verde, a flutuar serena
na água cristalina dos olhos imóveis do jovem
rapaz
ainda palmilhando o braço da ganância... a náusea:
súbito reflexo de perseguir a avermelhada presa
de patas prateadas; cumpre-se a rima
se o filho carregar a culpa de esgravatar a terra
à procura dos bagos gordos enterrados pelo pai?
a brisa de exsudação beija a terra visionária.
«ousas decifrar a fórmula do rebentamento da erva lendária?»
a súmula do vitupério – razão do império – a mulher plantada
no cóccix do macho que dobra os sinos...
e esvoaçam as cartas do sono, libertadas para
o grandioso massacre... granizo aos soluços.
há um rosto em orgasmo num dos halos abençoados
pelo sol,
e tal é a compenetração deste astro protector que não se
dá conta da sodómica intenção de neptuno...
gargalhada na via láctea!
«perderam-te aqui» – semente morta,
malogradamente oca, de velhos tegumentos.
os ciganos amordaçaram a lua... todos mortos
para a eternidade, nesta terra de ninguém.
a ebriez dos sábios cabe na tristeza polvilhada
nos lábios da terra... o filho abandonado.
incerteza de meia-noite:
quando virá a mãe destes gritos disparados contra a face lunar
amarelecida nas pautas da ambição?
resta-nos acampar junto ao portão do juízo final;
os anjos aninharam-se na loca negra onde o lobo vive da carne
que transpira veneno... senhores da terra de ninguém.
onde vestir a capa do carrasco? vinde, apedrejai-me
vós, maníaco-depressivos da verdade – verde cidade,
cidade verde... que chovam gargalhadas!
vós, excelentíssimos degoladores da flora explosiva em cada
rasgo transversal do ser;
vós,
de constituição tatuada na pele... esquecei!
e rir,
gargalhar, e morrer a sós com a beleza.
***
[último arco-íris ou o reverso de medusa]

pulsa o coração daquela mulher à escuta
dos últimos espasmos vitais espelhados pelos olhos daquele
pássaro fatalmente ferido.
o epitáfio inundado – alvor cénico de tensão amnésica,
consumando-se a recondução da esfera impermeável
com os seus espinhos dançantes – a seara negra.
súbita bifurcação
e, justifica-se a subversão da justiça térrea,
ornamentada com espectros fluidos de crianças pálidas
com a pele descosida ou o crânio quebrado – é daí,
desse portal entre a escuridão e a luz
cabalmente aberto,
que se experimenta o livre arbítrio da furtiva e solta
contaminação: o suco híbrido de sangue e linfa
de mágoa não resolvida – escala o ar como serpente;
propagam-se ondas oscilatórias do invisível ódio,
esse suco amargo desse passado revivido em cada hora
pelo exilado na morte, que
alimenta paradoxos aromáticos cuja origem
é fidedignamente descrita pela ablação do idioma.
aquela mulher explode se desviar o olhar;
o pássaro morre se a dita mulher fechar os olhos.
a morte daquele animal dita em voz alta o manual da
regressão apática daquela mulher, que o desenha
no desnudo painel de neurónios coligados pelo vagar
da matriz afectiva em toda e qualquer reflexão por compaixão
de si própria.
sofre, aquela mulher, no seu perímetro de angústia e tédio
à espera...
fecha os olhos;
aquele pássaro morre escondido em cima
duma fraga.
***
[aviso aos violadores de plantas]

abres à força o botão pomposo da planta,
desmantelando-lhe a fechadura vegetal
para roubares o saboroso coração verde.
assumes-te como tarado torcionário?
como confessas este crime, abominável culto?
como vives nesta primavera de escombros fetais?
melhor é começares a eliminar as provas...
limpa bem o pólen da roupa
e dos sapatos;
o império das plantas homicidas há-de chegar
– morrerás de alergia!
***
[sermão aos gafanhotos]

cambaleia trôpego o orador de cabeça levantada
[uma agulha de prata espetada no nariz]
meneia a túnica de carmim aguado até ao púlpito.
«caríssimos irmãos:
colonizai este planeta pela desordem,
perpetuai a entropia com os frenéticos músculos
que aperfeiçoais dia após dia,
guinchai até à exaustão...
está na altura de impormos a nossa ecléctica música
de ranho e voo...
meus excelsos irmãos,
contemplai com os vossos olhos esbugalhados
a cabra da nona estrela,
nossa rainha das noites de glória!»
limpa emocionado o suor do rosto e triunfante finaliza:
«eis que é chegada a nossa hora...
ide e venerai sempre a fissura renal da cassiopeia,
pois dela vem a nossa luz!»
***
[a mosca]

nevoeiro na banheira, o branco fede.
pequena mancha negra em movimento – a mosca.
a linha de água convida à rasura dos aspectos.
microvisão: ondas médias,
a boca do vazio – por enquanto fechada – a mosca aflita...
o abdómen mole, a horrível sensação
de decomposição a frio, os olhos dúbios
perdidos no vapor,
a inquietação das asas que a pouco e pouco
vão perdendo cinética e sucumbem à moleza
da humidade.
a mão mergulha verticalmente e ao curvar,
provoca um tsunami que aproxima a mosca
à margem.
ela desperta esperançada, esfrega as patas e
prepara-se para escalar a lisa parede branca...
mas o desespero calcário aliado à força já diminuta,
impedem-na de escalar o obstáculo escorregadio.
sete minutos, sete horas – as asas encharcadas,
a vida por um fio.
entra em cena, de novo, a mão: a maca da salvação.
repousa agora a mosca em chão firme, num dos azulejos
vermelhos...
à medida que se enxuga desenfreia as articulações,
olhando aliviada a janela aberta. um pé...
mosca enfim morta – já se pode tomar banho.
***
[subsistência]

almas há que padecem de diarreia...
assim nos alimentamos.
errantes grânulos suspensos, os restos de outrém
tão nossos.
dancemos submersos no tanque... palavras abafadas
na erupção de bolhas de dióxido de carbono,
enquanto se faz a digestão do plâncton áureo
amealhado pelo filtro de roxa fibra em alto nível de
irritabilidade.
brilham as pérolas de saliva, lá longe
onde vive o sonho em torno dos olhos mortos
da catedral.
os livros abandonam as bibliotecas, cospem o mofo amargo
dos pulmões de celulose...
passeiam cegos pelas antigas ruas sob a ditadura do dicionário
dos pecados.
***
[a tempestade]

o palco manchado de talco, esperma em pó de fantasmas.
mandíbulas gigantes secamente arroxeadas
exasperam palpitando
como se morrendo à deriva – pesarosa boca sobrelotada
de relâmpagos com cores psicadélicas sortidas.
«eu nasci nas geladas montanhas, onde as árvores andam
sempre prenhas e os animais dançam todos juntos
à meia-noite
durante cinco minutos na clareira azul,
doce calvície esponjosa do globo.»
trabalham os dentes atormentando
a LÍNGUA-CARAVELA; exalta-se
a SALIVA-MAR enchente;
reactivados pela mastigação os relâmpagos propagam-se
a estalejar
e condensam-se numa rendilhada placenta luminosa,
formando um esterno cárneo no palato.
a tempestade de halogéneos singra em orgia
com piruetas e cambalhotas.
***
[o papa-letras]

impressões sobre o papa-letras, espécie em risco de extinção:
INVERTEBRADO
dissecação não necessária, perigo de contágio indutor de
mutação genética;
TROMBA-ASPIRADOR
nutre-se de ditongos, frases e até textos inteiros,
vomita a última refeição quando importunado e
engasga-se com excertos textuais
por causa das espinhas axiomáticas e gorduras semânticas
– estranho bibliófago;
VENTOSAS
NAS EXTREMIDADES DOS DEDOS
prende-se facilmente às páginas,
gesticula imponente como técnica de defesa.
últimas impressões:
i. perfuma-se com o mijo da filosofia;
ii. ataca com setas verbais envenenadas;
iii. asmático quando exposto à gíria.
***
[era dos clones]

venho de ver os órgãos duplicados das vacas na era do plástico
consumível... ainda latejam.
brancas árvores medicadas servem de suporte aos clones
que se enxugam,
trabalhando as unhas contra o prurido ocasionado por crostas
caramelizadas pelo líquido amniótico.
sei-me no ecrã a substituir o ventre da água carmim.
ainda se ouve o choro do míssil nas vísceras
das casas.
morreram as pombas na praça sentimental da cidade
– avião cerebral,
vista panorâmica: quotidiano longínquo montado
a partir de ossos esculpidos com um estilhaço de vidro
parido pelo ânus.
a náusea, vício dos vícios, pão ázimo de cada dia,
rodopio cíclico instintivo, o zumbido da retórica
deveras característico – gritam os automóveis
estrada fora.
viaja o símio refastelado na câmara de ressonância.
desunham-se os macacos
à espera.
***
[o beijo da febre]

rufos de tambores nas entranhas.
feira dos calafrios – a folha de zinco vibra, geme...
o fantovelocípede ensaia a pose das tormentas.
desidratado sofre o humano-tâmara-d’ouro,
imobilizado pelo caruncho da deserção
afectiva.
visco ósseo a correr doido
na veia,
graciosa subida tricotando o mudo som das vísceras.
e depois desce o ser brumoso em contínua apneia,
suor axadrezado coroando o sangue ausente
no momento desflorado
a pique – a invasão das circunvoluções do cérebro
em hiper-desenvolvimento de expansão
vértebra a vértebra,
até formar o casulo do egotismo.
sanguíneos pássaros esbranquiçados picotam a
cortina esverdeada do nojo claustrofóbico da imagem
trabalhada em plástico.
no dia seguinte desabrocham os lábios
[flores de pus]
e todos os campos férteis
da pele.
***
[tardiamente]
tarde saberás que o vento emprenha e amachuca;
a mudez consome o espanto, reduz-se a
fermento.
não dás conta, és estaca muscular girando irregular,
jorrando indefesa.
os vendilhões ressonam nas tuas células... tu eunuco,
macadamizado ao passar o desfile dos dragões degenerados
vestidos de luto.
mede a temperatura do soro luminoso com os dedos; quando
conseguires fintar os espigões da auto-estrada
vendo as costas do avesso, tapa os olhos e espera...
alguém cairá!
tão próprio o pensar dos mortos friamente espraiado àquele
que tosse... e este guarda os ovos de tal melindrosa casca
com o muco de paladar deveras intenso que reduz
o faiscar das papilas
a um desalinhamento geral dos lençóis transparentes,
periféricos aos músculos rasos, secretos constituintes dos
maxilares róseos,
brotando contíguos a todas as regiões do corpo.
assinala o lodo iludindo a pulsação...
tarde triunfarás para além da pele,
e nunca o saberás.
***
[auto da cobrição dos faunos]

e entrando no bosque onde crescem os falos
luminosos,
arrisca-se a não se perceber a metafísica da própria luz que
envolve o sexo, os sexos.
o frenesim dos faunos florescidos pelos gestos, ao
colher a
pérola de orvalho em cada falo curvado,
com radiação rubra propagada em direcção ao foco
inatingível.
o movimento da prosternação imaculada como festejo da
agnosia – estranha agonia a banhar a
solidão entrecortada das vísceras.
e entrando no bosque onde o pólen explode, explicando a
primavera das trevas a encenar repetidamente em cada caverna
de carne,
renasce a fome dos úteros cronometrados.
desejar a luz? hesitar em tocá-la?
fugir num espaço estrito entre colunas de fotões?
a cópula fazendo uso do corno da amargura...
dissipa-se a energia no espelho tridimensional e os faunos
amam-se até ao limite,
até lhes surgirem húmus entre os dedos.
***
[poemorragia]
ancoro estrebuchando com asma assintomática...
vivo nas arestas do desejo corpóreo, procuro o discreto
sulco de prata
na pele
do pescoço feminino,
a minúscula nascente do suor perfumado que quando bebido
eleva todos os sentidos.
delineio no busto da noite as pétalas metálicas
vibráteis
as escamas da branca alma do réptil
com um inextinguível cometa ao invés da cauda vulgar.
sussuram-me criaturas mágicas sem rosto que habitam o vale
das glândulas embruxadas...
contam-me peripécias mirabolantes em contraponto
dão-me a conhecer o itinerário da rosa magoada.
peregrino do corpo no corpo, beijo as flores
de sais...
lábios do ócio a implodirem no reverso do relógio enferrujado
que envelhece incrustado no pináculo biológico...
sangro mordendo oxigénio
encurralado
entre os muros de carne.
***
[moeda]

vives na cara ou na coroa?
mentes?
o que compras?
sentes?
divides a broa?
esticas a língua?
sabe-te a níquel o alimento?
donde sobrevém esse bebedouro que te envenena
o pensamento?
qual rico,
és besouro...
reluzes sorrindo teu escudo; mas pra que espada?
vale a pena protegeres o couro?
trinta moedas,
não vales nada!
***
[os expatriados]

aproximas-te tensa, com o vestido a arder
lentamente...
tens uma pequena fénix tatuada no peito.
a dor que espelhas nos dedos fragiliza-me os olhos,
rebenta-me o açude da infância num sobressalto.
sei que escondeste as algemas no coração
da montanha maquilhada com
violetas-de-cheiro.
entretanto,
vejo-te azul no espaço adocicado
pela mesma dor que amamentas com remorso.
choram os golfinhos no mar cristalizado que nos aparta.
planas no ar que respiro
mais limpo...
apareces-me transparente, um aquário
onde abundam algas cinzentas e girinos de metal.
declinas o rosto e com
os lábios roxos
arrancas-me os músculos do outono mágico que
chama
«mãe»
à chuva.
socorre-me destas águas corrosivas...
ajuda-me a construir uma ponte de ossos perfumados.
quero beber o vapor dos teus seios em soluço,
vendar-te os olhos celulares da pele dos teus dedos
ainda a contorcerem-se de dor...
ser cúmplice do assassinato dos habitantes de tal pranto,
colorir o novo tempo do aquário, ver
florir
a água.
somos estrangeiros no país
do amor.
***
[autópsia]

entregaram a carta às hienas e
elas brincaram... cheiraram-lhes a tinta e depois
de bocarra em bocarra arrancaram-lhe a vida,
rasgaram o sentimento humano e espalharam
os fragmentos, parágrafos interrompidos
pela savana fora, soltando gargalhadas cínicas.
«... preciso de te ouvir respirar para controlar a minha
pulsação...» – um elefante pisou.
«... o pão sabe-me ao teu silêncio, o vinho à morte,
a água à esperança de tragar de novo a tua
saliva...» – na boca dum antílope.
«... sempre que entro em casa e bato a porta, tenho a sensação
de ouvir a tua voz.
abro-a de novo...» – sobre as fezes duma zebra.
«... eternamente tua...» ­– em movimento helicoidal, rumo ao
céu: e ter na mente...
***
[condiCão]

sopra só o doido na vala de aparato escabroso,
para onde são atirados os cães mortos pelo frio...
maneja o fole dos milhentos efeitos
de surdina.
sopra a razão este doido
a dois perdido;
faz tempo que o clã se desagregou – pandeiretas
por toda a parte.
rafeiro imponente pois impotente se manifesta,
porém criativo mas demarcado
pela banda electromagnética... fareja a rua aos ziguezagues.
digno de
desvanecer
este sopro...
e calar-se de uma vez por todas dentro da caixa
de argamassa esbranquiçada,
inumada na multidão de vírus que anseiam
linfa calcária e enxofre ácido
ainda no curso desajeitado das vénulas arroxeadas.
sopra doido o rafeiro errante...
os pulmões são a sua casa e o mundo a sua sanita.
***
[a casa do diabo]

roda-viva nos subúrbios da cama
em cena:
como maestro a cavalgar no abdómen da partitura,
sorri o diabo de três
narinas...
os malmequeres tingiram os lençóis, é
manhã...
sai sorrateiro cheirando o vinho queimado,
ouvindo os pássaros a engolirem
o enjoo do sol
que ensonado reafirma a muralha do verão.
desfila o grão de pólen, gira espinhoso e sangra no último
pesadelo do portador das chagas.
três gerações de carneiros selvagens,
enigma triangular inchando no mudo monólogo
da refeição nocturna.
curvilínea corte... deslizar por entre os poros;
amar as vestes por beijarem o corpo
contornando as estrelas;
convocar a poeira dos ossos para alimentar a canção nascida
do desespero dum grito diurno
que coroa o heroísmo crucificando o coração azul da vila
taciturna... queimar o vinho
já negro,
pois a cólera do mal a parir reconforta os amantes
e destrói as térmites que pouco a pouco esburacam
as estrelas.
a rampa de pele a subir,
tentando adivinhar o peso dos insectos que desfolham as
páginas do vapor mordente
de água quente, água solar
para beber enquanto se remói a angústia lunar...
regressa velho o mestre assexuado,
expira de arrogância e o coração azul ilumina
as mãos calejadas
que encurralam o anémico grão de pólen sagrado.
amar o que de bom se contorce perdendo o tom;
queimar uma vez mais a partitura de pele...
dura amnésia ao beber na nascente que une os corpos
– a casa do diabo é a lagoa
onde morrem as estrelas.
***
[a dança do pó]

desta vez comerás a erva amarga do deserto e beberás
areia
em vez de água.
segue o povo que de novo suga a vida do ovo...
esfomeado povo que liberta a gigantesca aranha:
mãos sobre mãos entre mãos soltas mãos balançantes
– a taça de lenho róseo que recebe a incandescente bolsa de
lágrimas em geleia.
como abrir os ouvidos de tal caótica assembleia de guizos em
cega festa?
explicar a placenta bifurcada do exílio?
as vértebras do discurso encontram-se dispersas no vácuo
aquoso
da infância mal dormida... tarde,
ter como escasso o tempo de amaciar as palavras móveis
sob a nebulosa de cálcio faiscante.
este é o dia,
a mentira grande, o sábado...
idade de comer sabão
e desenhar ausências – sombras tatuadas no pátio.
corrói-te
à tarde – ler o sorriso do velho enjaulado,
preso aos seus rebentos de carne.
***
[já cá o chá do chão]

chá de laranja: brincar às fogueiras...
gripe clandestina espelhada na estrada molhada.
hipótese fendida nos lábios da chávena, os brônquios
dinamitados.
trânsito lento de micróbios no fumo, tédio bebido na
companhia dos espectros caramelizados.
expectoração – o linho materno manchado,
esterno comburente, centelha central do peito vulcanizado.
golo a golo...
o fundo orgânico
resguardado aqui da chuva,
na corda bamba do amarelo ocre – antevisão do regresso ao
morder vocal;
blocos de ar azul flutuando ainda no gás.
incêndio às cinco – a conta, por favor.
***
[álbum]

de sorte mentindo se arranca a folhagem do favo.
mel iluminado no úbere onde coágulos de leite
suprimem a oralidade do herói que se anula
de fotografia em fotografia.
engasgo trôpego... uma bala de osso deflagra no esófago
de vez em vez metálico: túnel
onde passeia pesado o músculo inerte
do falsificador – fala e fica, fala sempre ficando, falsificando a
dor.
assim é escutada a sequência volátil das pegadas
transcritas a seco,
seguindo com os olhos tresloucados
a viatura que se vê derretida
por ondas de sucção musical em escala endiabrada.
assim sangrando, quedo e ileso;
o menino feminino no balouço farpado.
***
[ir mãos]

mãos incansáveis mãos...
mãos mesmo mãos.
ó mãos cor-de-rosa
dai testemunhos do delírio,
pois daí partirão almas fogosas a corromperem-se silenciosas.
um lírio plantado no queixo... ajudas?
a Judas não
não deixo mãos soltas por indomável comichão;
triste canção da chuva negra
táctil regra – a ira
a irem mãos...
irmãos?
ó mãos de Caim
podre jasmim, falsa confissão
– jamais partiria e as mãos voando longe
do coração.
por grata bizarria não deixo mãos soltas
não deixo não.
***
[saída]

saída – linearmente a semente desabrocha
sempre corroendo,
tornando-se cúmplice da hera de mista maldade.
«eis a duradoura geração da altiva corola de cor caminhante»
– serve-se frio o clarão do que murcha,
honra-se o túnel de conjugação entre as bocas. livres soluços
celebram a celulose atípica...
espiral turbulenta: o corredor giratório [ambiente com gás
a dilatar todas
as formas]
morada do anjo de metal que benze o artefacto
ao se dar conta do quão perto do vértice estão os cavalos
das trevas
que galopam o estame – a lágrima virginal pende
esperando o afago do sol.
e no ângulo obtuso grãos de pólen
indicam a saída.