quinta-feira, 30 de outubro de 2008

ENCANTATÓRIA DO OSSO

«buscar-te até ao osso»
: mentira
porque a carne

só a tua carne me alimenta
o osso é uma desculpa
e quando digo: «amar-te até ao osso»
é porque tenho redondel na garganta seca
farto de te procurar no falso espectro da carcaça

enlouquecem as gengivas enroscadas na tua carne
quero-te num beber triunfal
enunciar múltiplos afogamentos no sangue esplêndido
esquadrinhar anatomias
irritar sílabas do corpo nossos corpos
domesticar a boca na planície
o mais selvagem possível
convidar sonos e adormecer na sangria dócil
da natureza

mas também ouvir-te falar do osso filosofal que perfuma
a mais vermelha das muitas carnes
e aí sim
recupero sentidos da limpidez mineral do osso
e procuro-o como coisa última que levo para a cama
com os dentes já enxutos

da tua linfa

domingo, 26 de outubro de 2008

ELOGIO À TURBULÊNCIA


as horas serpentiformes pesam na herança do caruncho bebedor
flashes libidinosos a inflamarem o círculo que contráctil
demora a disseminação cancerígena de palpitações petrolíferas

[o sifão escondido na espinhenta areia]

amadurecem os sons no armário enxuto
ouro possível na frágil desidratação da memória
mal-empregado metal se no borrão encontrasse o seu cofre
assim o gatafunhar da vida
pois as alforrecas ainda se movimentam por estas bandas
espampanantes de bar em bar no imenso reduto
[o que quer que isso seja]
à procura dum acender perto da gota a trabalhar
como objectiva circunstancial
da vastidão


como é bem-vinda esta turbulência de estilos no armário
retorna o mar ao mistério da concepção
indubitavelmente azul em todos os seus tecidos
em todas as faces imprevisíveis da solitária gota

e nisto
..........................a fenda
.......................................................a fricção

e nisto
..........................a fractura
.......................................................a ondulação

tristes os peixes na penúria oxidativa
na vagabundagem programática do pensamento
porque não se conformam com a recente ordem de despejo
decretada por um sósia de neptuno
obcessivamente lunático
[entre as marés que o afligem]
determinado em aplicar a louca mas estrutural ideia
de povoar os oceanos
com cavacos

esta turbulência não dá azo à arquitectura ou explicação
fica-se pela gratuidade das escamas
um senso emergente da fúria pela vermelhidão dos aspectos
crendo amadurecer massas gravitacionais comunicantes
contra o castigo do vácuo mudo

[gestação: o grande silêncio]

uma carraça a explorar os nós
– feieza
que de minúscula
se torna bela


há um humor cáustico a revitalizar a vista
uma praga na vitrina giratória
doença decerto, não a escolhi
arrasta
comichão manifesta na irresponsabilidade dos braços
intróito comestível pela benevolência craniana
posse inconfessa de irreversível atrocidade

no olhar pequenino
enfim, há bondade
partilhar uma técnica na arte maior
que é beijar

e na periferia dos nós a carraça prossegue com a sua labuta
escarafuncha um equilíbrio que estremece um outro
não a escolhi, no entanto
sublima-se a vontade de renegar a sensibilidade
vontade de desatar os fios às cegas
cortá-los até, de flagrante
em última estância


um homem medita e é porca a sua insubordinação à tarde
com flagrante desordem copulada no espelho
calcorreia a espuma amarelecida do mar
sob a guarda do alcatraz, pobre druida

ele avista a pena na quadrangulação da duna
apanha-a e empunha-a como arma branca
[luz dada para o voo]
vê o mar como velho proxeneta que se masturba a seus pés
– hilariante isto de tão subcutâneo húmus: amolecer

o belo ramalhete de esporângios

cabisbaixo o homem olha para o chão com medo do satélite
é a alma desta turbulência sem preliminares
é o armário esquecido num qualquer canto do planeta
é-lhe reservada a podridão dos víveres
entrelaçados num som ainda não audível
e o mar à volta
a sua nostalgia longínqua
abjecta aos peixes negligenciados
também eles a braços com a pouca sorte

há sempre a promessa de se construir uma estufa
onde se modele o grito
para que caiba em qualquer faringe do ecossistema
[imenso reduto]
uma chave-mestra para o futuro

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O futuro de Xavier descendo «O Anel de Polícrates» de Machado de Assis

[Gustav Klimt]


lá conhece um rico.
bebia papel e mulheres... ideia romana de harém!
Xavier cortava o cristal de repouso
e com capricho esquisito teve fortuna
escreve
porque é só!
fala especulativo – explicação dele
quando há tempo,
um derramado discurso... poema
vertigens, às vezes.
acordou o povo com arte
ouro realmente impagável
benigno
"expôs-me os vasos,
doido",
apenas citando comparava,
redonda mesa
entretanto amava
"é um ser d'água"... esquecera-se
"sangue, miséria..." ele ainda sofria,
varria cousas,
borbotavam páginas admiráveis
vigília-mãos-cheias
[sementes como paixão]
árvore-mãe
fruto-pródigo
a imaginação e sol... moeda gasta.
come chocho, enfim
justamente, pois adeus
negócio a minutos
– dou-lhe passagem Xavier
interessantíssimo, é estéril
jantares de hipocondríaco...
chegado o chão teima,
luta, marcha!
cavaleiro Xavier...
pareceu-lhe ora, depois
sonhou:
montava triste o anel, mas governava.
anel-fortuna-engolido voltou!
quem contou?
carta:
cavalo estrambótico, experimentemos
o bucho que, ora
o caiporismo acabou!
cavaleiro Xavier, o peixe amigo
foi natural... seja!
ele resignou-se.
celebrava o grupo do pasmo cavalo!
"vida excelente" disse Polícrates
"um dia jurou-me a página e o sorriso honorário"
conto três minutos...
Xavier, enfim, leu que não é... exclamou: não!
vestígio sombrio
teatro-coração
comédia de irmão
o cavalo que espiava o anel, o último, cai doente.
infeliz olhar do Xavier cavaleiro...
esvoaçou faiscando,
fugiu ali defunto

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

SONETO TÁCTIL


redonda e inacessível
a luz tantas vezes perigosa

um dedo sozinho a rodopiar espanto
navega indeciso na ambiência aquosa
ingénua e subtilmente carrega
o poder da interrupção:

dedo dado
dado dedo
engraçado
mete medo
desgraçado
dedo dado
dado dedo
apagado

[fotografia de Pedro Câmara]

sábado, 11 de outubro de 2008

NOITE IMOLADA

Paul Klee



as copas das árvores incendeiam escura
a lua – quer-se digno
quem entre poucos escreva o sangue
sem esquecer a essência da água
porque é difícil respirar debaixo dele
chega-se a bramir com um lobo morto
ao colo
porque eles estragam o choro
amontoando rasgados risos peçonhentos
frágeis irrompem nas vésperas do sonho
que se quer limpo
sobre a folha que trespassa
a madrugada
virão no último tracejado do halo lunar
para sujar a água
da boca à hemoglobina

não esqueçamos a tinta preta
com que se escreve a palavra «morte»
a entusiasmante vida do lobo cinzento
ainda a sangrar tinta no declive
ao colo
façamos homenagem aos seus caninos apagados
instante áureo acima dos que o desrespeitam
porque o ruído é a faca
sem gume visível
é um ardor de dentro por explorar
nas mais assombrosas vertentes
pelo contra-fogo possível da folha perfurante
sombra aureolar do icebergue indecifrável – a lua
escura afoga as inocentes copas das árvores

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O VERBO SER * André Breton

Eu conheço o desespero nas suas grandes linhas. O desespero não tem asas, não surge necessariamente ao levantar a mesa no terraço, pela tarde, à beira-mar. É o desespero e não o retorno de uma quantidade de pequenos feitos como sementes que ao cair da noite abandonam um sulco por outro. Não é a espuma sobre a pedra ou o copo a beber. É um barco crivado de neve, se desejais, como pássaros que se despenham e deles o sangue sem a mínima espessura. Eu conheço o desespero nas suas grandes linhas. Uma forma pequenina, delimitada por uma jóia de cabelo. É o desespero. Um colar de pérolas no qual não se saberia encontrar o fecho, nem mesmo o fio da existência, eis o desespero. O resto, não falamos. Ainda não acabámos de desesperar, se é que já começámos. Eu desespero na clarabóia até às quatro horas, eu desespero na ventarola até à meia-noite, desespero pelo cigarro dos condenados. Eu conheço o desespero nas suas grandes linhas. O desespero não tem coração, a mão sobrevive sempre ao desespero fora da respiração, a um desespero gélido que nunca nos confessará a sua morte. Eu vivo deste desespero que me encanta. Gosto desta mosca azul que voa no céu à hora do cantarolar das estrelas. Eu conheço nestas grandes linhas o desespero da longa saraivada de espanto, o desespero do orgulho, o desespero da cólera. Levanto-me cada dia como toda a gente e estiro os braços sobre o papel florido, não me lembro de nada e é sempre com o desespero que eu descubro as belas árvores desenraizadas da noite. O ar do quarto é bom como baquetas de tambor. Faz um tempo de tempos. Eu conheço o desespero nas suas grandes linhas. É como o vento do cortinado que me estica a vara. Tem ideia de um desespero semelhante! À fogueira! Ah! eles ainda hão-de vir... E os anúncios de jornal, reclamos luminosos ao longo do canal. Monte de areia, espécie de monte de areia! Nas suas grandes linhas o desespero não tem importância. É uma escravatura de árvores a tempo de fazerem uma floresta, uma escravatura de estrelas a tempo de fazerem um dia a menos, uma escravatura dos dias a menos a tempo de fazerem a minha vida.


LE VERBE ÊTRE

Je connais le désespoir dans ses grandes lignes. Le désespoir n'a pas d'ailes, il ne se tient pas nécessairement à une table desservie sur une terrasse, le soir, au bord de la mer. C'est le désespoir et ce n'est pas le retour d'une quantité de petits faits comme des graines qui quittent à la nuit tombante un sillon pour un autre. Ce n'est pas la mousse sur une pierre ou le verre à boire. C'est un bateau criblé de neige, si vous voulez, comme les oiseaux qui tombent et leur sang n'a pas la moindre épaisseur. Je connais le désespoir dans ses grandes lignes. Une forme très petite, délimitée par un bijou de cheveux. C'est le désespoir. Un collier de perles pour lequel on ne saurait trouver de fermoir et dont l'existence ne tient pas même à un fil, voilà le désespoir. Le reste, nous n'en parlons pas. Nous n'avons pas fini de deséspérer, si nous commençons. Moi je désespère de l'abat-jour vers quatre heures, je désespère de l'éventail vers minuit, je désespère de la cigarette des condamnés. Je connais le désespoir dans ses grandes lignes. Le désespoir n'a pas de coeur, la main reste toujours au désespoir hors d'haleine, au désespoir dont les glaces ne nous disent jamais s'il est mort. Je vis de ce désespoir qui m'enchante. J'aime cette mouche bleue qui vole dans le ciel à l'heure où les étoiles chantonnent. Je connais dans ses grandes lignes le désespoir aux longs étonnements grêles, le désespoir de la fierté, le désespoir de la colère. Je me lève chaque jour comme tout le monde et je détends les bras sur un papier à fleurs, je ne me souviens de rien, et c'est toujours avec désespoir que je découvre les beaux arbres déracinés de la nuit. L'air de la chambre est beau comme des baguettes de tambour. Il fait un temps de temps. Je connais le désespoir dans ses grandes lignes. C'est comme le vent du rideau qui me tend la perche. A-t-on idée d'un désespoir pareil! Au feu! Ah! ils vont encore venir... Et les annonces de journal, et les réclames lumineuses le long du canal. Tas de sable, espèce de tas de sable! Dans ses grandes lignes le désespoir n'a pas d'importance. C'est une corvée d'arbres qui va encore faire une forêt, c'est une corvée d'étoiles qui va encore faire un jour de moins, c'est une corvée de jours de moins qui va encore faire ma vie.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

OVO MÁGICO

Mário Cesariny

acordar no verde
e descer o ontem
contado à montanha
à espera que ela desboque
a sabedoria natural
das árvores

mágica maneira de aprender
a traduzir em sinais
o cruzamento dos troncos
a dimensão variável
dos triângulos quase rostos
recipientes falsos de vento
doado na veleidade do cuspo

venho das duras lições
de trigonometria
procuro sonhar com
a perna defeituosa do bronze
regressar esta noite
à espuma sufocante
dos frutos perdidos no chá
prostrar-me aos pés da imperatriz
do grande carrossel
mãe-de-pedra adormecida
na floresta

– reapareceu o ovo
junto à palmeira de lume

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Isabel Mendes Ferreira




escrever para que a alma escute o seu respirar. reclamar o amargo e o
maravilhoso. o insólito rugido de um corpo sempre floresta.
entrar às escuras no sangue fervente que tanto é raiz como fruto.
ser excessivo e espartano. vago e objectivo. anel e árvore. escrever para
ninguém. como quem compõe um adágio solitário e carinhoso. orquestra de
sílabas e de carne. a matéria de um violino a ser cárcere e prado . tudo na
mesma delicada sombra onde se perde a vida.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Fiama Hasse Pais Brandão



EPÍSTOLA PARA OS MEUS MEDOS

Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.

in Epístolas e Memorandos, Relógio d'Água, 1996

quarta-feira, 1 de outubro de 2008