quarta-feira, 26 de novembro de 2008

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

FEBRE TIPÓIDE



alguém anda enganado neste mundo
tipo eu ou um outro talvez não sei
sinto-me mal tipo vou-me embora
apanhem-me as sandálias e por favor
mergulhem as bolachas no leite fresco
e dêem-nas ao gatinho a miar desalmadamente
perdido da mãe tipo na extremidade do carril
agora percebo o brilho da madeira no livro
viajar tipo correr as páginas até à exaustão
e miar feito gato à espera das bolachas
com medo dos cães tipo polícias do futuro
alguém enganado? todos tipo humanidade inteira
agora compreendo céline e a sua inquietação
azedume tipo ácido sulfúrico aspergido
venham julgar-me neste estado debilitado
estou doente tipo quarenta e dois graus de febre

terça-feira, 18 de novembro de 2008

UM PÉ NO PAPEL






















[Painting, Francis Bacon, 1978]



sob a hora translúcida
no ar um dia
a flor revelará a animalidade do sonho
nos seus órgãos, na sua escabrosa essência
amedrontando o ser de espuma
a fugir da saliva

uma nuvem amarela nesta hora o ar intacto
ar que o pânico meridional enrijeceu
avesso aos brônquios duma manhã crepuscular
uma nuvem como longa-metragem ionizada

se um homem decide clarificar a sangria do sol
experimentando visões do grande incêndio
sabe à partida que deverá amar o escuro
e libertar-se nele incondicionalmente

«uma floresta resplandecente sobre o cinzeiro»

ao vê-la desdobra-se na ascensão rápida da ideia
músculo do sonho e corola da flor
também o fumo se criva pelo crepúsculo

um pé no papel ● a página pelos joelhos

designa «floresta» o que vê este homem
de vento os gestos e o porquê das mãos
experimenta o exílio gasoso da palavra
o pé soluça e verbaliza a vontade
o corpo cai e instrumentaliza o sonho

porque a palavra trará nova seiva
e essa seiva invadirá velhas raízes
porque essas raízes irrigarão outras vontades
que se acenderão no mesmo bolbo

ele veste o silêncio ● a flor abre-se no escuro

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

ENCANTATÓRIA DO OSSO

«buscar-te até ao osso»
: mentira
porque a carne

só a tua carne me alimenta
o osso é uma desculpa
e quando digo: «amar-te até ao osso»
é porque tenho redondel na garganta seca
farto de te procurar no falso espectro da carcaça

enlouquecem as gengivas enroscadas na tua carne
quero-te num beber triunfal
enunciar múltiplos afogamentos no sangue esplêndido
esquadrinhar anatomias
irritar sílabas do corpo nossos corpos
domesticar a boca na planície
o mais selvagem possível
convidar sonos e adormecer na sangria dócil
da natureza

mas também ouvir-te falar do osso filosofal que perfuma
a mais vermelha das muitas carnes
e aí sim
recupero sentidos da limpidez mineral do osso
e procuro-o como coisa última que levo para a cama
com os dentes já enxutos

da tua linfa

domingo, 26 de outubro de 2008

ELOGIO À TURBULÊNCIA


as horas serpentiformes pesam na herança do caruncho bebedor
flashes libidinosos a inflamarem o círculo que contráctil
demora a disseminação cancerígena de palpitações petrolíferas

[o sifão escondido na espinhenta areia]

amadurecem os sons no armário enxuto
ouro possível na frágil desidratação da memória
mal-empregado metal se no borrão encontrasse o seu cofre
assim o gatafunhar da vida
pois as alforrecas ainda se movimentam por estas bandas
espampanantes de bar em bar no imenso reduto
[o que quer que isso seja]
à procura dum acender perto da gota a trabalhar
como objectiva circunstancial
da vastidão


como é bem-vinda esta turbulência de estilos no armário
retorna o mar ao mistério da concepção
indubitavelmente azul em todos os seus tecidos
em todas as faces imprevisíveis da solitária gota

e nisto
..........................a fenda
.......................................................a fricção

e nisto
..........................a fractura
.......................................................a ondulação

tristes os peixes na penúria oxidativa
na vagabundagem programática do pensamento
porque não se conformam com a recente ordem de despejo
decretada por um sósia de neptuno
obcessivamente lunático
[entre as marés que o afligem]
determinado em aplicar a louca mas estrutural ideia
de povoar os oceanos
com cavacos

esta turbulência não dá azo à arquitectura ou explicação
fica-se pela gratuidade das escamas
um senso emergente da fúria pela vermelhidão dos aspectos
crendo amadurecer massas gravitacionais comunicantes
contra o castigo do vácuo mudo

[gestação: o grande silêncio]

uma carraça a explorar os nós
– feieza
que de minúscula
se torna bela


há um humor cáustico a revitalizar a vista
uma praga na vitrina giratória
doença decerto, não a escolhi
arrasta
comichão manifesta na irresponsabilidade dos braços
intróito comestível pela benevolência craniana
posse inconfessa de irreversível atrocidade

no olhar pequenino
enfim, há bondade
partilhar uma técnica na arte maior
que é beijar

e na periferia dos nós a carraça prossegue com a sua labuta
escarafuncha um equilíbrio que estremece um outro
não a escolhi, no entanto
sublima-se a vontade de renegar a sensibilidade
vontade de desatar os fios às cegas
cortá-los até, de flagrante
em última estância


um homem medita e é porca a sua insubordinação à tarde
com flagrante desordem copulada no espelho
calcorreia a espuma amarelecida do mar
sob a guarda do alcatraz, pobre druida

ele avista a pena na quadrangulação da duna
apanha-a e empunha-a como arma branca
[luz dada para o voo]
vê o mar como velho proxeneta que se masturba a seus pés
– hilariante isto de tão subcutâneo húmus: amolecer

o belo ramalhete de esporângios

cabisbaixo o homem olha para o chão com medo do satélite
é a alma desta turbulência sem preliminares
é o armário esquecido num qualquer canto do planeta
é-lhe reservada a podridão dos víveres
entrelaçados num som ainda não audível
e o mar à volta
a sua nostalgia longínqua
abjecta aos peixes negligenciados
também eles a braços com a pouca sorte

há sempre a promessa de se construir uma estufa
onde se modele o grito
para que caiba em qualquer faringe do ecossistema
[imenso reduto]
uma chave-mestra para o futuro

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O futuro de Xavier descendo «O Anel de Polícrates» de Machado de Assis

[Gustav Klimt]


lá conhece um rico.
bebia papel e mulheres... ideia romana de harém!
Xavier cortava o cristal de repouso
e com capricho esquisito teve fortuna
escreve
porque é só!
fala especulativo – explicação dele
quando há tempo,
um derramado discurso... poema
vertigens, às vezes.
acordou o povo com arte
ouro realmente impagável
benigno
"expôs-me os vasos,
doido",
apenas citando comparava,
redonda mesa
entretanto amava
"é um ser d'água"... esquecera-se
"sangue, miséria..." ele ainda sofria,
varria cousas,
borbotavam páginas admiráveis
vigília-mãos-cheias
[sementes como paixão]
árvore-mãe
fruto-pródigo
a imaginação e sol... moeda gasta.
come chocho, enfim
justamente, pois adeus
negócio a minutos
– dou-lhe passagem Xavier
interessantíssimo, é estéril
jantares de hipocondríaco...
chegado o chão teima,
luta, marcha!
cavaleiro Xavier...
pareceu-lhe ora, depois
sonhou:
montava triste o anel, mas governava.
anel-fortuna-engolido voltou!
quem contou?
carta:
cavalo estrambótico, experimentemos
o bucho que, ora
o caiporismo acabou!
cavaleiro Xavier, o peixe amigo
foi natural... seja!
ele resignou-se.
celebrava o grupo do pasmo cavalo!
"vida excelente" disse Polícrates
"um dia jurou-me a página e o sorriso honorário"
conto três minutos...
Xavier, enfim, leu que não é... exclamou: não!
vestígio sombrio
teatro-coração
comédia de irmão
o cavalo que espiava o anel, o último, cai doente.
infeliz olhar do Xavier cavaleiro...
esvoaçou faiscando,
fugiu ali defunto